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Primeira Edição: NOTAS PERDIDAS foi o título duma coluna na revista A Sementeira na qual Neno Vasco assinou, com o seu outro pseusódimo Zeno Vaz, em todos os números entre outubro de 1911 e fevereiro de 1913, pequenas crónicas que aqui transcrevemos por ordem cronológica (numeração nossa).
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/notas-perdidas/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
NOTAS PERDIDAS (1) – Outubro de 1911 | A Sementeira, 1ª série, Nº37
NOTAS PERDIDAS (2) – Novembro de 1911 | A Sementeira, 1ª série, Nº38
NOTAS PERDIDAS (3) – Dezembro de 1911 | A Sementeira, 1ª série, Nº39
NOTAS PERDIDAS (4) – Janeiro de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº40
NOTAS PERDIDAS (5) – Março de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº41
NOTAS PERDIDAS (6) – Abril de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº42
NOTAS PERDIDAS (7) – Maio de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº43
NOTAS PERDIDAS (8) – Junho de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº44
NOTAS PERDIDAS (9) – Julho de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº45
NOTAS PERDIDAS (10) – Agosto de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº46
NOTAS PERDIDAS (11) – Setembro de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº47
NOTAS PERDIDAS (12) – Outubro de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº48
NOTAS PERDIDAS (13) – Novembro de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº49
NOTAS PERDIDAS (14) – Dezembro de 1912 | A Sementeira, 1ª série, Nº50
NOTAS PERDIDAS (15) – Janeiro de 1913 | A Sementeira, 1ª série, Nº51
NOTAS PERDIDAS (16) – Fevereiro de 1913 | A Sementeira, 1ª série, Nº52
Um jornal teve a engenhosa ideia de esboçar uma quasi-estatística dos foguetes queimados e das bandeiras republicanas vendidas neste venturoso período de democráticas efusões. Foram milhares de dúzias de foguetes e os fabricantes de pavilhões nacionais não chegam para as encomendas. As festas de 5 de outubro, então, marcarão o delirante apogei das duas patrióticas indústrias, gloriosamente renovadas.
Ai de nós! tudo passa!… E as luas de mel não são das coisas menos velozes em passar. Não devem por excessivas esperanças no futuro os beneficiários daqueles renovos industriais, porque as fortunas construídas sobre o puro sentimento popular têm alicerces instáveis e movediços e são sacudidas pelo vento forte do desengano…
Quem sabe se o termómetro, hoje consultado pelo imaginoso jornalista, não começará amanhã a escala descendente da grieza e do gelo?
– Viva a folia! Haja alegria à beira-mar! Clamam os patriotas, mirando com olho desconfiado e torvo os grevistas perturbadores do regozijo nacional.
Mas quem sabe se os mesmos não hão-de dizer brevemente, olhos baixos e mãos nos bolsos, desconsoladamente:
– Ai! quem me dera na algibeira o dinheiro gasto em estoiros e farrapos…
Boa gente! Toca a divertir! tristezas não pagam dívidas, e as ilusões valem por vezes a realidade… Mas à cautela vê se dás às tuas ruidosas alegrias mais sólidos fundamentos.
Um mês de política absorvente. A política de Estado, as rixas de fações, as intrigas de chefes, de tal modo ocuparam os cuidados, que pareceram toda a vida social da nação. As declamações, os clamores, a gritaria, o barulho, exageraram toda essa vã agitação e deram-lhe foros de essencial importância.
O povo – esse foi o terreno disponível para manobras. Todos falaram em nome dele, todos dele dispuseram, todos o pretenderam a seu lado, incapaz de se deixar embaír, senhor da verdade, repleto de bom senso. «O povo é quem manda» – como dizem nos seus cartazes os empresários teatrais…
E o caso é que o mísero morde a isca, coitado. Inflamam-no, dizem-lhe coisas bonitas. Acredita piamente nas panaceias democráticas e patrióticas dos charlatães de praça – e de tal maneira as eleva às núvens, que não só lhes sacrifica os seus interesses primeiros, mas obriga todos os pequenos a calarem as suas elementares reivindicações, sem desconfiar que faz o jogo dos grandes, tão pouco dispostas, aliás, aos patrióticos sacrifícios. E se começa a derrubar ídolos, é ainda um pouco por amor a outros e em proveito de outros.
