Com os olhos na epopeia

Neno Vasco

3 de novembro de 1919


Primeira Edição: jornal A Batalha – Ano I, N.º 248 | Segunda feira, 3 de novembro de 1919

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/com-os-olhos-na-epopeia/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


As plutocracias dirigem neste momento contra a revolução a tríplice ofensiva geral das armas, da fome e do elive, antes que se congelem as águas do inverno e se caldeiem pelo mundo os vulcões da solidariedade proletária.

Em vão William Bullitt, enviado discreto dos governos anglo-saxónicos, trás da Rússia um relatório que só poderia inquietar aqueles que anelam para a revolução todo o seu amplo desenvolvimento socialista e libertário.

A burguesia mundial não desconta à revolução russa as tendências moderadas, contemporizadoras, burocráticas da fração predominante de Lénine.

Porque ela vê na grande convulsão social mais o seu poder de irradiação do que o seu valor intrínseco imediato.

É preciso destruir o exemplo antes que ele frutifique, apagar o foco antes que ele se propague, matar o germe antes que ele desabroche na florescência da vida plena.

É preciso armar a contra-revolução no interior, pagar as guerras do exterior, provocar o terror vermelho, para acusar de futor sanguinário as necessidades da defesa revolucionária, sem erguer a mesma condenação hipócrita – supremamente hipócrita na boca dos tigres da grande guerra – contra as epilepsias repressivas da reação.

É preciso estrangular um povo imenso de homens pacíficos, de crianças e de mulheres, com o garrote celerado do bloqueio, para acusar de incapacidade a revolução, privada de todas as fontes e elementos de reorganização económica.

E como o processo não é suficientemente expedito, como a nova ordem de coisas, melhor do que nenhuma outra, tem sabido resistir a uma situação horrível, urge matá-la de morte violenta, a ferro e fogo, como a comuna húngara, para que se possa dizer depois que de morte natural, por debilidade congénita, vítima dos seus crimes e dos seus vícios.

Um ponto fraco no plano estratégico: a Santa Aliança teve enfim que se desmascarar demasiadamente com este assalto supremo. Para mais, a Alemanha de Noske que tão servil tem sido na execução das ordens da Entente contra a revolução russa e alemã, lembrou-se agora, sob a pressão dos comunistas e a ameaça de greve geral, de recusar colaborar no bloqueio, pregando aos Aliados a inocente partida de lhes publicar a nota, que a Batalha qualificou de impudente, mas que em boa verdade era pudicamente secreta. A vingança é a consolação dos débeis.

O escravo, embrutecido e exausto, sorme ainda profundamente. Mas não o despertará o estrondo da peleja e não lhe abrirá os olhos a nitidez da situação?

Do seu lado a minoria revolucionária não se cansa de o sacudir e de o chamar com os seus brados premonitórios: É a tua causa que se debate! é a tua causa que se decide!

E nessa minoria, consolida-se a união, a união da hora da luta e do perigo.

Na Rússia, também os mencheviques e minimalistas acorrem à frente única contra o inimigo comum, lançando o labéu de traidores contra os vacilantes. E entre os anarquistas, temos or exemplo, Shatoff, que ocupa na defesa de Petrogrado um posto da maior responsabilidade e explica a sua atitudo a um jornalista norte-americano.

– Agora que os governos tentam sufocar pelas armas a nossa revolução, ajudo os bolcheviques na defesa da Rússia proletária. Quando os Aliados decidirem deixar-nos resolver as nossas questões entre nós e estiver acabado o perigo da contra-revolução, eu e os meus camaradas anarquistas lutaremos contra o governo bolchevique por uma revolução verdadeiramente socialista, isto é, anarquista.

E aí está porque o bloco revolucionário, que defende a revolução, a vê como o bloco burguês, que a ataca: um foco difusível, um exemplo vivo, um germe a desabrochar. As questões de método, de tática de organização, são “questões internas”. O dualismo – ou o duelo – entre a força popular, criadora, orgânica, renovadora, dos Sovietes e as tendências centralizadoras, burocráticas, ditatoriais dum novo governo ou duma nova excrescência política é um problema a resolver entre revolucionários, vencido o inimigo comum ou assegurada a sua derrota.

É preciso destruir todas as peias exteriores, conquistar para a revolução ampla liberdade de ação e de desenvolvimento, largas possibilidades materiais, para que ela possa revelar todas as suas virtudes ou trair todas as suas insuficiências e defeitos.

É isso o que a burguesia não quer e é isso o que nós queremos – unanimemente. Baldada tentativa a dos que intrigaram com os nomes de Gorki, Krapótkine, Tólstoi: este último pela boca do seu mais íntimo herdeiro intelectual, Paulo Birukof, os outros dois com clamores retumbantes e comoventes, lançaram à face do mundo a condenação do grande crime contra a humanidade nova.

Respondem-lhes, num eco lancinante, as poderosas vozes de Anatole France, Romain Rolland, Henri Barbusse, de todos aqueles em quem um grande cérebro serve um grande coração.

Respondemos todos nós; os que sentimos a solenidade trágica da hora, os que admiramos, com a alma incerta e angustiada, a sublime epopeia do Oriente, a epopeia dum grande povo faminto e roto que se bate pela sua liberdade, pela liberdade do mundo, pelas novas possibilidades de vida nova!

Fazemos eco todos os que pretendemos ficar indenes da mancha infame do silêncio ou hostilidade cúmplices, os que não somos «rábulas, retóricos, confusamente ideólogos, e friamente práticos», como esculpiu em bronze o estilo justiceiro de Romain Rolland.


Inclusão: 24/06/2021