Livre maternidade
(Apontamentos)

AUTOR

29 de agosto de 1901


Primeira Edição: diário O Mundo (Lisboa), Ano I, N.º 355, 08/09/1901.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/livre-maternidade/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Que estranha e tresloucada teoria é essa que vem pôr embargos à Vida, negar a Natureza e eliminar o Futuro?
ERNESTO DA SILVA

A propósito duma mísera vítima da monstruosa organização social e da sua própria ignorância, quis eu lançar à discussão útil à publicidade um aspeto notável da questão que mais preocupa os homens que sentem e que sabem amar. Enquanto lá fora — por exemplo: na França, onde existe a «Liga da Regeneração Humana», quase toda composta de libertários — se faz pelo jornal, pelo livro, por meio de sociedades, uma propaganda ativa da maternidade livre, entre nós, em parte pelo desvio das atenções para outros assuntos e por ignorância, em parte pela fascinação exercida pela palavra eloquente dum grande romancista, a importante questão tem sido completamente descurada.

O Amor — ai de nós! — está ainda, em toda a parte, envolvido numa névoa densa de preconceitos de toda a ordem. Sobre o nosso cérebro pesam séculos e séculos duma metafísica espessa… Triste herança essa que dificilmente repudiaremos!

No caso presente, ainda os espíritos mais largos, os próprios libertários, que se julgam de cérebro desembaraçado das teias de aranhado prejuízo, esses mesmos sentem uma teimosa repugnância pela ideia, vítimas inconscientes duma educação antiga. Eu, que escrevo isto, ainda não há muito que estava no mesmo erro, ardente entusiasta da «Fecundidade»… E foi um camarada e amigo, Christiano de Carvalho, quem afinal acabou por me convencer.

É verdade: o mal de que sofremos e que combatemos tem a sua origem na contrainte económica, física, política, moral, de toda a natureza. Será, porém, pouco rigoroso dizer à Sociedade: «tu, tu só és a culpada!» Já não digo que tenham cuidado com essa última palavra. Moralmente, é claro, nem o indivíduo, nem a sociedade são responsáveis. O que digo é que atribuir só à sociedade, exclusivamente a ela, como a uma entidade, a causa do mal, é quase tão arriscado como atribuí-la só ao indivíduo. Efeito decerto da teoria organicista.

A sociedade e constituída por indivíduos: e entre uns e outros há um movimento constante de ação e reação.

Vem a propósito insistir de novo nisto: nas revoluções, em todos os atos de revolta do indivíduo contra uma sociedade injusta e opressiva, duma minoria consciente contra uma maioria de dominadores e de inconscientes, seus auxiliares, a qualidade sobreleva a quantidade. Os factos são bem manifestos, dão bem na vista, no passado ou no presente, extra ou intra-fronteiras de Portugal.

Diminuir a produção excessiva dos desgraçados, deixando em germen aqueles que os pais não poderiam arrancar a miséria física, intelectual, moral, seria aumentar o número dos homens conscientes, seria fazer obra revolucionária, seria ganhar em qualidade e em quantidade.

Um só homem pode fazer muito, pela propaganda, pelo exemplo, pela revolta, reagindo, combatendo… Um só homem, que sabe lutar e que sabe para onde vai, vale muito mais que uma multidão de cegos, de impotentes, que, se um dia, inconscientemente, desnorteadamente, se lembram de protestar, num simples movimento reflexo ou impulsivo, ou são vencidos, esmagados, afogados em sangue, ou são ludibriados.

O que tem feito o insucesso total ou parcial de todas as revoluções é a incompleta preparação dos que pretendem libertar-se; aproveitam apenas os emancipados, os especuladores, os políticos.

Ensinemos o homem a lutar, a trabalhar pela sua emancipação, conscientemente: armemo-lo em frente da sociedade mal constituída, ensinemo-lo a combater os vícios da organização social! Gritemos-lhe: revolta-te! — não lhe gritemos: fere a torto e a direito! — ou: submete-te! Se ele comete um erro, expliquemo-lho, sim, mas não lhe digamos: bravo! tiveste razão; só a sociedade é que é a culpada, tudo o que fizeste vem de que a sociedade está assente sobre a injustiça, sobre o mal… Digamos-lhe: luta! Farás pouco talvez, as tuas forças são relativamente fracas: mas esse pouco vale muito como exemplo, como incentivo. Podes, neste ou naquele ponto, realizar desde já o ideal que te custa sacrifícios: realiza-o como puderes, pelo teu esforço individual, pela tua própria iniciativa, contra tudo e contra todos que se oponham à tua ação benéfica, à tua obra emancipadora e de progresso.