Quem adula o povo, não o quer libertar ou instruir, mas governar ou explorar. E o trombeteado democratismo está a mil léguas do verdadeiro e profundo sentimento de igualdade.
Querem um bom retrato de democrata? Não repararam em todos os pormenores da questão levantada pela vaia ao sonoro tribuno, ainda há pouco tão querido das massas?
Impossível! Não podiam ser os mesmos homens que outrora delirantemente o aclamavam. Os que nos vitoriam são simpáticos, mas os que nos apupam têm «caras patibulares» e surgem da «sargeta».
E o reputado homem de bem viu nos seus agressores os sinais da jorna paga. Se fossem seus semelhantes, seus colegas – não faria sem provas certas a acusação infamante. Mas, ora! As qualidades inconcussas de homem de bem, o cavalheirismo indiscutível – são unicamente aplicáveis quanto aos da sua igualha…
Se é verdade o que referiram as gazetas, numa cidade conquistada pelos republicanos chineses disputavam a chefia dois generais revolucionários. Em face da contenda motivada pelo pomo de discórdia do poder, os soldados reuniram-se e, lamentando profundamente o passo que se viam constrangidos a dar para bem da causa republicana, decidiram conciliar os dois rivais – fuzilando-os.
Oh! sem dúvida! o fuzilamento, mesmo provisório, é uma medida ligeiramente excessiva; mas feitas estas humanitárias reservas, que me dizem ao gesto expedito e decisivo dos rebeldes celestes? Não lhes parece que, sendo talvez pouco celestial, é todavia repleto de bom-senso humano e oferece um salutar exemplo aos diabos europeus, que a respeito de fuzilamentos só conhecem os de Ferrer e dos tripolitanos?
Imagine-se que os republicanos portugueses imitavam os revolucionários chins – com as devidas atenuações moldadas na reputada brandura dos nossos costumes. Salvo o sr. candidato Bernardino Machado, gran-mestre do Cordialismo Nacional, não se vê bem qual dos nossos grandes generais políticos poderia escapar à implacável justiça popular.
E se a moda chinesa pegasse, das duas uma: ou ficaríamos livres duma vez da praga nefasta dos chefes e messias, por falta de concorrentes, ou os ditos chefes evitariam as brigas e formariam um trust cordial, revelando assim ao público desiludido a sua identidade e o seu compadrio manhoso.
Seria o descalabro dos messias de oposição, atrás dos quais correm eternamente esperançadas e babosas, as ovelhas de velo propício às duras tesouras da tosquia!
Em 23 de dezembro foi absolvida na Boa Hora uma jovem casada, que ali viera sob a inculpação de ter furtado a outra mulher objetos no valor de 50$000, crime pelo qual foi pronunciada em 5 de março, prestando a fiança de 600$000 e saindo em liberdade. Havia quatro testemunhas de acusação, que disseram nada terem presenciado, sabendo do caso apenas porque o tinham ouvido contar… umas às outras! O juíz nem quis ouvir as testemunhas de defesa e mandou a ré embora.
E o Século comenta: «O mais singular é que, se não tem prestado fiança, teria estado quase um ano no Aljube, quando nem motivos havia para ser pronunciada!»
E nós pensamos: se fosse um réu político, sobretudo uma vítima dos ódios de classe, as provas teriam sido mais do que suficientes. Um depoimento de polícia e dois de gente que «ouviu dizer» que fariam prova completa. Seja exemplo Ferrer!
E se o crime, embora comum, fosse mais importante, um belo e misterioso assassinato por exemplo, é bem provável que as testemunhas valessem. Pouco importaria estar hoje experimentalmente demonstrado que, não só os falsos testemunhos, mas os testemunhos sinceros estão sujeitos a todos os generosos de cauções. Pouco importaria estarem os homens habituados, especialmente nestes tempos de incultura, às fantasias, aos raciocínios seguros sobre aparências incertas, aos palpites e sonhos, à terrível auto-sugestão da certeza…
Não se conhece o grito angustiado e profundo de Linda Murri aos seus juízes: «Vós não procurais a verdade: procurais demonstrar a minha culpa!»
Procurar o culpado a todo o custo é a psicologia profissional das magistraturas. Um juíz de Berlim, proclamava, há poucos anos, com tranquila inconsciência, que a segurança da sociedade exige a punição, pelo menos, dum presumido culpado, na falta do verdadeiro!
