A Conflagração Europeia
As Comédias das responsabilidades. Liquidação final?

Neno Vasco

10 de agosto de 1914


Primeira Edição: A Lanterna (S. Paulo), N. 259, 5 setembro de 1914.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/a-conflagracao-europeia/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Lisboa, 10 de agosto.

Cada um dos países beligerantes, como é costume, pretende assumir o papel simpático de beligerante à força, de provocado, violentamente provocado. Leiam-se as notas e documentos oficiais de cada um deles, assim como a respetiva imprensa.

Trata-se, naturalmente, de uma questão de interesses comerciais, de exportação de porcos, de portos e caminhos de ferro, de mercados a conquistar e a disputar, de domínios dos mares, etc. Patriotismo, ódios nacionais, desforras, rancores de raça e de religião, defesa de independência e de liberdades, tudo isso é para o vulgo: esses sentimentos são excelentes alavancas nas mãos dos dirigentes. Em todos os países se preparava a guerra; em todos se desenvolvia um partido militarista e guerreiro; em todos se fortificavam os interesses de conquista e de paz armada; todos buscavam mais ou menos um pretexto e uma boa ocasião.

Mas há uma opinião nacional e internacional, força importantíssima que é preciso respeitar. Diante dela é que convêm assumir o papel de pessoa pacata arrastada para a luta pelos cabelos, constrangida a bater-se em legítima defesa. Vimos a própria Rússia, cujo respeito pelos povos oprimidos dentro do seu império é o que se sabe e que tem o amável hábito de responsabilizar os partidos, seitas e raças pelos atentados individuais, correr generosamente a salvar os irmãos sérvios e protestar com santa indignação contra a inacreditável infâmia de atribuir a Áustria a uma nação inteira a responsabilidade do atentado de Sarajevo!

A França e a Inglaterra são naturalmente os países que mais devem ter em conta a opinião pública, e sobretudo a do seu proletariado. Por isso os dois governos têm sofrido com evangélica paciência várias impertinências tudescas, sem deixar de ir empatando as vazas à perigosa rival… Por isso, ainda desta vez, se mostraram conciliadores e propuseram soluções pacíficas, tanto mais que bem podiam esperar que a Rússia se preparasse ainda melhor.

E, não há dúvida, os dois governos foram magnificamente servidos pelas circunstâncias e pela sua própria habilidade. Foi primeiro aquele assombroso ultimatum – equivalente a uma brutal declaração de guerra – do império austro-húngaro à pequena Sérvia. Depois a atitude intransigente e provocadora da Áustria e da Alemanha, impacientes decerto ante o crescente poderio da Rússia. Por fim, aquela astuta saída da Itália, que, por lhe não convir tão desastrosa e impopular guerra, ao lado da Áustria contra a França, declarou agressoras as suas aliadas e considerou-se desobrigada dos compromissos da «Tríplice Aliança»…

O proletariado tinha o maior interesse em evitar a conflagração. Mas era ao da Áustria e da Alemanha que principalmente competia a tarefa neste momento. Ora a social-democracia germânica não soube ou não pode evitar a catástrofe: mais tarde, com melhores elementos, poderemos talvez fazer um juízo sobre este ponto. E por isso, o operariado consciente de França viu-se numa situação terrível, apesar da sua vontade de paz. Explodiram todas as cóleras amontoadas na Europa contra o brutal imperialismo teutão, enorme perigo para a paz e para o progresso moral. A guerra assumiu logo o caráter duma luta defensiva, duma cruzada santa contra o militarismo agressivo. Receou-se uma nova vitória do soldado prussiano sobre o foco revolucionário da França.

Entretanto, os reacionários esfregam as mãos de contentamento. Penda para onde pender a vitória, dizem eles, a vitória será em última análise das ideias conservadoras, do imperialismo e dos governos fortes. Os chacais regozijam-se impudentemente ante a carnificina, abastecimento dos seus banquetes, cimento do seu domínio; mas talvez se enganem, como já se enganou em boa parte, com a sua aventura tripolina, a monarquia italiana.

Há sem dúvida o exemplo da guerra franco-alemã de 1870, causadora de um recuo das ideias liberais em geral e dos ideais e forças de emancipação operária em particular. Mas são outros os tempos e circunstâncias, mesmo pondo de parte a hipótese do esmagamento do imperialismo germânico. A Comuna, hoje, poderia perfeitamente nascer em bem melhores condições…

Hoje, as ideias libertárias têm muito maior difusão; e por outro lado, a crise é muito mais geral, rependtina e profunda do que em 1870. A guerra não se limita a dois países, mas alastra por um continente inteiro, repercutindo-se rápida e violentamente por todos os recantos do globo, tanto mais que aumentou muito em complexidade e sensibilidade o organismo das trocas e da produção. Os Estados sairão da luta exaustos e arruinados, os povos irritados e doloridos.

Em 1875, numa carta de que existe o rascunho truncado, Mikhail Bakunin, lamentando-se sobre os efeitos da guerra de 70, escreve a Eliseu Reclus estas palavras: «Resta outra esperança: a guerra universal. Esses imensos Estados militares hão-de acabar forçosamente por se destruir e devorar uns aos outros, mais tarde ou mais cedo. Mas que perspetiva!…»

Cumprir-se-á a profecia apocalítica do grande revolucionário?

Nascerá sobre um monturo de cadáveres, vítimas da organização burguesa, a flor encarnada da revolução social emancipadora?

Sim: o apocalipse bakuniniano parece que vai cumprir-se. É o fim do mundo – pelo fogo.

O fim do mundo capitalista.


Inclusão: 24/06/2021