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Por ocasião de uma assembleia geral na fábrica de calçado “A Comuna de Paris”, foi decidido pôr fim à linguagem grosseira e aplicar multas pelos “palavrões”, etc.
Comparado com as “palavras” de Lord Curzon(1), a quem não se pode ainda aplicar multas, trata-se de um pequeno facto no turbilhão da nossa época, mas é um facto significativo, que só adquirirá toda a sua importância em relação ao eco que essa iniciativa venha a encontrar.
A grosseria de linguagem — em particular a grosseria russa— — é uma herança da escravidão, da humilhação e do desprezo pela dignidade humana, tanto a alheia como a própria. Seria necessário perguntar aos filólogos, aos linguistas e aos folcloristas se se encontra noutros países uma grosseria tão desenfreada, tão repugnante e tão chocante como entre nós. Tanto quanto sei, não existe em nenhuma outra parte. Nas camadas populares, a grosseria exprime o desespero, a irritação e, acima de tudo, uma situação de escravo sem esperança e sem saída. Mas essa grosseria nas camadas superiores, na boca de um senhor ou do intendente de um domínio, era a expressão de uma superioridade de classe, do firme e do inabalável direito do esclavagista. Diz-se que os provérbios são a expressão da sabedoria popular, são-no também da ignorância, dos preconceitos e da escravatura. “Um palavrão depressa se esquece”, diz um antigo provérbio russo que não reflecte apenas a escravatura mas também a sua aceitação passiva. Dois tipos de grosseria — a dos “barines”, dos funcionários, da polícia, uma grosseria de repleto, de voz cheia, e uma outra, esfomeada e desesperada — coloriram a vida russa com seus tons repugnantes. E a revolução herdou isso, como muitas outras coisas.
Mas a revolução é acima de tudo o despertar da personalidade humana em camadas que outrora nenhuma personalidade possuíam. Apesar de toda a crueza e sangurenta ferocidade dos seus métodos, a revolução é sobretudo um despertar do sentido humano; permite progredir, dar mais atenção, à dignidade própria e à alheia, ajudar os fracos e sem defesa. A revolução não é uma revolução se, com todas as suas forças e por todos os meios, não permite que a mulher, dupla e triplamente alienada, se desenvolva pessoal e socialmente. A revolução não é uma revolução se não dispensa o maior interesse às crianças que são o futuro em cujo nome ela se efectua. E poder-se-á criar – mesmo de forma parcelar e limitada – uma vida nova fundada sobre o respeito mútuo, sobre o respeito para consigo próprio, sobre a igualdade da mulher, sobre uma verdadeira solicitude pelas crianças, numa atmosfera em que ressoe, retumbe, estale a linguagem grosseira dos senhores e dos escravos, uma linguagem que nunca poupou nada nem ninguém? É tão necessário para a cultura do espírito lutar contra a grosseria da linguagem como é necessário para a cultura material combater a imundice e os parasitas. Não é nada simples nem fácil dominar essa licenciosidade linguística porque não tem as suas raízes na palavra em si mesma mas no psiquismo e no modo de vida. É com toda a evidência necessário encorajar as tentativas da fábrica “A Comuna de Paris”, mas, mais do que isso, é necessário desejar aos seus iniciadores paciência e obstinação, pois os hábitos psíquicos, que se transmitem de geração em geração e dos quais toda a atmosfera está ainda hoje impregnada, não são fáceis de desenraizar. Acontece amiúde querer fazer progressos a todo o custo; esfalfamo-nos e, finalmente, baixamos os braços deixando tudo como antes.
Devemos confiar em que os operários, e em primeiro lugar os comunistas, secundem a iniciativa de “A Comuna de Paris”. Pode-se dizer que, regra geral (existem sem dúvidas excepções), as grosserias são dirigidas as mulheres e aos filhos, não só por parte das massas atrasadas mas com frequência também por alguns da vanguarda e por vezes mesmo “responsáveis”. Não se pode negar o facto de que estas formas de expressão estão ainda vivas seis anos após Outubro, mesmo entre os “altamente colocados”. Fora da cidade, fora da capital, certas “personalidades” consideram que é de seu dever exprimir-se grosseiramente por verem nisso um meio de entrar em contacto com o campesinato...
