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A parte do sistema de Wilhelm Stern que é mais conhecida e que tem vindo a ganhar terreno com o passar dos anos, é a sua concepção intelectualista sobre o desenvolvimento da linguagem na criança. Contudo, é esta mesma concepção que mais claramente revela as limitações e as incoerências do personalismo filosófico e psicológico de Stern, os seus fundamentos idealistas e a sua ausência de validade científica.
É o próprio Stern quem descreve o seu ponto de vista como “personalista-genético”. Analisaremos o princípio personalista mais à frente. Para já, vamos ver como Stern trata do aspecto genético. Afirmaremos já à partida que esta teoria, tal como todas as teorias intelectualistas, é, pela sua própria natureza, anti-genética.
Stern estabelece uma distinção entre três raízes da linguagem: a tendência expressiva, a tendência social e a tendência “intencional”. Enquanto as duas primeiras estão também subjacentes aos rudimentos de linguagem observados nos animais, a terceira é especificamente humana. Stern define intencionalidade neste sentido como uma orientação para um certo conteúdo, ou significado.
“Em determinado estádio do seu desenvolvimento psíquico”, afirma ele, “o homem adquire a capacidade de significar algo proferindo palavras, de se referir a algo objetivo” (38)(38, p. 126).
Em substância, tais atos intencionais são já atos de pensamento; o seu surgimento denota uma intelectualização e uma objetificação do discurso.
Em consonância com um certo número de autores que representam a nova psicologia do pensamento, embora em menor grau do que alguns deles, Stern sublinha a importância do fator no desenvolvimento da linguagem.
Não temos nada a obstar à afirmação segundo a qual a linguagem humana desenvolvida possui um significado objetivo, pressupondo portanto um certo grau de desenvolvimento do pensamento, e estamos de acordo em que é necessário tomar em linha de conta a relação estreita que existe entre a linguagem e o pensamento lógico. O problema está em que Stern encara a intencionalidade característica do discurso desenvolvido, que exige explicação genética (isto é, que exige se explique como foi gerada no processo evolutivo), como uma das raízes do desenvolvimento da linguagem, como uma força motora, como uma tendência inata, quase como um impulso, mas, de qualquer forma como algo primordial, geneticamente equiparada às tendências expressiva e comunicativa – as quais na verdade são detectáveis já nos primeiros estádios da linguagem. Ao ver a intencionalidade desta maneira (“die intentionale Triebfeder des Sprachdranges”), substitui a explicação genética por uma explicação intelectualista.
Este método de explicar uma coisa pela própria coisa que há que explicar é o erro fundamental de todas as teorias intelectualistas e, em particular, da de Stern – daí a sua vacuidade geral e o seu caráter anti-genético (pois se relegam para os primeiros estádios de desenvolvimento da linguagem características que pertencem aos seus estádios mais avançados) Stern responde à questão de como e porque a linguagem adquire significado afirmando. a linguagem adquire significado pela sua tendência intencional, isto é, pela tendência à significação. Isto faz-nos recordar o médico de Molière que explicava os efeitos soporíferos do ópio pelas suas propriedades dormitivas. Da famosa descrição que Stern nos dá da grande descoberta feita pelas crianças por volta do ano e meio ou dois anos de idade podemos ver a que exageros pode conduzir uma acentuação exagerada dos aspectos lógicos. Por essa idade, a criança descobre pela primeira vez que cada objeto tem o seu símbolo permanente, uma configuração sonora que o identifica – quer dizer, que cada coisa tem o seu significado. Stern crê que, pelo segundo ano da sua vida, uma criança pode tomar consciência dos símbolos e da sua necessidade e considera que esta descoberta é já um processo de pensamento no sentido próprio do termo:
A compreensão da relação entre o signo e o significado que desponta na criança por esta altura é algo diferente em princípio da simples utilização de imagens sonoras, de imagens de objetos e da sua associação. É a exigência de que todos os objetos, sejam eles quais forem, tenham o seu nome próprio pode considerar-se como uma verdadeira generalização levada a cabo pela criança (40)(40, pp. 109-110).
