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A aprovação do «Documento-Guia» desatou uma aguda crise política. Em realidade era praticamente impossível que isso não acontecesse, dado o carácter genuinamente revolucionário do documento e as profundas alterações que ele poderia introduzir na sociedade portuguesa, caso fosse levado a cabo até às suas últimas consequências.
É interessante notar o combate frontal que os partidos burgueses lhe moveram. O PS e o PPD, como logo a seguir veremos, divergiram desse documento no todo e em cada uma das suas partes. Com meridiana clareza expuseram em comunicados imediatos todo o corpo da sua doutrina, e esta era totalmente antagónica às ideias centrais daquilo que a Assembleia do MFA havia aprovado.
O PCP não poderia, naturalmente, deixar de apoiar o documento-guia, embora o fizesse com algumas reticências e escamoteando habilmente os seus aspectos fundamentais. Acontece que os reformistas, mais uma vez, presos nas suas ambiguidades e amarrados aos compromissos e alianças com os partidos burgueses, não tiveram condições de se manifestarem claramente sobre os problemas básicos que o referido documento levantava. Não se pode dizer que o fizessem por desconhecimento de causa, pois os «comunistas» portugueses, ao longo de sua história sempre tiveram um contacto estreito com a teoria marxista-leninista, que tinha, como se pode facilmente constatar servido de base para grande parte das formulações do projecto aprovado. O problema é que as implicações reais do documento eram tantas, e tão profundas as opções e comprometimentos que o mesmo colocava, que o PC preferiu habilmente contornar essas questões. Para isso, através de uma manobra táctica, diluiu a sua posição, no mesmo comunicado em que apoiava as decisões da Assembleia do MFA, recomendando a comparência maciça de todos os seus militantes numa manifestação de apoio ao MFA, ao Conselho da Revolução, ao Presidente da República e ao Primeiro Ministro.
Na verdade, a Assembleia do MFA, ao aprovar o «Documento-Guia», tinha assumido o papel de órgão legislativo revolucionário, pois o projecto aprovado continha os aspectos básicos da Constituição de um Estado Socialista. Nesse sentido, a Assembleia Constituinte que tinha sido eleita há pouco tempo através do sufrágio universal, perdia praticamente a razão de ser. O PS compreendeu-o imediatamente e afirmou, num virulento comunicado a respeito do assunto, que o documento aprovado «representa sobretudo um desprezo formal pela vontade popular expressa nas eleições de 25 de Abril. (...) A ‘orgânica’ e as ‘normas estatutárias' propostas no documento não visam, na realidade, estabelecer bases para a aliança povo/MFA; adiantam um esquema de organização do Estado que é aliás matéria constitucional (...).» Mais adiante, ao constatar os poderes revolucionários que a Assembleia do MFA havia assumido, disse que: «Para a elaboração e aprovação da lei constitucional elegeu o País a Assembleia Constituinte (...).»
A posição do PPD não diferia muito da do PS. Num dado passo de seu comunicado esse partido afirmava que:
«A estrutura proposta incide sobre matéria constitucional reservada pelo Programa do MFA e pelo Pacto MFA/Partidos à Assembleia Constituinte e corresponderia, portanto, de certo modo, à violação do pacto pelo MFA. Com efeito ficariam, desde já, definidos os principais órgãos de soberania e a orgânica político-administrativa do Estado a todos os níveis. Desta forma, estaria estabelecida grande parte da Constituição, nas costas do povo e dos seus representantes e seriam postos em causa o poder legítimo e a missão patriótica da Assembleia Constituinte.»
O PCP nada disse a respeito do impasse em que a Assembleia Constituinte tinha caído nem sobre o facto da Assembleia do MFA ter assumido o papel de supremo legislador. Seu comunicado a esse respeito perde-se em generalidades e torna-se difícil detectar qualquer tomada de posição mais específica desse partido em relação a esses problemas fundamentais, sobre os quais o «Documento-Guia» incidia directamente.
Outro ponto básico que se pode extrair do projecto aprovado foi a instituição da democracia directa exercida nas assembleias de massa, através da votação por braços levantados, como alternativa à democracia representativa exercida pelo sufrágio universal e secreto, com delegação de poderes. Nesse aspecto a posição dos partidos da burguesia seria realmente intransigente. Eles não podiam admitir que o modelo de democracia que defendem — e que está em última análise baseado no poder económico e na técnica de propaganda dos partidos concorrentes — fosse posto em causa. O PPD diria a esse respeito que «...uma estrutura vertical de assembleias ditas populares, tal como proposta, seria antidemocrática porque:
«a) As eleições nas bases não assentariam na participação livre de todos os cidadãos só assegurada pelo sufrágio universal e secreto, prevendo-se a votação sem estabelecimento de cadernos eleitorais e por «braço erguido», com coacções de minorias activistas que isso implica, podendo as situações de facto constituir prática dominante.