Os «erros de justiça» (admitindo que haja penas justas!) são bem mais frequentes do que se imagina: e os «erros de justiça» convém nunca os reconhecer – para o prestígio da infalível deusa.
A mulherzinha que jogou na lotaria da Boa Hora, tirando a sorte grande da liberdade, podia muito bem ter esperado na cadeira ou ir lá parar e, tendo entrado inocente, sair com o curso completo da «Universidade do Crime». E encontrar cá fora o repúdio de todos.
E roubar então a valer.
Colho num diário operário a narração dum facto significativo. Seiscentas crianças pertencentes a famílias de grevistas de Lawrence, Estado de Massachusetts, foram enviadas a Nova York, onde famílias operárias as acolheram até ao fim da grande greve das fiações. E a este gesto de solidariedade entre oprimidos, juntaram os trabalhadores outro de dignidade e independência: recusaram com desdém o oferecimento de algumas riquíssimas damas novyorkinas – Miss Helen Gould, Mistress Belmont e outras – que queriam tomar conta de parte dos pequenos. E explicaram:
– Não queremos o vosso dinheiro pouco limpamente adquirido; cá nos arranjamos entre nós até ao dia em que tomarmos posse das riquezas que os capitalistas nos roubam há tanto tempo.
Já algumas municipalidades e seitas religiosas tinham tido a estupefaciente coragem de repelir os generosos donativos dos arquimilionários Carnegie e Rockfeller!!
Decididamente, o mundo está perdido. Aqui temos uma indústria enormemente lucratica: a caridade. Graças a essa insignificante percentagem, a esse levíssimo imposto, a esse insensível prémio de seguro, tinha-se o direito de extorquir mansamente tesouros ao suor, à doença e à miséria dos pobres, com o suave contrapeso dos louvores jornalísticos e eclesiásticos, das bênçãos dos desgraçados, dos retratos a óleo e do mármora das estátuas. E é esse negócio, esse mesmo, que declina!
Em breve terão os ricos de suplicar, lacrimosos, a esmola de lhes aceitarem uma esmola, que possa afastar aquele terrível ajuste de contas, a que aludem os fiandeiros de Lawrence!
Recentemente um diário noticiava, em telegrama de Condeixa, que uma mulherzinha da freguesia da Ega, casada há uma dúzia de anos e com o marido no Brasil há uns sete, foi registar o nascimento dum filho, declarando honestamente que para a produção daquele tenro fruto do amor não pusera prego nem estopa o distante e indiferente esposo. Mas o oficial do registo civil, sacerdote inflexível da lei, explicou gravemente que, segundo os sagrados preceitos dessa deusa, o petiz, vindo a este mundo na constância do matrimónio, era legítimo filho da mãe e do cônjuge legal, protestassem embora a mãe, o bebé, o amante, o marido e as leis naturais. E lavrou o assento solenemente.
O caso presta-se sem dúvida aos gracejos, quipròquós e calembures dos humoristas e forneceria assunto para uma farsa à Courteline; mas tem igualmente um aspeto muito sério, pondo em destaque uma das inúmeras ficções legais, ou melhor: sendo apenas uma manifestação grotesta da ficção sobre a qual assenta inteiramente o edifício pomposo da legalidade.
O casamento legal é já, todo ele, uma ficção: a ficção jurídica do amor. Ficção a base sobre que ele repousa: o direito de propriedade. Ficção – sobretudo para os pobres – a garantia que ele traduz.
Mas a própria lei é toda uma ficção. Não está porventura o soberbo monumento jurídico construído sobre uma munimental ficção: que ninguém pode desconhecer a lei? A ignorância da lei a ninguém aproveita. No entanto todos a ignoram. Ignoram-na até os legisladores, os ministros, os juízes, os advogados, os seus cultores e sacerdotes.
Ficção o modo como a lei é produzida, a escolha dos seus elaboradores, o «interesse geral» que eles dizem representar. Ficções as eleições, as maiorias e os parlamentos.
Ficção a rigidez na aplicação da norma jurídica. As leis naturais aplicam-se de per si: são relações certas. A lei escrita sobre os embates dos interesses e temperamentos diversos, varia conforme os lugares, as épocas, as resistências do meio social, os intérpretes e magistrados, a posição social dos pacientes. Ficção a «igualdade perante a lei».