Haverá algum fundamento teórico ou factual para presumir que uma criança de um ano e meio ou dois anos de idade tem consciência de uma regra geral, de um conceito geral? Todos os estudos realizados sobre este problema nos últimos vinte anos indicam-nos que a resposta é negativa.
Tudo o que conhecemos da mentalidade da criança de um ano e meio ou dois anos entra em choque com a idéia segundo a qual ela poderia ser capaz de operações intelectuais tão complexas. Tanto a observação como os estudos experimentais indicam-nos que a criança só muito mais tarde apreende a relação entre o signo e o significado, ou a utilização funcional dos signos; tal encontra-se muito para lá do alcance de uma criança com dois anos. Além disso, as investigações experimentais sistemáticas mostraram que a compreensão da relação entre o signo e o significado e da transição para o estádio em que a criança começa a operar com os signos, não resulta nunca de uma descoberta ou invenção repentinas. Stern acredita que a criança descobre o significado da linguagem de uma vez por todas, mas na realidade, trata-se de um processo extremamente complexo que tem a sua “História Natural” (isto é, as suas origens e as suas formas de transição aos mais primitivos níveis genéticos) e também a sua “História Cultural” (que também tem as suas séries de fases próprias, o seu próprio desenvolvimento quantitativo, qualitativo e funcional, as suas próprias leis e dinâmica).
Stern passa virtualmente por cima de todas as intrincadas vias que conduzem ao amadurecimento da função do signo; a sua concepção do desenvolvimento lingüístico é extremamente simplificada. A criança descobre repentinamente que o discurso tem significado. Esta explicação da forma como a fala se torna significante, merece em verdade ser equiparada à teoria da invenção deliberada da linguagem, à teoria racionalista do contrato social e a outras teorias intelectualistas famosas. Todas elas desprezam as realidades genéticas e não explicam realmente nada.
Também do ponto de vista dos fatos a teoria de Stern não agüenta o confronto. Wallon, Kotfka, Piaget, Delacroix e muitos outros, nos seus estudos das crianças normais e K. Buehler no seu estudo dos surdos-mudos, descobriram:
(1) que a descoberta por parte da criança da ligação entre a palavra e o objeto não conduz imediatamente a uma consciência clara da relação simbólica entre o signo e o referente, característica do pensamento bem desenvolvido, que, durante um grande período de tempo, a palavra surge à criança mais como um atributo ou uma propriedade do objeto do que como simples signo, que a criança apreende a relação externa entre o objeto e a palavra antes de perceber a relação interna signo-referente;
(2) que a descoberta que a criança faz não é uma descoberta súbita, de que se possa definir o instante exato em que ocorre. Uma série de longas e complicadas “transformações moleculares” conduzem a esse momento crítico do desenvolvimento.
No decurso dos vinte anos que decorreram desde a publicação, do seu estudo, ficou estabelecido sem sombra de dúvidas que a observação fundamental de Stern era correta; isto é, há realmente um momento de descoberta que para uma observação mais grosseira surge como que não reparada. O ponto de viragem decisivo do desenvolvimento lingüístico, cultural e intelectual da criança descoberto por Stern existe realmente – embora este autor tenha laborado em erro, ao dar-lhe uma interpretação intelectualista. Stern assinala dois sintomas objetivos da ocorrência dessa transformação crítica: o surgimento de perguntas sobre os nomes dos objetos e as expansões rápidas, e por saltos, do vocabulário – daí resultantes; ambos estes sintomas são de primeira importância para o desenvolvimento da linguagem.
A ativa procura de palavras por parte da criança, que não tem equivalente no desenvolvimento da “linguagem” nos animais, indica uma nova fase na evolução lingüística. É por essa altura que o “grandioso sistema de signos da linguagem” (para citar Pavlov) emerge para a criança da massa dos outros signos e assume um papel específico no comportamento. Um dos grandes feitos de Stern foi ter assente este fato sobre os firmes alicerces dos sintomas objetivos, o que torna a lacuna da sua explicação ainda mais flagrante.
Ao contrário das outras duas raízes da linguagem, a expressiva e a comunicativa, cujo desenvolvimento é seguido desde os animais mais inferiores até aos antropóides e ao homem, a tendência intencional surge do nada: não tem História nem conseqüências. Segundo Stern, é fundamental, primordial; brota espontaneamente e “duma vez por todas”. É esta propensão que torna a criança capaz de descobrir a função da linguagem por meio de uma operação puramente lógica.
