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Primeira Edição: revista A Sementeira, 2ª série, Nº5, Maio de 1916
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/nocoes-rudimentares-sobre-amor-livre/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Nem só dos adversários partem as caricaturas do amor livre: os seus adeptos obscurecem-lhe amiúde o conceito, misturando e confundindo noções e aspetos diversos.
Assim, é frequente chamar livre ao amor ou à união sexual que se não submeteu à sanção legal ou religiosa. Ora o laço legal só constitui verdadeiramente uma certa coação para os ricos, por motivos económicos; e esses mesmos procuram hoje um corretivo no divórcio e nas diversas formas de separação por lei. Para os pobres, o matrimónio e o divórcio decretados por um juíz têm um valor cada vez mais reduzido, e o último está mesmo fora do alcance da sua bolsa.
O laço religioso ou legal vale sem dúvida para quem nele vê qualquer coisa misteriosa e sacra, para os crentes da religião da Igreja ou do Estado; mas esses sentimentos são hoje laços cada vez mais frouxos e raros, e os casamentos legais e até religiosos tornam-se meras formalidades, que os homens executam por hábito ou para estar bem com todos, sem ideia alguma da indissolubilidade eterna e sagrada.
Formalidade que seja, o casamento religioso ou legal é certamente uma incoerência para o livre pensador ou para o anarquista, negador do Estado, pois o livre pensador ou o anarquista dá assim prestígio e dinheiro ao inimigo. Mas se isso tem certa importância especialmente para o propagandista, cuja arma principal é o exemplo, nada tem que ver propriamente com a questão particular que nos ocupa: a liberdade do amor.
O que ao matrimónio «legítimo» se contrapõe, não é a união livre, mas o celibato legal. Ora o celibatário pode satisfazer ou enganar a sua necessidade de amar com a antítese do amor livre – a prostituição, horrível caricatura do amor, protótipo do amor escravo, um dos cancros gerados pelo regime da propriedade privada e do salariato; ou com a mancebia, que é hoje, em regra, o amor escravizado pela dependência económica ou moral da mulher, às vezes do homem, muitas vezes de ambos. A própria abstinência é ainda uma pesada escravidão, cujas funestas consequências são bem conhecidas dos fisiólogos e moralistas; e é uma escravidão porque a liberdade positiva consiste precisamente na possibilidade de normalmente satisfazer as necessidades naturais.
De modo que a supressão da formalidade legal ou mesmo religiosa é um passo mínimo, por vezes nulo, para a liberdade do amor. Bem mais fortes grilhões do amor escravo são a dependência económica, a situação dos filhos, o medo à violência e à vindicta, o pavor das conveniências sociais, as diferentes formas de coação direta ou indireta, que entre si se amparam e se produzem, provocando uma opinião rotineira que constitui o seu ambiente moral necessário e que sanciona e poetiza como simpáticos dramas passionais mesmo as mais selváticas e odiosas expansões da brutalidade física.
Demais, a liberdade e a sinceridade do amor são, por assim dizer, feridas no ovo pela massa das mentiras convencionais de que se vê rodeada a adolescência, mantida, sobretudo a parte feminina, na ignorância das armadilhas, traições e desenganos da ficção de amor e de união sexual hoje dominante. Contra isso, aliás, começa a sentir-se uma forte reação, mesmo da parte de meios pouco revolucionários, como o prova por exemplo a aceitação que teve o interessantíssimo livro de Bessède – L’Initiation sexuelle.
A união livre é, pois, a união unicamente baseada sobre o amor, o consentimento recíproco, a consciência esclarecida do problema sexual, sobre a independência material, essencialmente económica, dos dois amantes, sobre o mútuo respeito das vontades contrastantes, condições estas bem difíceis de encontrar no atual regime de escravidão económica e política, tanto no matrimónio legal como no celibato, tanto na união duma hora como no casamento por toda a vida.
Pode, é certo, existir uma certa dose de liberdade numa das formas atuais de união sexual, apesar da dependência económica, política e familiar existente; mas então pode suceder que numa união legal haja maior porção de amor livre do que no casamento extralegal, quando naquela se não dá valor às formalidades legais e os dois seres unidos são duas individualidades e duas vontades que se respeitam.
E isso mostra que união livre é coisa bem diferente da mancebina ou do celibato.
Mas há ainda outra confusão frequente e importante, de que me ocuparei num próximo artigo, continuando a procurar deslindar de entre todas as outras noções, que com ela andam enredadas, a noção de liberdade do amor.