Não temos, pois, de que rir. O facto está na ordem das coisas: aceitemo-lo gravemente. Um espermatozóide ilegal penetrou numa propriedade privada, ainda com legítimo dono: o fruto pertence portanto a este. É dos livros, istó é: é dos códigos.
Bonnot, que se dizia anarquista-individualista, escrevia as suas memórias quando foi cercado e morto, como um javali, pelos caçadores implacáveis e pela feroz matilha.
E entre as frases que a polícia deixou transparecer, acentua-se este grito:
«Tenho que viver a minha vida.»
Sem dúvida! Lobos e cordeiros têm que viver a sua vida. O capitalista vive a sua, explorando o salariado e contruindo a sua riqueza sobre o sangue da besta humana extenuada. O general vive a sua, trucidando e saqueando, e assentando sobre montões de cadáveres a sua rútila glória militar. Se Bonnot tivesse sido um ou outro, em vez de execrações e impropérios, teria recebido aclamações e medalhas.
Mas o sábio, o artista, o inventor, vive igualmente a sua, muito larga e muito intensa, no gozo íntimo e na alegria compartilhada. Vive também a sua vida o produtor, no contentamento do trabalho útil; e se não se resigna à escravidão do salariado e descobre o caminho da liberdade, sente o imenso prazer da marcha e do esforço por um ideal, e o seu coração bate em uníssono com o dos companheiros de viagem.
Todos nós temos que viver a nossa vida, mas de que modo?
Bonnot deixou escrito:
«Tenho o direito de viver. Todo o homem tem o direito de viver. E pois que a vossa sociedade imbecil e criminosa, pretende arrancar-me esse direito, tanto pior para ela, tanto pior para vós todos.»
E tanto pior para ti. Ó Bonnot, que devias ser o mais fraco e havias de sucumbir, tendo imitado a moral vigente e usado as mesmas armas da sociedade, sem lhe seguir as formalidades legais… E sucumbir no ódio de todos e no desgosto de ti próprio, na dor humilhante do arrependimento, como tu mesmo confessas: «O que fiz devo lamentá-lo? Sim… talvez; mas se tiver de continuar, apesar do meu arrependimento, continuarei.»
É necessária a luta? É indispensável sacudir o jugo? Sim! Mas solidária contra a opressão, luta pela emancipação comum, único terreno onde poderá desabrochar a flor da liberdade individual. Luta dos oprimidos contra o banditismo burguês, não a imitação desse banditismo, a perpetuação dessa guerra monstruosa de cada um contra todos.
A sociedade fez de Bonnot um monstro. E no entanto o desgraçado tinha valor, energia, inteligência, um vivo sentimento de justiça e de bondade. Poderia ter sido um herói. Sabeis como terminam as suas memórias? Com estas palavras: «Estou decidido a tomar uma companheira.» Surpreenderam-no os caçadores, quando formulava este projeto, esta suave esperança do seu coração de animal acossado!
E então, ao som dos primeiros tiros, traçou ainda a lápis… um clamor de ódio? Não! A afirmação da inocência de alguns que por sua causa haviam sido presos!
Monstro, sim… mas vítima também.
Quando há qualquer conflito entre o capital e o trabalho, os fiéis zeladores da ordem e os solícitos zeladores da paz social apressam-se a apelar para o «patriotismo e espírito republicano», para a dedicação e espírito de sacrifício… dos trabalhadores somente. Aos outros ninguém se dirige, e se alguém se dirige, não é ouvido.
Os grupos e fações da política digladiam-se na intriga e na ânsia do poder e do predomínio. E digladiando-se, insultando-se, ameaçando-se, acusam-se uns aos outros de fomentadores de discórdia e de ruína, de traidores à pátria e à república. A briga, entretanto, continua.
Se uma cidade, ou uma região, ou uma corporação burguesa, ou um grupo influente se sente atingido nos seus interesses por uma decisão ou um esquecimento de um ministro ou do parlamento, o protesto irrompe impetuoso e violento. Há manifestações ruidosas e importantes. Deputados resignam mandatos. Não há considerações que valham. O patriotismo e o espírito republicano são postos de lado. Todos tratam da vida e deixam a paciência e o sacrifício para os pobres.
Com a greve do pessoal dos elétricos, tivemos de novo a estafada antifona, entoada pela voa Câmara Municipal. Ia chegar a missão norte-americana do Canal do Panamá para apreciar Lisboa e o seu porto: os grevistas deviam, pois, adiar para melhor ocasião as suas reivindicações. E porque não devia antes ceder a Companhia?
