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Primeira Edição: revista A Sementeira – 2ª série, N.º 10, Outubro de 1916
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/cristianismo-catolicidade/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Amai os vossos inimigos.
(SERMÕES DA MONTENHA).
Não se trata de qualquer minoria internacionalista ainda impotente, mas duma Igreja secular, rica e poderosa, que diz dominar milhões de almas em nome do Cristo de paz e amor.
O seu chefe, vendo os seus filhos dilacerarem-se mutuamente, não pôde fazer mais do que sucumbir. E o sucessor refugiou-se numa neutralidade incapaz, que ele explicou pobremente, terrenamente, a um jornalista católico de França. A Itália estava ainda fora da contenda.
Bento XV recusou a tomar partido na contenda europeia, negou-se a condenar categoricamente os processos teutónicos de guerra, alegando que barbaridades todos os beligerantes as têm cometido e servindo-se por vezes de subterfúgios verdadeiramente desastrados. Assim, tendo-lhe o jornalista observado que o Vaticano não protestara contra a violação da neutralidade belga, o chefe supremo do catolicismo livrou a sua responsabilidade pessoal, em vez de dar a sua opinião própria: «Isso foi sob o pontificado de Pio X».
Sim: o pontífica romano tem humanamente razão, afirmando que a guerra é a guerra e que lhe são inerentes as atrocidades.
Mas, nesse caso, porque não procurou o papa obstar à carnificina? Por que razão a Igreja, servindo-se da autoridade que pretende ter entre as massas católicas, não fulminou de excomunhão os príncipes, os financeiros, os políticos, os diplomatas, os militares e os industriais da guerra, que tivessem promovido ou viessem a promover a grande chacina internacional?
Porque não bradou imperiosamente aos súbditos, seus fiéis, o preceito divino do «Não matarás!», cominando as penas espirituais mais severas e irremediáveis para o caso de desobediência a essa lei suprema?
Se as barbaridades são de todos, todos devem ser condenados, sem demora, nem complacências, nem subterfúgios.
Bento XV deseja, porém, estar de bem com todos, agradar a Deus e ao Diabo, e é o primeiro a desconfiar da eficácia das suas armas canónicas e dos seus raios de Júpiter decrépito. «Não seria conveniente nem útil, disse ele, comprometer a autoridade pontificial nos litígios mesmos dos beligerantes».
A sua autoridade divina é assaz frágil e melindrosa. A sua infalibilidade está sujeita a quebras. É preciso poupá-la, alisar-lhe o caminho, eleger-lhe as oportunidades. Deus todo-poderoso não se responsabiliza pelo mau uso daquele instrumento delicado. O Espírito Santo não sopra a sua inspiração senão em ocasiões propícias, cuidadosamente escolhidas, com jeito humano e muito tino político. É preciso seguir com os olhos o catavento e o barómetro, exatamente como para organizar preces e procissões ad petendam pluviam.
Em suma, o papa não é o representante legítimo e supremo de Deus omnipotente, cujas leis absolutas urge cumprir e fazer cumprir tão pronta e inteiramente como nelas se contêm. É um chefe político como qualquer outro.
A sua postura, os seus gestos, as suas palavras, as suas reticências, os seus pretextos, as suas escapatórias, as suas evasivas, as suas desculpas – tudo isso é dum rei qualquer e de qualquer diplomata.
A sua neutralidade é uma coisa comezinha e terrena, manhosa e sorna, a manobrar e a contemporizar. Bento XV, falando do seu neutralismo relativamente à Itália, dava ainda pro forma o divino motivo fundamental: é representante de Deus e Seus quer a paz, embora, como qualquer humano pacifista de água doce, não a saiba ou não a queira impor. Mas a esse motivo de ordem celeste acrescentava logo sólidas razões terrestres. É que «nós estamos na Itália e queríamos poupar a este país, que amamos, os sofrimentos da guerra» – os quais, sendo fora de Itália, não fazem sangrar tanto o coração italiano do chefe duma Igreja que se diz «católica».
Após a razão transcendente e a razão sentimental, vinham as razões materiais, a mais suculenta no fim – como no post scriptum das cartas o seu objetivo verdadeiro. «Enfim, não devemos ocultar que pensámos também nos interesses da Santa Sé, os quais são postos em perigo pelo estado de guerra».
Mas há mais. «Necessito garantir a segurança material da minha pessoa. Ora, mobilizaram vinte dos meus guardas, vários oficiais, empregados que não me será fácil substituir, guardas nobres. Tememos ver-nos expostos às incertezas da vida pública na Itália. Roma é um foco em perpétua fermentação. Direis que era absurdo recear, nestes últimos dias, uma jornada revolucionária? Que será o dia de amanhã? Todos os movimentos deste povo, o mais volúvel da Terra, têm o seu contra-golpe aqui. E sentimo-nos hoje menos protegidos. Compreendeis agora os motivos por que nos apúnhamos com todas as nossas forças à ruptura da neutralidade italiana?»
Mas sem dúvida! Nós também compreendemos às mil maravilhas e folgamos intimamente com a franqueza, toda familiar, do magno sacerdote. Esses motivos são humanos, demasiadamente humanos mesmo. Apresentando-os, o representante da divindade reguladora dos mundos desce até nós em toda a sua nudez adamítica, todo feito de barro estreme, sem parra nem tiara, mãos limpas de coriscos fulminadores. Ecce homo!
E é este pobre homem, lamentável na sua modesta humanidade comum, que nos promete para depois da guerra, acalmados os ânimos e passado o risco de desagrado, uma cenciclica solena, um sílabo, recordando – depois do burro morto… – as doutrinas da Igreja e condenando as atrocidades!
O catolicismo debate-se num mar de contradições espantosas, que os sofistas procuram remediar. Assim os católicos franceses sustentam que não falta ao mandamento divino quem combate pela França – pelo Direito, pela Justiça, pelos atacados… E então os católicos autro-alemães? Esses dizem naturalmente a mesma coisa. E o papa, que é pai de todos, não sabe como salvar a sua infalibilidade e a sua autoridade divina. E a sua pessoa e bens.
Ó miséria das coisas humanas!…