A nossa vida é totalmente contraditória, tanto no plano econômico como no cultural. No centro do país, não longe de Moscovo, estendem-se imensos espaços pantanosos, de caminhos impraticáveis e, mesmo a seu lado, elevam-se fábricas que impressionam pelo seu nível de tecnicidade européia ou americana... Encontram-se contrastes análogos nos nossos costumes; ao lado de Kit Kitytch o jovem(2), que atravessou a revolução, conheceu a expropriação, a especulação clandestina e a especulação legal, e que conservou praticamente intactos todos os caracteres de sua classe, encontramos o melhor tipo de operário comunista, que só vive para os interesses da classe operária, que está pronto a bater-se pela revolução a todo o momento e seja em que país for. Além deste contraste social – grosseria obtusa e idealismo revolucionário – podemos com frequência realçar contrastes psíquicos no interior de um mesmo indivíduo, de uma mesma consciência. Eis, por exemplo, um comunista autêntico, devotado à sua tarefa, mas para quem as mulheres não são mais do que “babas”(3) (que palavra tão grosseira), das quais não se pode falar seriamente. Ou ainda, a propósito da questão nacional, um “communard”(4) emérito que emite de súbito um chuveiro de injúrias dignas de um Ugrium Burtchéev,(5) de fazer fugir. Deve-se isso ao facto de que os diferentes domínios da consciência não se transformam e não evoluem paralela e simultaneamente. Deparamos também aqui com uma particular economia. O psiquismo é flagrantemente conservador; na consciência, só se transformam os elementos directamente submetidos às exigências da vida. A evolução social e política dos últimos decénios fez-se a um ritmo sem exemplo, com saltos e viragens sem precedentes. É por isso que a Confusão e a Desorganização são entre nós tão poderosas. Mas seria injusto pensar que essas duas irmãs reinam unicamente na produção e no aparelho de Estado. Não, há o que confessar, agem também sobre as mentalidades, em que se combinam convicções de vanguarda sinceras e reflectidas (nesse domínio temos qualquer coisa a ensinar à Europa e à América), com estados humorais, hábitos e opiniões directamente herdados do Domostroj.(6) Nivelar a frente ideológica, isto é, analisar todos os domínios da consciência por meio do método marxista – tal é a fórmula geral da educação e da auto-educação que se deve aplicar antes de mais ao partido, começando pelos dirigentes. E, uma vez mais, essa tarefa é terrivelmente complexa; não será realizada de forma escolar nem literária, porque as contradições e as desordens do psiquismo mergulham as suas raízes mais profundas na confusão e na desorganização do modo de vida. A consciência, no fim de contas, define-se pelo ser. Mas a dependência aqui não é mecânica nem automática; é recíproca. Eis porque se precisa abordar o problema de diversas maneiras, incluindo a dos operários da fábrica “A Comuna de Paris”.
Façamos votos pelo seu êxito!
A luta contra a grosseria faz parte da luta pela pureza, a clareza e a beleza da linguagem.
Notas:
(1) O caso Curzon: trata-se dos manejos anti-soviéticos do diplomara inglês G. N. Kurzon (1859-1925) que foi um dos organizadores da intervenção contra a URSS; em 1919 enviou uma nota ao governo soviético emprazando-o a cessar o avanço das tropas do Exército Vermelho segundo uma linha chamada “linha Curzon”. Em 1923 enviou um ultimatum provocador ao governo soviético, ameaçando-o com uma nova intervenção. (retornar ao texto)
(2) Kit kitych: nome colectivo aparecido no início do século XIX e que designa um tipo de comerciante, déspota familiar, cujos traços característicos eram a grosseria e a astúcia. (retornar ao texto)
(3) Em russo: “bab’jo”, termo pejorativo, denominação colectiva que rebaixa a mulher à categoria de animal de carga. (retornar ao texto)
(4) “Communard”: partidário da Comuna de Paris de 1871. (retornar ao texto)
(5) Ugrium Burtchéev: um dos personagens do romance de Saltykov-Chédrine – “História de uma cidade”. Protótipo do déspota que só se exprime por onomatopéias grosseiras. (retornar ao texto)
(6) “Domostroj”: recolhida escrita no século XVI, em que são reunidas as regras fundamentais da vida quotidiana, fundada principalmente numa submissão total ao chefe de família. (retornar ao texto)
Inclusão | 01/07/2009 |