Miséria e Revolução

Neno Vasco

Dezembro de 1912


Primeira Edição: Almanaque de “A Aurora” para 1913, publicado no Porto no final de 1912. O texto é assinado com o (outro) pseudónimo “Zeno Vaz”.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/miseria-e-revolucao/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


«Está-se melhor, quando se esté pior» — é uma frase vulgar na boca de muita gente de ideias novas. Parece-nos, porém, um erro afirmar que o excesso de miséria acaba por provocar a revolução consciente.

A questão é na sua base um

PROBLEMA DE FIOSIOLOGIA

Encarada sob este aspeto, a solução está achada. A mente é sã num corpo são, diziam os antigos; e a ciência moderna o confirma.

Os orgãos influem-se mutuamente. As condições do pensamento dependem das condições gerais do organismo. A miséria enfraquece ao mesmo tempo o braço e a inteligência. O homem pensa como come.

Todo o sofrimento provoca a princípio uma reação; mas prolongando-se, o homem acaba por habituar-se. A ação duradoura e gradual da miséria traz a depressão mental, o desânimo, a abdicação da dignidade (Dr. Pierrot).

Mas, pela observação quotidiana dos factos e pela história, vejamos se o que é individualmente (fisiologicamente) verdade, o é também socialmente.

OBSERVAÇÃO QUOTIDIANA

A crítica socialista especialmente tem chamado a atenção para os frutos constantemente observados da miséria, como o alcoolismo, a tuberculose, as epidemias, etc.

Quem sabe ver atentamente o que se passa à sua volta, nota não só que miséria e alcoolismo costumam juntar-se, mas que só a primeira, ou os dois males fornecem o maior contingente dos traidores nas greves, dos espias, dos polícias.

Quando, particularmente, o operário se vê cercado de família na necessidade, o servilismo entra-lhe no sangue. Curva-se humildemente, aceita todos os ossos; a miséria extrema exerce uma influência deprimente sobre as energias. O mendigo é um triste documento dessa influência.

Huxley perguntou um dia a um polícia magro e débil como podia conter tantos miseráveis como os dos bairros de Liverpool, e o polícia respondeu: «Esses pobres diabos já estão meio roídos pela doença e pelo álcool.»

Na Itália, como em toda a parte, os propagandistas sabem como o socialismo abre dificilmente caminho entre as populações miseráveis. Isto observa-se comparando nações, comparando regiões do mesmo país, e certas camadas da mesma cidade.

EXPERIÊNCIA HISTÓRICA

Falando do cristianismo, o Dr. Romeu Manzoni diz no seu belo opúsculo — «O padre na história da humanidade» — que a religião de Constantino, de humildade, triunfou graças aos escravos, não porque pregasse em favor deles, mas porque eles eram infelizes, doentes, deprimidos, excitáveis. Por isso é que todas as religiões recomendam o jejum.

Thorold Rogers, na sua «Interpretação económica da história», cita vários factos em apoio desta tese, entre eles a guerra dos camponenes de Ingleterra, que estalou durante um período de barateza e de salários remuneradores.

Malatesta, escrevendo acerca do triste cortejo dos desocupados de Londres, exclamava: «É a miséria que sufocando todo sentimento humano reduz o homem ao estado de besta esfomeada e medrosa; a miséria que embrutece sem ao menos dar vontade de morder e escoicear.»

AS REVOLTAS DA FOME

As revoltas da fome (às vezes nem estas são possíveis) são como o coice da alimária. São instintivas; acalmam-se com uma sova de pau e um feixe de erva. Quando triunfam, são úteis sobretudo aos especuladores ou às classes preparadas.

Diz o citado Thorold Rogers: «As forças conservadoras da sociedade triunfam facilmente dos ímpetos de desesperos; sirvam de exemplo: a Jacquerie em França e a guerra dos camponeses na Alemanha.»

Não há muitos anos, o governo italiano com um pouco de chumbo e uma distribuição de pão, aquietou facilmente os sublevadores da Sicília, de todo o sul.

CAUSAS DE EQUÍVOCO

As agitações crónicas, profundamente radicadas na tradição, são às vezes mais fortes que a miséria. É o que diz Thorold Rogers: «… É inútil tentar provocar uma revolução social se as classes que se deseja arrastar não gozam já dum certo bem-estar. Falo, bem entendido, das tentativas de dum proselitismo novo, nunca de agitações seculares, como a dos católicos da Irlanda.»

Mas mesmo essas agitações vão cedendo gradualmente sob a ação da miséria prolongada.

Nos indivíduos como nas sociedades, sucede que «a excitação brusca produz uma reação, a princípio intensa, que diminui pouco a pouco, apesar da permanência da excitação… Passado o primeiro momento, o homem habitua-se ao seu novo estado, adapta-se.» (Dr. Pierrot).

É essa mudança brusca para pior que provoca a revolta, cuja causa parece ser a miséria. Se as excitações bruscas (vexações, prepotências, etc.) são repetidas e frequentes, a revolta é mais fácil.

Mas essas revoltas só dão o que está nas consciências, preparado pela propaganda (atos e palavras) tanto mais difícil quanto maior for a miséria.

Outra causa de equívoco é que o bem-estar, o privilégio assegurado faz conservadores. Mas então o que estimula a revolta é a incerteza, a instabilidade, a queda, não a ação da miséria.

OS REVOLUCIONÁRIOS

A sociedade não está rigorosamente dividida em classes impenetráveis e incomunicáveis. O contacto de meios e civilizações diferentes, as comunicações entre povos, classes, ambientes dissemelhantes, as mudanças de situação, subidas e quedas duma classe noutra, todo esse movimento que agita a sociedade oferece fecundo terreno para a revolução.

Mas para que brote o espírito revolucionário, é necessário que haja a sensação viva do sofrimento, o sentimento da injustiça, a consciência da situação.

Esta consciência é dada pela propaganda, que na miséria encontra o maior obstáculo. A propaganda faz-se pela palavra e pelo exemplo. O facto coletivo, como a greve, é dos melhores. Como vimos, a agitação contínua chega a triunfar da miséria: eis porque, mesmo derrotadas, as greves mantêm o espírito de revolta e excercitam na luta, no antagonismo de classe. É uma insurreição económica parcial, que prepara a revolução essencialmente económica. Todas as revoluções foram sempre precedidas de insurreições parciais: assim a francesa.

A propaganda, desse modo, prepara as consciências para as mudanças bruscas, e torna intolerável o sofrimento.

Para que uma reforma não produza conservadores, é necessário ainda demonstrar sempre que ela é transitória e que urge mudar a sociedade em suas bases; assim não se gira num círculo vicioso de reformas mil vezes perdidas e reconquistadas, e cada melhoramento efetivo prepara pelo contrário a revolução.

Miséria e revolução contradizem-se; se é revolucionária a miséria, porque não se fez ainda a revolução?

ZENO VAZ


Inclusão: 24/06/2021