É certo que Stern não diz isto assim por estas palavras. Ele entrou em polêmica não só com os proponentes das teorias anti-intelectualistas que vão buscar as raízes e os inícios da linguagem das crianças a processos exclusivamente afetivos-conativos, mas também com aqueles psicólogos que sobrestimam a capacidade de pensamento lógico das crianças. Stern não repete este erro, mas comete outro ainda mais grave ao consignar ao intelecto uma posição quase metafísica de primazia, como origem, como causa primeira indecomponível da fala significante. Paradoxalmente este tipo de intelectualismo mostra-se particularmente inadequado ao estudo do processo intelectual, que à primeira vista deveria ser a sua esfera de aplicação legítima. Por exemplo poderíamos esperar que o fato de se encarar a significação da fala como resultado de uma operação intelectual trouxesse muita luz à relação entre a linguagem e o pensamento. Na realidade, tal abordagem, ao estipular como estipula um intelecto já formado, bloqueia toda e qualquer investigação sobre as interações dialéticas implícitas do pensamento e da linguagem. O tratamento que Stern dá a este aspecto fundamental do problema da linguagem encontra-se repleto de incoerências e é a parte mais débil do seu livro.(38). Pontos tão importantes como o discurso interior, a sua emergência e a sua conexão com o pensamento mal são aflorados por Stern. Este passa em revista os resultados das investigações de Piaget apenas na sua análise das conversas infantis, descurando as funções, a estrutura e o significado genético dessa forma de linguagem Stern é totalmente incapaz de relacionar as complexas transformações funcionais e estruturais do pensamento com o desenvolvimento da linguagem.
Mesmo quando Stern nos dá uma correta caracterização de um fenômeno genético, o enquadramento teórico da sua obra impede-o de tirar as conclusões óbvias das suas próprias observações. Este fato torna-se mais evidente do que nunca na sua incapacidade para ver as implicações da sua “tradução” dos primeiros termos infantis na linguagem dos adultos. A interpretação que dá às primeiras palavras das crianças é a pedra de toque de todas as teorias da linguagem infantil. É o ponto focal em que todas as principais tendências das modernas teorias da linguagem se encontram e entrecruzam. Poder-se-ia dizer, sem exagero que toda a estrutura de uma teoria é determinada pela tradução que se dá das primeiras palavras de crianças.
Stern acha que tais palavras não devem ser interpretadas nem dum ponto de vista puramente intelectualista, nem do ponto de vista puramente afeto-conativo. Reconhece os méritos de Meumann ao opor-se à teoria intelectualista, segundo a qual as primeiras palavras de uma criança designam realmente objetos enquanto objetos(28). Não compartilha contudo, o pressuposto de Meumann que afirma que as primeiras palavras são simples expressões das emoções e dos desejos das crianças. Através da análise das situações em que elas surgem prova bastante conclusivamente que estas palavras convêm também uma certa orientação em direção a um objeto e que esta “referência objetiva” ou função apontadora freqüentemente “predomina sobre o tom moderadamente emocional”(38)(38, p. 180).
Eis como Stern traduz as primeiras palavras:
O significado da palavra infantil mamã traduzida para a linguagem desenvolvida, não é a palavra “mãe”, mas antes uma frase do gênero “Mamã, chega aqui”, ou “Mamã, dá-me”, ou “Mamã, põe-me em cima da cadeira”, ou “Mama, ajuda-me”(38)(38, p. 180).
