Questões de coerência

Neno Vasco

29 de junho de 1906


Primeira Edição: jornal A VIDA do Porto — Ano I, n.º 61, 22/7/1906.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/questoes-de-coerencia/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


À hora em que escrevo, não sei se alguém tomou já a palavra no assunto que o camarada Angelo Jorge ofereceu à discussão (n.º 47 de «A Vida»). Talvez vá tarde… Mas não posso furtar-me ao desejo de dizer duas palavras sobre uma questão que me toca de perto até certo ponto.

Toda a argumentação do camarada A. Jorge, gira sobre um raciocínio fundamental: o meio ambiente, a organização social força o indivíduo a executar um trabalho que lhe repugna quase sempre e que é nocivo aos outros, muitas vezes.

Armonizar os atos com as ideias é impossível.

E é tão incoerente o jornalista que mente para ganhar o pão, como o operário que, para o mesmo fim legítimo e essencial, constrói canhões ou esculpe santos.

O camarada podia continuar a enumeração indefinida das funções: o polícia, o banqueiro, o ladrão, o ministro, o espião — são igualmente frutos do meio social. E todos, como o jornalista de que nos fala o camarada, sentem ou podem sentir para o seu ganha-pão uma predisposição, nativa ou adquirida, pouco importa. A lógica, por vezes, prega-nos destas partidas: partimos, a cavalo nela, de certo ponto, e ela leva-nos a barrancos inesperados.

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É verdade, sim: o meio social sofoca-nos, encarcera-nos num aro de ferro, e a nossa ação contra ele é realmente muito restrita.

Entrretanto, essa ação existe, às vezes consciente, muitas vezes inconsciente. As condições materiais e históricas, fruto duma evolução anterior, são o terreno onde germina a iniciativa, e esta por sua vez influi sobre a evolução, sobre o ambiente social. Entre os indivíduos, entre o indivíduo e o meio, há um movimento contínuo de ação e reação, um entrelaçamento intricado de deias e de factos, de pequenas e grandes revoluções.

Para despedaçar o anel de ferro que nos aperta, nós, tendo já recebido a influência duma série de ideias e factos nesse sentido, agimos sobre os nossos semelhantes, procuramos dar-lhes a consciência da sua situação, dos males e remédios, duma transformação necessária.

As forças engrossam, coordenam-se, solidarizam-se e vibram porque não estão em suspensão, para estalarem subitamente num facto único e solitário. Pelo caminho, as forças vão-se exercitando, e os factos, ainda que minúsculos, tem sobretudo influência; quando as ideias se reduzem a palavras, têm uma extraordinária tendência para a cooperação. Eis porque somos partidários da «ação contínua, incessante, que cria o facto»; eus por que, por exemplo, nos agrada a ação sindicalista quotidiana.

Decerto, somos na maior parte dos casos impotentes contra o meio, sobretudo quando isolados. Mas porque desprezar as «coisas mínimas», nas quais se faz tirocínio de coerência, e que reunidas constituem as grandes? Sejamos coerentes nos limites do possível, verdade de La Palice! Quando falamos em pôr de acordo os atos com as palavras não nos referimos mais do que a um esforço, a uma tendência. O absoluto, varremo-lo.

Se empregarmos um sincero esforço na propaganda pelo exemplo, se procurarmos fazer a aprendizagem e o ensino da tolerância e da iniciativa, ainda que só em pequenas coisas, não teremos contribuído para a preparação duma sociedade de tolerância, de iniciativa e de sinceridade? Não vibrará levemente o meio que nos cerca com as ondas concêntricas do nosso ato?

Somos deterministas, e justificamos ou explicamos todos os atos, do algoz ou do revoltado.

Mas, por isso mesmo, queremos determinar, dar a cada um o sentimento, não duma responsabilidade moral, mas da sua participação na vida social, no meio que ele compõe com os outros.

Dizemos ao indivíduo: tu és ator na comédia ou drama social, tal papel é nocivo aos teus interesses e aos de todos; tal outro é utíl. Tu não és responsável, és vítima; mas por este meio contribuis para o bem teu e nosso, e por aquele para o mal nosso e teu. Tens de sofrer a reação natural dos teus atos. Escolhe… na medida das tuas forças. Não te julgues um títere.

Fora de aqui, conheço apenas a crença no fatalismo, como a de certos cultores do materialismo histórico, contra a qual precisamente se elevou o anarquismo.