Dizer ao homem: nada podes fazer, não tens culpa nenhuma, só a sociedade é que a tem — é simplesmente… cristão! É fazer a propaganda da moral torpe e improgressiva do cristianismo.

Joaquina Rosa, como muitas outras mães, foi imprevidente por ignorância, porque nada lhe disseram… Digamos a verdade; e o povo facilmente compreenderá a justiça da nossa propaganda. Assustadamente, mas às cegas, com prejuízo para a saúde para a felicidade, para o amor, todo o proletário capaz de amar os filhos — sobretudo a maior vítima: a mulher — tenta fugir ao horror dum lar cheio de filhos e vazio de pão. Espera somente, o desgraçado, que o instruamos, lhe brademos: Queres ter a felicidade de ser mãe? Pois bem! Obtem um filho, dois… se puderes. enquanto te sentires com forças para os tornar capazes de trabalharem na conquista do futuro… Não atires para a vida, isto é, para a morte, seres cuja missão será sempre sofrer, sofrer sempre, inutimente, sem um grito indignado de revolta! Tu, macho, se te puseres a fazer filhos, sem conta nem medida, como uma máquina, sabes o que de melhor te poderá acontecer? Havendo muitas bocas, em tua casa, haverá fome, porque os teus braços não chegam… A mãe dos teus filhos irá então também trabalhar, para a fábrica, por exemplo. A mulher é mais barata e a fábrica aceita-a… Concorrência terrível, não é verdade? Entre ti e a tua amante! Mas não é tudo: a tua mulher trabalha sempre, extenua-se, grávida ou não… Calculas como ela ficará vigorosa, cheia de saúde, para a tua obra de reprodução incessante. E os filhos? Ah! Esses a fábrica também os recebe gostosamente; leva-lhos. Mulheres e crianças são caridosamente aceites…

Pobre pai! Estás a ver em que condições nasceram os teus filhos, como eles cresceram, como hão-de ser homens… Na massa enorme, exangue, aflita, que tu e outros como tu assim deitastes ao mundo, vai o patrão escolher as suas máquinas automáticas, baratas, que ele põe na rua quando lhe não servem, porque há outras — muitas — que lhe suplicam que as explore, canse, torture… Ainda um outro patrão faz deles — o quê? — soldados firmes, impassíveis, obedientes… E quando alguns, que se revoltam, enchem o ar com os seus brados ardentes de protesto ou, num espírito heróico de sacrifício, arremessam-se à morte para salvar a Vida, um senhor ou um lacaio agaloado comanda: fogo! E os vossos filhos apontam serenamente àqueles que lutam por vós — sabeis? por vós! — e fazem fogo!

Sempre assim foi. Na escravatura moderna, como na escravatura antiga, o senhor não pode ter senão interesse na superprodução dos escravos.

Proletários! Não lanceis ao mundo seres que ou serão inúteis ou vossos inimigos, sofrendo ou fazendo sofrer… A melhor prova de amor aos filhos, destinados à dor, à tirania, ao crime, ao ódio, será não os chamar à Vida, que não é digna dessa nome, no seu sentido mais humano! Como Paul Robin, repitamos o verso de Sully-Prudhomme:

O fils le plus aimé qui ne naitras jamais!

Com o que proponho, o problema da miséria não ficaria decerto resolvido. Nada de exclusivismos! Não penso como o autor dos «Elementos de ciência social», livro aliás bem digno de ser lido, o que é fácil, visto haver uma edição portuguesa relativamente barata. Um capítulo desse livro intitula-se: «A pobreza, sua única causa, seu único remédio».

A nossa propaganda será aproveitada só em parte e só por uma parte dos que sofrem. Mas iria, não eliminar o futuro, mas, pelo contrário, facilitá-lo, apressá-lo. Não aconselho: deixem de procriar, não outro remédio… Não! Digo simplesmente: lutem e, para que o façam proficuamente, procriem lutadores.