No entanto, quando observamos as crianças em ação, torna-se óbvio que não é só a palavra mamã que significa, digamos, “Mamã, põe-me em cima da cadeira”, mas o conjunto do comportamento da criança nesse momento (o seu gesto de aproximação em direção à cadeira, tentando agarrar-se a ela, etc. Aqui, a orientação “afetiva-conotativa” em direção a um objeto (para utilizar os termos de Meumann) é ainda inseparável da tendência intencional da fala: ambas as tendências constituem ainda um todo homogêneo e a única tradução correta de mamã, ou de quaisquer outras palavras primitivas é o gesto de apontar que as acompanha. A princípio a palavra é um substituto convencional para o gesto; surge muito antes da crucial “descoberta da linguagem” pela criança e antes que esta seja capaz de executar operações lógicas. O próprio Stern admite o papel mediador dos gestos,. especialmente do apontar, no estabelecimento do significado das primeiras palavras. A conclusão inevitável seria a de que o apontar é de fato. uma atividade percursora da “tendência intencional”. No entanto. Stern escusa-se a ir buscar as raízes da história genética dessa tendência. Para ele, esta não resulta de uma evolução a partir da orientação afetiva para o objeto no ato de apontar (gesto ou primeiras palavras) – surge do nada e é responsável pelo nascimento do significado.
A mesma abordagem anti-genética caracteriza também o tratamento que Stern dá a todas as outras questões importantes analisadas no seu vigoroso livro, tais como o desenvolvimento do conceito e os principais estádios do desenvolvimento da linguagem e do pensamento. Nem podia ser de outra maneira: esta abordagem é conseqüência direta das premissas filosóficas do personalismo, o sistema desenvolvido por Stern.
Stern tenta erguer-se acima dos extremos tanto do empirismo como do inatismo. Contrapõe o seu próprio ponto de vista do desenvolvimento da linguagem, por um lado, ao de Wundt, que considera a linguagem da criança como um produto do meio ambiente, sendo a participação da criança inteiramente passiva e, por outro lado, ao ponto de vista dos psicólogos para os quais o discurso primário (as onomatopéias ou o chamado papaguear dos bebês) foi inventado por uma geração infindável de bebês. Stern tem cuidado em não descurar o papel desempenhado pelos jogos de imitação no desenvolvimento da linguagem, ou o papel da atividade espontânea da criança, aplicando a estas questões seu conceito de “convergência”: a conquista da linguagem pela criança dá-se através de uma constante interação de disposições internas que preparam a criança para a linguagem e para as condições externas – isto é, a linguagem das pessoas que a cercam -, que lhe fornecem quer o estímulo quer a matéria prima para a realização dessas disposições.
Para Stern, a convergência é um princípio geral, aplicável à explicação de todos os comportamentos humanos. Este é certamente mais um dos casos em que podemos dizer com Goethe: As palavras da ciência ocultam a sua substância”. A sonora palavra convergência, que exprime aqui um princípio metodológico perfeitamente inatacável (quer dizer, o princípio metodológico de que o desenvolvimento deveria ser estudado como um processo determinado pela interação entre o organismo e o meio ambiente), liberta na realidade o autor da tarefa de analisar os fatores sociais e ambientais no desenvolvimento da linguagem. É certo que Stern afirma realmente com bastante ênfase que o meio ambiente social é o fator principal do desenvolvimento da linguagem, mas, na realidade, limita o seu papel ao de um fato que se limita a acelerar ou retardar o desenvolvimento, que obedece às suas próprias leis imanentes. Como tentamos mostrar, utilizando o seu exemplo de como o significado emerge na linguagem, Stern sobrestimou os fatores orgânicos internos.
Esta deformação é resultado direto do quadro personalista de referência. Para Stern, a “pessoa” é uma entidade psicologicamente independente que, “apesar da multiplicidade das suas funções parciais, manifesta uma atividade unitária, orientada para um objetivo”(39)(39, p. 16). Esta concepção “monadista”, idealista, da pessoa individual, leva a uma teoria que vê a linguagem como algo radicado numa teleologia pessoal – e daí o intelectualismo e o pendor anti-genético do ponto de vista de Stern sobre os problemas do desenvolvimento lingüístico, o personalismo de Stern, ao ignorar como ignora a faceta social do comportamento lingüístico, conduz a absurdos patentes. A sua concepção metafísica da personalidade, ao fazer decorrer todos os processos de desenvolvimento de uma teleologia pessoal, inverte completamente as relações genéticas reais. Em vez de uma história evolutiva da própria personalidade, em que a linguagem desempenha um papel que se encontra longe de ser secundário, temos a teoria metafísica segundo a qual a personalidade gera a linguagem a partir dos fins para que tende a sua própria natureza essencial.
Inclusão | 03/01/2011 |
Última atualização | 18/11/2015 |