Ela é que recusava até entrar em negociações com o pessoal associado. Não queria discutir, não lhe importava a interrupção do serviço público. E é ela que mais há-de lucrar com o engrandecimento da cidade. Desenvolvendo-se esta, o capital (que por sinal é inglês e norte-americano) ganhará mais sem esforço, ao passo que o trabalho, se quiser melhorar um pouco, há-de fazer precisamente greve, sem contar que a grandeza da cidade lhe dará também a vida mais cara.
Só se apela para o «patriotismo e espírito republicano» do operariado porque se supõe que ele, não sendo o mais rico em dinheiro, é contudo o que possui maior soma de ingenuidade e boa fé!
O parlamento suprimiu a pensão à família de Eça de Queirós, primeiro, porque dois dos filhos do autor da Relíquia alistaram-se nas hostes de Couceiro e tomaram parte na incursão rialista; segundo, porque a viúva e as filhas podem perfeitamente dispensar o dinheiro do contribuinte.
Há, porém, outra bela razão, que não lembrou aos nossos parlamentares. O Estado não paga pensões aos velhos operários, nem às viúvas e filhos menores dos trabalhadores que um acidente vitimou ou que a morte colheu na labuta, prematuramente.
No entanto, o trabalho manual é a base da sociedade. É ele que sustenta os produtores e os parasitas. Passa-se sem romancistas, mas não se viveria um dia sem operários: a obre destes é de utilidade geral, a daqueles é destinada ao gozo duma pequena minoria, em boa parte composta de ociosos.
Em boa justiça, pois, mesmo simplesmente democrática e sem tinturas de revolução social, enquanto aquela dívida «privilegiada» ao produtor essencial não estiver paga, absolutamente ninguém tem direito a pensões do Estado.
No tempo heróico dos comícios e das minorias parlamentares, num caso análogo o argumento havia de surgir sem dúvida, e com que efeito! Hoje, ninguém teve o mau gosto de o sugerir.
Pelo contrário: a pensão foi logo passada a outra família ilustre, para que não acusassem os deputados de mesquinha avareza… quanto ao dinheiro do contribuinte, isto é, do produtor manual. E recusou-se a revisão dos outros diplomas de pensão, rejeitou-se mesmo a proposta de extinção das pensões às famílias de… de quem? De grandes beneméritos?
… De Hintze Ribeiro e Serpa Pimentel!
«Todos os bons portugueses devem contribuir para a compra duma esquadra aérea».
Porque, nos grandes planos dos nossos aéreos patriotas, Portugal há-de vir a ser uma grande potência militar – «sobre a terra e sobre o mar», e nas regiões atmosféricas. Façamos um aditamento à Portuguesa.
Segundo parece, a integridade da «pátria» e das colónias ficará deste modo plenamente garantida contra as cobiças conquistadoras das nações e contra os arranjos diplomatico-financeiros entre os grandes colossos europeus…
Um simples patriota, nada revolucionário, mas eivado de rasteiro bom-senso, seria talvez arrastado a supor e a afirmar a vantagem de ter primeiro riqueza industrial e instrução para ter que guardar e ter com que pagar os guardas, sem a ruína e descalabro das largas despesas improdutivas; seria talvez levado a imaginar que, para valer a pena conservar e defender colónias, é necessário antes poder «colonizá-las» e valorizá-las…
Mas os nossos patriotas aéreos detestam os voos rasteiros: andam de cabeça no ar e querem elevar-se às núvens. E tanto querem imitar os colossos, tanto ardem por arrotar à grande e à francesa, de tal modo gostam de começar pelo fim, que, tendo posto os armamentos antes da indústria, até nos armamentos principiam pelo fecho – pelo ar. Preferem os castelos no ar e desdenham os alicerces. Amam o incerto e o imperfeito. Têm o desejo infantil dos «bonitos» novos e inexperimentados.
Pois bem: eu por mim, considero-os inimigos de classe, mas não lhes auspicio a morte e desejo-lhes o tambolhão em terra mole. E ao menos, se os aviadores cairem, como não terei dado um vintem, a queda não me pesará na consciência.