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O absoluto, varremo-lo. Não há um bem, uma verdade absoluta. Há um maior bem ou mal menor. Há uma verdade, que não é, mas que se faz, se transforma, que cresce. Dizer que, sendo impossível a coerência em tudo, tanto vale não ser coerente, e que não vale a pena escolher de dois males o menor, quando coagidos a escolher entre os dois, eis uma ideia religiosa. Mas de que é feita a nossa vida senão de relatividades, de distinções? Os nossos atos e as nossas teorias todas se baseiam em diferenças de grau.

Se um libertário pode escolher entre um trabalho útil e outro inútil, escolherá o primeiro; se tem de escolher entre um serviço inútil e outro nocivo, fará bem em escolher o inútil, como ainda fará bem se, obrigado a optar entre dois trabalhos nocivos, preferir o menos danoso. É uma gradação. Não se trata de matar com um tiro ou com quatro — que isso é querer mostrar, com uma analogia defeituosa, que a causas diferentes corresponde o mesmo efeito. Um tiro pode matar tanto como quatro; mas quatro tiros disparados sobre uma multidão farão provavelmente mais mal do que um só… E se um soldado, à voz de fogo contra grevistas, em quatro descargas sucessivas, puder, logrando a terrível disciplina, desviar três balas do seu alvo, terá feito um bem, relativo como todos os bens.

O heroísmo não é coisa que se pregue, a não ser como o exemplo. Nós não aconselhamos o heroísmo, o sacrifício da vida. Viver, como diz A Vida, é uma necessidade absoluta e a necessidade não tem lei.

Mas aconselhamos o esforço, o esforço continuado e sincero, e o esforço não tem nada de absoluto.

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É preciso, pois, estabelecer distinções. Mas haverá um critério seguro sobre o qual elas possam assentar? É o ponto mais difícil da questão. A vida é complexa e irredutível a fórmulas matemáticas, e o nosso interesse, o nosso estômago entra amiúde em competência com o raciocínio na discussão das questões mais vitais, imprimindo à lógica desvios singulares. A impiedosa necessidade de viver impõe-nos por vezes uma submissão dolorosa; naturalmente, para tranquilidade do espírito, procuramos justificar essa submissão. Inventamos uma lógica, fabricamos uma teoria, e entregamo-nos ao doce prazer de acreditar nela e de a expor. Seria talvez mais nobre, mais delicado, mais útil aceitar a necessidade simplesmente como tal, guardar um silêncio digno e deixar que, em volta de nós, continue confiadamente o esforço de harmonia entre o pensamento e a ação. Felizes vós, camaradas, que podeis lutar ainda!…

Ai de nós! Nem sempre sabemos manter essa atitude. É tão humano, isso!

Mas, através da enorme complexidade da vida, tentemos ao menos determinar uma linha geral.

Às vezes a distinção é relativamente clara, estabelece-se em escala com certa simplicidade: trabalho útil, inútil, nocivo… Aos olhos dum anarquista, que estudou a sociedade e sabe ver o parasitismo, a tarefa de escolher não é muito complicada. Mas o caso complica-se quando a diferença de grau é menor, quando a escolha é, por exemplo, entre duas funções nocivas.

Será melhor ser operário construtor de canhões ou espião? Um e outro são aliados da burguesia, cooperam na escravização do homem. No entanto, parece-me que todos os camaradas responderiam sem grande hesitação: «Diabo! mal por mal, antes construir canhões!» Porquê? Porque o espião exerce uma função mais direta e imediatamente nociva, e que não emprega unicamente o braço, mas exige em regra uma degeneração do espírito, uma mentalidade especial.

É um trabalho mais pessoal, mais voluntário, embora a vontade seja como sempre determinada. A sua predisposição é mais clara.

Será melhor ser construtor de canhões, escultor de ídolos ou rufião do jornalismo?

Ah! cá estamos na questão!

Pois bém! Não sei, mas sentir-me-ia disposto a responder: mais vale fundir canhões ou fabricar santos. E vejamos se as minhas razões servem.

