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Primeira Edição: Originalmente no periódico brasileiro A Lanterna. Extraído do jornal A Aurora do Porto, 20 dezembro 1914.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-anao-vai-para-a-guerra/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O gigante apelou enfim para a cooperação do anão, e o anão sente-se todo desvanecido com a honra insigne de ser arrastado no turbilhão guerreiro… A pedido da poderosa Inglaterra, em obediência aos velhos tratados, o pequeno Portugal vai mandar os seus soldados para combater os alemães.
Invocam-se os velhos tratados. O que se não disse contra esses «unilaterais» tratados no tempo famoso da oposição republicana! A minha adolescência foi educada nessa pregação inflamada. Os poetas nacionais cantavam o ódio aos «piratas». A Portuguesa, hoje hino oficial, consagradan em 1891 pela revolta do Porto, exprime um colérico protesto contra a humilhação dum ultimatum espoliador, que os tratados de aliança não tinham impedido:
seja o eco duma afronta
o sinal do ressurgir…
Hoje, o eco da referida afronta repercute-se todo em hosanas à velha Albião usurpadora; e o partido republicano, que deve o seu primeiro crescimento e o 31 de Janeiro à guerra feita à aliança inglesa, dedica-lhe neste momento a ode mais entusiástica.
Mais uma vez se verifica que o ponto de vista do governo não é o ponto de vista da oposição; e que, quando se pretende conquistar o poder, tudo se diz sem consequências nem compromissos…
O governo português, alegando a fidelidade aos tratados, celebrados sob o regime absoluto sem consulta nem ciência do povo (como, aliás, se faria hoje, em época de ficção parlamentar), andou a meter à cara da Inglaterra o apoio das suas tropas – ávido de consolidar o regime republicano e de garantir a independência nacional, apesar do respeito das pequenas nacionalidades solenemente afirmado pela Grã-Bretanha e por ela candidamente apresentado como razão justificativa da sua intervenção na atual contenda…
É uma bem triste dependência para uma tal independência!
Depois, segundo parece, é também necessário fazer o sacrifício para conservar as «nossas» colónias, intangível dogma nacional, que os sacerdotes do patriotismo defendem com zelo ardente. É preciso conservar as colónias para os capitais estrangeiros e para vazão da boa burocracia portuguesa, civil e militar.
Mas, é claro, quem faz o sacrifício é sobretudo o pobre, que costuma emigrar por miséria para o estrangeiro e que pouco entende daquelas altas conveniências políticas.
Para o animar no combate glorioso, falam-lhe ditirambicamente em defesa da Liberdade, da Civilização, do Progresso, – pois, segundo se deduz de todas as declarações enfáticas dos estadistas, é essa a primeira, a essencial, a única preocupação dos governos, de todos os governos ao mesmo tempo, de um lado e do outro – que é o que torna a coisa mais extravagante e pitoresca. De parte a parte, «civiliza-se» com uma ânsia verdadeiramente comovedora.
É, pois, pela Liberdade e mias partes que o anão se vai bater ao lado do gigante, talvez não muito convictamente, visto que o anão não tem, como o gigante aliado, o serviço militar voluntário.
Segundo se diz, os monárquicos contrariam esse cumprimento solícito de tratados, que vêm da monarquia absoluta e aos quais a monarquia constitucional se conservou fiel.
Com o seu passado e no terreno em que se encontram, bem mal colocados estão os rialistas para combater a participação de Portugal no conflito; e a sua oposição hipócrita não passa duma baixa especulação política. Quiseram a aliança inglesa, serviram-se dela como papão e amparo, foram abjetamente subservientes à aliada – e ousam fazer agora! O que podem fazer rejubilar com a adesão dos republicanos ao seu antigo ponto de vista…
E depois, em nome de que altos princípios, com que ponto de apoio seguro, vêm eles atacar uma atitude guerreira e nacionalista?
Outra coisa são as razões dos inimigos da guerra e do militarismo – e das suas causas primárias: o Capitalismo e o Estado.
Lisboa, 20 de outubro
Neno Vasco
(De A Lanterna)