A Aurora, do Porto, foi querelada por dois artigos antimilitaristas, e segundo os nossos camaradas, a lei foi-lhes aplicada ilegalmente, isto é, antes do prazo em que deveria começar a ter vigor. O famoso efeito retroativo, outrora tão verberado…
Assim os nossos amigos, que consomem as suas reduzidas horas e os seus magros vinténs, arrancados ao pão para a boca, na propaganda desinteressada e ardente duma ideia profundamente sentidaestão expostos, por causa dum «delito de imprensa», a passar uma temporada na cadeia e a pagar uma pesada multa.
Sendo a liberdade a possibilidade de facto, a liberdade dos pobres é já bem limitada pela falta de meios, monopolizados pelos ricos, e pela falta de tempo, que só os ociosos e parasitas têm com abundância. Pois bem: essa limitação ordinária não basta. O Estado acha-a ainda ampla demais. Os que dispõem largamente dos meios de combate para a luta das ideias ainda acham pouco amordaçar indiretamente os adversários, por meio do salário insuficiente e da longa jornada de labura.
Que não clamaria agora a imprensa republicana, se estivesse na oposição?
E diziam-nos que a República nos daria pelo menos a plena liberdade «política», se não económica, de pensar e de expor ideias! Que os anarquistas poderiam ao menos fazer a franca propaganda dos seus ideais!
Com efeito!
Fez-se uma lei para proteger a nova religião do Estado, e tanta pressa houve de a aplicar aos anarquistas que as formalidades legais foram saltadas a pés juntos.
De 16 a 22 de setembro, no Havre, realizou a Confederação Geral do Trabalho francesa – a famosa C.G.T. – seu duodécimo congresso geral, que foi também o décimo oitavo congresso dos trabalhadores de França.
Ao contrário dos parlamentares, que, tomados no seu conjunto, de nada entendem e tudo decidem sem apelação nem agravo, os congressistas operários, todos competentes, discutiram e resolveram sobre os interesses gerais da sua classe, com amor, com atenção e com assiduidade.
Não desprezaram a obra urgente das reivindicações quotidianas e da imprescindível defesa contra o regime capitalista, essa ação contínua que mantém unidas e ativas as forças proletárias e as prepara para a emancipação completa, nem desdenharam o fortalecimento da sua organização interna; mas também não se esqueceram dos métodos de luta e do escopo final a atingir.
E de novo foi afirmada, quase unanimemente, a autonomia sindical em frente dos partidos; de novo se proclamou essa forte e salutar independência, segredo da vitalidade e influência do sindicalismo francês. De novo se afirmou o acordo dos proletários sobre o terreno comum dos seus interesses económicos, para sustentar a luta de classes pela ação direta, isto é, com as armas comuns a todos os trabalhadores, homens e mulheres, menores e adultos, nacionais e estrangeiros, e que resultam da sua própria condição de assalariados pobres e da associação das suas forças – a greve, a boicotagem, a sabotagem e tantas outras.
Bela lição, a do operariado francês organizado, bem de aproveitar e de seguir! Os graciosos e pretenciosos rabiscadores das gazetas burguesas, que tudo copiam da França, modas e frases, leis de políticos e ideias de filósofos, processos jornalísticos de bluff e gestos de governantes, falam desdenhosamente em «ideias mal digeridas na literatura revolucionária de França?» e não quereriam que também os bons exemplos fossem imitados, que também os operários tivessem que aprender lá fora, na capital do Ocidente, como dizia Comte…
Não pode ser, ó bons apóstolos!
Em poucas semanas, os Estados cristãos dos Balcãs destruiram o domínio político dos otomanos na Europa. Quatro séculos e meio após a morte do Império do Oriente, às mãos dos turcos, deixam estes o campo livre à reconstituição do mesmo Império, sob a hegemonia eslava.
Porque, por trás do mentiroso pretexto de «liberdade de povos», há imperialismo e negócio. Os dirigentes políticos, os financeiros, os exportadores de porcos e de trigos, os cleros, os diplomatas, toda essa corja soube explorar habilmente os ódios de raça e de religião, agitar a bandeira da «libertação de irmãos», apagar por um instante as dissenções entre as nacionalidades e seitas cristãs. Triunfa a nova cruzada. Independência de povos! Libertemos os nossos irmãos!