O construtor de canhões, repitamos, executa um trabalho material. Pode não ter consciência clara da sua nocividade e estar pronto e acessível a qualquer propaganda emancipadora. E enquanto trabalha, pode mesmo pensar na necessidade de formular e fazer valer uma reivindicação proletária; talvez pense em paralisar o trabalho em caso de guerra ou em converter os instrumentos de opressão e violência em instrumentos de libertação e… O canhão é neutro: obedece às mãos que o disparam e fere o alvo a que o apontam.

As imagens, essas nada valem em si, mas pelas ideias que representam. O grosseiro boneco de pau que o selvagem adora prostrado, a nós causa riso ou indiferença. Uma «rainha-do-céu» tanto pode servir para encimar o altar diante do qual tremem e soluçam os crentes, como para adornar a parede dum quarto de artista incrédulo, dependurada pelo pescoço ao lado duma máscara chinesa.

Mas o jornalista que mente envenena as próprias fontes da vida; atinge o ato na sua raíz. Não só pode impedir que o canhão caia em boas mãos e as imagens sejam símbolos vazios, mas corrompe-se facilmente a si próprio, porque arranja uma lógica para servir o patrão e acaba por achá-la boa, por defender a obra que lhe envenena o cérebro. O seu trabalho torna-se bem pessoal. O rufião da polícia e o do jornalismo identificam-se.

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Fiquemos dentro do jornalismo. Haveria muito que dizer da tal «predisposição nativa» que empurra o predestinado para o jornalismo, impedindo-o de escolher outro trabalho; e poderíamos citar, a propósito, o caso daquele conhecido camarada que prefere ser vendedor ambulante ou operário eletricista, em vez de se servir dos seus magníficos dotes de polemista temível.

Poderia lembrar-se que todos os nossos orgãos, o braço como o cérebro, têm necessidade de se desenvolver, de se exercitar, e que nos propugnamos a combinação do trabalho manual com o intelectual. Mas isso levar-nos-ia longe. E depois, considerando que somos imperfeitamente, desequilibradamente educados, que o trabalho é hoje uma escravidão e uma pena, e que sabemos poder ser a máquina, numa sociedade melhor, a executora, do mais pesado, não admira que nos meta horror o trabalho manual.

Verdade é, porém, que na argumentação do camarada A. Jorge há uma contradição flagrante. Como! Para evitar um trabalho que lhe repugna, o jornalista libertário deveria submeter-se a uma tarefa «torpe», mais repugnante ainda? Mas passemos adiante.

Não haverá possibilidade, dentro do jornalismo, de causar pouco dano, ou de ser inofensivo ou mesmo de ser útil? Eu creio que, sobretudo havendo talento, como na hipótese do jornalista predisposto, é quase sempre possível não fazer mal. Evitar falar dos assuntos em que não se pode expor a opinião própria, expor os factos sem apreciações, dum modo objetivo, é já o menor dos males. E infiltrar nos ecritos um grão de verdade? Muito melhor ainda. Quando o jornalista é talentoso, chega muitas vezes a impor-se, a gozar de certa liberdade. Então tem nas mãos um bom instrumento de propaganda, muito melhor que os nossos habitualmente, e poderá talvez fazer como Mirbeau, espalhando ideias novas pelas colunas dos jornais de enorme tiragem. E se não pode fazer mais do que simples arte, pois bem! a arte que melhora e purifica, ainda lhe será contada como um bem.

Se o patrão diz: «Você escreverá esta ou aquela infâmia» — e o assalariado não pode deixar de recusar, isto é, de viver… então, meus amigos, entra em cena a tal necessidade de conservar a vida, e todas as teorias cessam…

Mas continua a luta. Tu és, desgraçado espião ou fabricante de mentiras, um ser que nós lamentamos. És determinado, ficamos entendidos; mas também nós somos determinados a defender-nos. A vida agora é isto… Se um golpe nos for vibrado por um anarquista, não podemos, só por isso, achá-lo mais saboroso.

Livremo-nos de achar todos os atos indiferentes, e de dizer também ao indivíduo que ele é apenas uma vítima impotente. Foi o que já quis fazer ressaltar o camarada Max Nettlau, na sua brochura esplêndida — «A responsabilidade e a solidariedade na luta operária».

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Uma nota final. Escrevi estas considerações dum ponto de vista puramente impessoal; não quis fazer alusões. Digo-o, porque estou longe e não poderia retificar ou esclarecer logo alguma frase que possa receber má interpretação.

S. Paulo, 29 de junho de 1906


Inclusão: 24/06/2021