«b) Nas eleições das sucessivas Assembleias Populares não haveria participação directa da verdadeira vontade popular, uma vez que cada Assembleia elegeria uma outra, distanciando-se cada vez mais as cúpulas das suas correias de transmissão, prestando-se às manobras e filtragens que orientariam a composição e a ideologia da Assembleia de Vértice. (...)»
O PS reafirmaria a sua defesa intransigente do «sufrágio universal directo e secreto», acrescentando que
«Igualmente se viola a Plataforma Constitucional quando se pretende instituir uma Assembleia Popular Nacional formada por eleição em quarto ou quinto grau e a partir de votação por braços levantados. (...)»
O PCP, mais uma vez, nada diria a esse respeito. Impossibilitado de contestar até as últimas instâncias o jogo eleitoral da burguesia, do qual fazia parte, simplesmente não se manifestou sobre esse problema.
Aliás, é interessante notar que em Portugal até hoje ninguém foi ainda capaz nem mesmo as organizações mais consequentes da esquerda revolucionária, de demonstrar claramente para as massas que as eleições feitas através da democracia directa nas assembleias populares são muito mais democráticas do que as eleições por delegação de poderes feita através do escrutínio secreto. O próprio documento aprovado pelo MFA, embora tenha instituído a democracia directa, não se preocupou em demonstrar a sua pureza e a sua validade. Daí porque a mais antiga mistificação da burguesia, o voto secreto, ainda seja compreendida por largos sectores da população como sendo a única forma de democracia possível. Mas a dinâmica da luta de classes, tanto no seio do movimento operário como dentro das próprias Forças Armadas, chegou a demonstrar em muitos momentos a plena validade e mesmo a necessidade da adopção da democracia proletária exercida através do braço no ar em contraposição à democracia burguesa. Com efeito, no processo revolucionário português não foi possível restringir a participação popular ao exercício do voto de tanto em tanto tempo. Aqui foram feitas dezenas de assembleias de massas diárias com as subsequentes votações e muitas vezes tornava-se necessário destituir hoje um delegado que fora ontem eleito. Assim, o princípio da revocabilidade esteve sempre presente na vida política das massas.
Em relação aos partidos políticos, o «Documento-Guia», embora reafirmasse que «não se pretende ignorar os partidos devotados à construção do socialismo», na prática os deixava de lado, dado que as organizações de base deveriam ser por natureza apartidárias e o MFA tinha o papel dinamizador de todo o processo, sendo portanto considerado em realidade como a sua vanguarda. Os partidos burgueses compreenderam isso imediatamente e protestaram contra o facto em seus comunicados. Parece-nos que foi o PPD que conseguiu expor com mais clareza as ideias de burguesia a esse respeito, dizendo:
«Este esquema proposto, apesar das frases de boas intenções, marginalizaria claramente o estatuto e a acção dos Partidos Políticos, na medida em que nas estruturas indicadas não lhes cabe qualquer papel e em que nas eleições das Assembleias de base é suposto um apartidarismo inexistente na prática.»
Aqui entretanto, o PCP teria algo a dizer. Nesse tempo a sua propaganda política incidia fundamentalmente no «reforço da aliança Povo-MFA», pois esse binómio do qual ele se impunha como intermediário, permitia-lhe fugir sub-repticíamente do terreno eleitoral, onde tinha tido magros resultados, para aferrar-se às posições que detinha ao nível do aparelho de Estado. É assim que encontrou um «extraordinário significado no reforço do papel dos partidos políticos progressistas» que, segundo ele, o documento reafirmava.
Mas o problema fundamental abordado no «Documento-Guia» e que por si só, a nosso ver, deu-lhe um conteúdo profundamente revolucionário, foi a questão do Estado. Com efeito, o projecto aprovado embora não fosse suficientemente claro a esse respeito, determinaria na prática a destruição do velho Estado burguês e a construção de um Estado de novo tipo, ou seja, o Estado transitório, em vias de extinção, através do qual a classe operária poderia exercer a sua democracia e ao mesmo tempo estabelecer a sua ditadura sobre a burguesia.
A esse respeito o PS diria, significativamente:
«Que se pretende em rigor por ‘um novo aparelho de Estado de base popular? Porque (Destruir e não proceder a uma profunda transformação do aparelho de Estado?» (O grifo é nosso) (...) «Esta redução do país a um organograma híbrido serve, no fundo e apenas, de cobertura à instauração de uma ditadura. (...) Essa ditadura parecer-se-ia muito com a que saiu da revolução russa de 1917, que também partiu do poder dos soviets (...) e dissolveu a Assembleia Constituinte transferindo os seus poderes para a Assembleia Pan-Russa dos Sovietes.»
O PPD sobre a questão do Estado, não abordaria a tese central do documento aprovado, mas sim enfocaria um outro problema, bastante caro aos partidos de direita naquela época. Dizia esse partido que:
«As estruturas organizativas existentes carecem de profunda revisão na medida em que, essencialmente. a vontade popular não é respeitada em termos de representatividade democrática nas autarquias locais e nos meios de comunicação social.»