E quando os albaneses reclamam a sua autonomia, hipocritamente apoiada pela Áustria, que receia a extensão da influência russa e sérvia, a perda das suas províncias eslavas e uma nova concorrente forte no Adriático e deseja conservar sobre a Sérvia uma espécie de suserania económica e política, então para os sérvios e seus aliados já não há independência e libertação de povos: há necessidade de portos comerciais vantajosos, há porcos a exportar e «legítimos frutos da vitória a repartir» – linguagem comum aos conquistadores e aos salteadores de estrada.
É a fatal luta pela vida, regougam na imprensa certos sinistros imbecis, que dizem depois não reconhecer ao vulgar vandido o direito de roubar nem ao oprimido o de se insurgir, e falam ardilosamente em paz e obediência à lei… dos que governam, quando ruge a luta de classes.
Porque não proclamam então e sempre a necessidade da luta pela vida e a beleza da guerra?
Porque os pobres só tirarão da guerra golpes e misérias, luto e impostos, encargos e servidões. Depois da vitória, continuarão sujeitos à mesma escravidão económica. Os seus amos enriquecerão, mas eles terão o mesmo pão escasso, duramente ganho, penosamente defendido. E então virão dos campos e do estrangeiro novas legiões proletárias, que baratearão o braço, manterão baixo o preço da mão de obra, com grande prazer dos seus compatriotas ricos. As terras por eles arrancadas aos turcos serão campo de manobras e base de operações de capitalistas e capitais estrangeiros; e se os pobres contra estes se revoltarem, pedindo melhores condições de vida, serão apontadas contra os seus peitos as mesmas patrióticas armas que eles agora manejam contra o inimigo de raça e de religião…
Escravos economicamente, sê-lo-ão também politicamente. Quando muito, variarão a língua e a religião dos seus amos. Mas nem a paz política e religiosa sobreviverá na península balcânica, porque não pode reinar a paz onde várias seitas e nacionalidades se entremeiam e uma domina as outras, e quando há poderosos interessados, eclesiásticos, políticos, financeiros, na manutenção dos ódios. Só a queda e desarmamento desses políticos e a organização libertária, – a associalão livre dos indivíduos e a livre federação dos grupos autónomos, poderão garantir o respeito mútuo dos diversos modos de ser individuais e étnicos, a harmonia solidamente assente sobre a igualdade de condições.
Num dos últimos números de novembro passado, o Diário de Notícias publicava, sob a epígrafe de «Um caso estranho», a correspondência seguinte:
VILA FRANCA DE XIRA, 27. – Realizou-se ontem, no tribunal desta vila, um julgamento pelo crime de moeda falsa, em que eram réus Joaquim Barreiros e Alfredo Martins, há poucos meses residentes nesta vila. Foi proferida sentença, condenado o réu Joaquim Barreiros em 4 anos de prisão celular, seguidos de 8 anos de degredo, ou na alternativa de 12 anos. Deu-se, porém, neste julgamento um facto deveras sensacional. O júri foi misto e, por isso, composto de jurados pertencentes às comarcas de Alenquer, Benavente e Vila Franca, em número de 12. Sucede que 6 se pronunciaram pela absolvição e 6 pela condenação, e, passado algum tempo, como todos se mantivessem nas suas opiniões, eis que um alvitrou que se lançassem sortes para a condenação ou absolvição! Assim se fez, escrevendo num bilhete a palavra «condenação» e noutro «absolvição». Dobrados igualmente estes bilhetes, um dos jurados abriu à sorte aquele onde estava a palavra «condenação», e em seguida deram o crime como provado! Que original e estranho modo de julgar é este, com que consciência, com que direito, à «sorte», se condena um indivíduo, criminoso ou não, a 4 anos de Penitenciária? Que justiça é esta? Para esta única, extraordinariamente única maneira de julgar, chamamos a atenção do sr. ministro da justiça, certos de que algumas providências se darão para remediar este deplorável absurdo. Este facto tem sido o assunto de todas as conversas. Foi defensor dos seus réus o sr. dr. Afonso de Sousa, que no fim do julgamento requereu a nulidade do mesmo julgamento.
Como se vê, o correspondente indigna-se e acha o caso absolutamente único e abracadabrante, esperando que por isso seja anulado o julgamento extraordinário.
É possível, com efeito, que a decisão dos jurados não esteja inteiramente dentro das normas jurídicas, que não tenha respeitado de todo as formalidades e cerimónias da lei. Mas no fundo o caso não é tão raro como supõe o ingénuo correspondente: é antes a regra geral.