Faço obra revolucionária. Não aceito a iniquidade social, contra a qual aconselho a revolta — a revolta, entendam bem! Não há aqui abdicação, nem cobardia, nem subserviência: há um meio de combate, de propaganda, uma preparação de forças para o triunfo inevitável. Aperfeiçoar, melhorar, destruir obstáculos, limpar imundícies, suprimir inutilidades ou estorvos, não é fazer obra de morte, é fazer obra de vida.

Não peço reforma, não a vou mendigar ao governo, seja a quem for: a lei seria um logro, uma mentira. Aconselho um bem que cada um pode conquistar de per si, por seu próprio esforço, um melhoramento que pertence à iniciativa individual, um passo que se pode dar para a frente, sem que seja imposto, sem que se peça um favor à lei. Não devo querer o mal pelo mal, unicamente porque sou revolucionário e porque um relativo bem-estar não é ainda o que pretendo. Tendo por ideal uma sociedade sem leis e sem senhores, divinos ou humanos, sou absolutamente lógico, procurando realizá-lo desde já dentro do limite das minhas forças.

Cegueira completa será crer que a revolução paralisada, porque se conseguiu um bem-estar parcial. Os operários mais conscientes, os que melhor vivem, são os mais revoltados. Sofre-se também a dor dos outros, pelo coração e pelo cérebro. E não penso que a revolução espere que a humanidade tenha compreendido enfim quanto há de justo na previdência dos progenitores.

Pôr embargos à Vida! Negar a Natureza! Que frases tão incertas! Religiosismo puro, culto panteísta e nada mais. É a superstição, o respeito fetichista pelo germen.

Em que é que se põe embargos à Vida, arrancando à morte, à miséria, seres que nem mesmo prometiam ser úteis para a verdadeira obra da Vida, da Revolução, que eles iriam talvez embargar? Será necessário e moral converter todo o germen num ser humano? Esse germen tem direito à vida? Para o homem, viver é simplesmente vegetar?

Negar a Natureza! Mas que faz o homem senão lutar persistentemente contra as forças inconscientes da natureza, contra a natureza, como mostram compreendê-la, contrariando assim o transformismo. A evolução não nega a natureza; desde que se prove que numa teoria há um progresso, essa teoria não nega a natureza. Do contrário, o homem evoluindo, estaria diariamente a negar a natureza!

Se ela o ameaça com muitos filhos que não poderá sustentar e educar, o mais moral, o mais útil para a espécie, é intervir conscientemente no ato, evitando-os, sem perigos e sem sacrifícios.

A mulher é a maior vítima, a escrava de todos os preconceitos. Ela é que, na frase de Robin, «deve ter, não digo o direito, que já não sei o que significa essa palavra gasta à força de abuso, mas o poder e a ciência de ser mãe só quando o tiver resolvido após madura reflexão».

Não se trata de eliminar a família, nem o lar será deserto de filhos: o que se quer é que a vida, perdendo pouco em extensão, ganhe muito em intensidade.

Faça-se esta propaganda que é rápida e prática. Depois, o próprio desenvolvimento intelectual, o bem-estar crescente, a emancipação da mulher serão causas depressivas das necessidades genésicas.

Ensinemos a mulher a lutar pela sua emancipação, libertando-se ela mesma, a pôr de parte essas mesquinhas reclamações: o direito de voto e outras quinquilharias semelhantes. E o primeiro passo para a sua emancipação é a livre maternidade.

Regular a fecundidade do ventre, ter filhos quando lhes puder garantir a vida, ou não os ter quando assim lho exigir alguma coisa como a doença, a falta de confiança no amante, qualquer outra — sem privações doentias, e injustas — eis uma conquista a realizar desde já.

E a ciência diz que tudo isso é possível, muitas vezes necessário e saudável; e mostra-nos meios inofensivos de o conseguir.

No futuro, quando enfim se desfaça a nuvem negra dos prejuízos que obscurecem o céu azul do Amor, e as almas se possam amar sem constrangimentos e os corpos se unam sem obstáculos, quando enfim os corações se possam ouvir livremente palpitar, a maternidade livre será ainda a primeira condição do livre amor!

Porto, 29-8-901


Inclusão: 24/06/2021