Na verdade tanto o PS, com a sua «profunda transformação do Estado», como o PPD, ao propor a «profunda revisão das estruturas organizativas existentes» queriam apenas desalojar o PC e o MDP dos postos que estes ocupavam nas autarquias locais e meios de comunicação social, repartindo-os entre si com base no critério de proporcionalidade relativa à votação nas eleições para a Assembleia Constituinte.
Neste ponto fundamental da questão do Estado a posição do PCP era a mais ambígua possível. Primeiro dizia que as conclusões da Assembleia do MFA apontavam para o «reforço do aparelho estatal e do seu saneamento», embora não especificasse que tipo de aparelho estatal era esse. Mas depois acrescentava que as mesmas decisões tomadas «tem um extraordinário alcance para a definição da estrutura do futuro Estado democrático e socialista». Na verdade, era bastante difícil ignorar o novo tipo de Estado que o documento propunha, a sua concepção de democracia proletária e as claras conotações anti-burocráticas que ele continha. O PC certamente compreendeu isso, mas não o disse claramente.
A esquerda revolucionária em geral compreendeu o alcance e a profundidade do «Documento-Guia» e buscou utilizar as possibilidades que este abria para levar avante o processo de fortalecimento dos organismos unitários das massas, embora o fizesse, na medida do possível, numa perspectiva independente do MFA, tentando forjar uma alternativa que tivesse a classe operária como componente básico.
O PCP e o MDP acabariam por abandonar o projecto dos Comités de Defesa da Revolução (CDR) e se voltaram, fazendo a sua própria leitura do «Documento-Guia», para a organização das Assembleias Populares através das Juntas de Freguesia que controlavam e das Comissões de Moradores e Comissões de Trabalhadores em que participavam.
Os maoistas continuaram os seus esforços para a «reconstrução do Partido que levará a classe operária ao Poder», como se nada de especial tivesse acontecido.
Entretanto, ao analisar o desenvolvimento do projecto de Poder Popular do «Documento-Guia», vemos que o mesmo, do modo como tinha sido concebido, não adquiriu as proporções previstas. A luta de classes teve, efectivamente, uma dinâmica própria. E em países como Portugal, onde as contradições de classe são agudas e, portanto, as lutas de classe também o são, esta dinâmica certamente rompe os limites de todos os esquemas que lhe são propostos.
A aprovação do «Documento-Guia» foi, de facto, um factor dinamizador do processo organizativo das massas, na medida em que possibilitava uma ampla utilização de certas estruturas e meios estatais — especialmente ao nível as Forças Armadas e dos meios de comunicação social — como suportes desse processo e na medida em que legalizava uma prática que já estava sendo levada a cabo, criando condições favoráveis à sua generalização. A partir desse momento foi possível estabelecer, com a cobertura das referidas estruturas e meios, uma articulação e colaboração mais estreitas entre as organizações unitárias dos trabalhadores e moradores e as organizações autónomas nas unidades militares.
Porém, aquele projecto político debatia-se num problema realmente difícil e a solução para ele encontrada, embora talvez fosse a única possível no momento, brevemente iria conduzir todo o esquema a um impasse definitivo: pressupunha o MFA como vanguarda do processo revolucionário e, como tal, condutor do processo de estruturação do Poder Popular, situando-o na sua dependência e nos marcos da política por ele definida.
Como já vimos, antes mesmo da aprovação do «Documento-Guia», havia sido realizada a primeira Assembleia Popular da zona do RE-1. Esta constituiu-se, aliás, em uma experiência piloto.
Logo a seguir à aprovação daquele documento realizaram-se duas Assembleias Populares em Lisboa (Olivais e Marvíla — zonas do RALIS), além da realização da segunda Assembleia Popular da zona do RE-1. As três Assembleias Populares realizadas, após a eleição dos respectivos secretariados executivos e a definição dos estatutos, acabaram se desmobilizando. E o processo ficou paralisado durante um bom tempo até que o PC o retomou, realizando novas Assembleias Populares, embora já com uma perspectiva distinta das anteriores, nas quais tinha tido uma influência muito reduzida. É significativo que as três primeiras Assembleias Populares se tenham realizado precisamente nas zonas do RALIS e do RE-1, duas unidades militares onde o processo de democratização e organização interna estava mais avançado e que desde os princípios do ano de 1975 vinham estreitando seus vínculos com as populações das respectivas zonas. Em outras regiões, entretanto, mesmo naquelas onde a concentração operária é mais intensa, não existiram Assembleias Populares e essa experiência não conseguiu, pois, generalizar-se.
Assim, o processo não se «encaixou» na dinâmica que se pretendia imprimir-lhe. Para isso concorreu decisivamente a desintegração rápida do MFA, que tinha sido concebido como a sua «vanguarda». O Poder Popular não marcou os seus passos pela cadência dos tambores militares nem se deixou emaranhar nas contradições em que o Movimento se debatia. Seguiu o seu curso próprio, e nalguns casos até a um ritmo mais acelerado do que muitos previam a outros tantos desejavam.
Inclusão | 19/09/2019 |