Aparte os condenados de antemão, as vítimas da justiça de classe ou de partido, – os pobres em geral e em particual os réus de heresia religiosa, política e social; aparte os que, pela sua situação ou pelos apoios obtidos, têm antecipadamente certa a absolvição, os acusados sujeitam-se em regra a uma lotaria, ou pela banal incerteza das provas, sempre falíveis, ou pela indecisão dos textos e de jurisprudência, ou pela variável disposição dos juízes – quer estes sejam os tranquilos profissionais do poder judicial, quer sejam os vagos mercieiros… tirados à sorte! Tudo questão de sorte.
Os jurados de Vila Franca de Xira tiveram apenas um gesto simbólico e vieram somente dar uma simples e natural realidade às suposições verosímeis de tantos humoristas.
Os republicanos novos e velhos continuam na evangelização da religião patriótica, destinada a substituir, na sua função governativa, o desacreditado cristianismo.
Porque o patriotismo oficial é como uma religião. Os crentes, os fanáticos descobrem-se ante um ídolo – uma música, um trapo de cor, ou um santo de pau – e obrigam os outros a imitá-los, na sua intolerância selvagem.
E é isso o patriotismo, pelo menos, tal como é geralmente compreendido, ensinado ao povo nas escolas e nos jornais, nos compêndios de história e nos discursos políticos. Em grande ou pequena escala, a sério ou em caricatura, o patriotismo é a guerra. É o fanatismo, o ódio, a intolerância. É um sentimento de primitivos.
E depois ainda nos vêm dizer que o patriotismo dignifica, enobrece, torna mais gentil o coração do homem, amplifica-lhe o pensamento!
Não; o patriotismo hoje só para enganar serve. Para explorar e tiranizar, servem-se dele os dominantes, como se têm servido de outra religião.
O afeto, o apego que o homem possa ter espontaneamente ao seu meio, onde ele se desenvolveu, e que não tem fronteiras fixas e determinadas, é afogado no patriotismo oficial, num mar revolto e escuro de mentiras interessadas e de superstições pueris.
Ensina-se ao povo que esse afeto tem estreitas relações com as fronteiras, a propriedade, o governo, a bandeira, a gerra, o canhão – sendo entretanto a negação de tudo isso – e o povo uiva, baba-se, canta, paga, embriaga-se, morre, correndo imbecilmente atrás do engodo, servindo simploriamente os interesses dos seus exploradores.
Há quem se indigne ou se deixe cair no mais sombrio desespero ante o triste espetáculo duma multidão a aclamar os amos, vítima da mais baixa idolatria, joguete das fórmulas mais vãs e dos mais grotescos ludibrios.
Temos a cada passo o penoso espetáculo e a ele temos assistido com certa frequência, de longe ou de perto, nos últimos tempos.
À vista do lamentável rebanho – inconsciente, idólatra, servil, solidário com o dono – o super-homem pretencioso e inerte sente-se tomado de desdenhoso asco, de estéril ódio ou de aristocrático desprezo pela turba vil.
Não! Emancipemo-nos das taras do ódio e do desprezo, emancipemo-nos dos sentimentos de selvagens ou de incapazes, que como o álcool nos perturbam a mente e nos prendem os braços, que nos impedem de estudar, de aprender e de dar remédio.
Emancipemo-nos ainda do «amor cristão», lacrimoso e fraco, e daquela piedade que tanto leva a escarrar na face do ser abjeto, como guia até à caridade impotente.
Devemos aprender e ensinar.
Amemos o povo, mas com o amor do estudioso e do lutador, não do demagogo e do governante: com o amor produtivo e forte que põe a nú sem piedade falsa, sem hipócritas adulações, sem ambições de mando, as mais nojentas chagas, e procura aplicar-lhes o ferro em brasa; amor do cirurgião, que corta e cura.
Amemos o povo com o amor que resulta da larga compreensão da solidariedade, de saber que não somos livres enquanto houver um escravo, que os retardatários nos seguram quando nós queremos avançar…
O escravo que hoje ajoelha pode amanhã partir as cadeias. Aprendamos e ensinemos. E sempore que a ocasião se apresente, sempre que os acontecimentos nos favoreçam, procuremos contribuir para transformar o baldio do rebanho no gesto fecundo do revoltado.