O PCB-PPS e a Cultura Brasileira: Apontamentos

Ivan Alves Filho


VI


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Se, no século XIX, o movimento anarquista correspondeu a uma forma artesanal da organização do mundo do trabalho, e o próprio movimento comunista, no século XX, à chamada fase da indústria pesada, impõe-se hoje dar nascimento a uma maneira de fazer política que incorpore ou traduza as mudanças que se operam a partir da revolução tecnocientífica. Fundar o agrupamento ou o partido — se aceitamos o termo — da era pós-industrial, quando o homem transfere para a máquina não apenas uma parte da sua capacidade muscular como também funções da sua própria inteligência. Eis o desafio. E enquanto o homem for o único problema teórico para o próprio homem, esse desafio existirá sempre. “Sou eu mesmo o material do meu livro”, já reconhecera Montaigne.

Que cada um de nós escreva sua própria história — esse o núcleo do novo processo civilizatório, o qual bate de frente com a alienação presente nas sociedades contemporâneas, nas quais o êxito social algumas vezes se dá em detrimento da felicidade pessoal e o trabalho de muitos é apropriado por poucos. A autonomia pode ser a palavra-chave no mundo de hoje. Ao se valer de cada um dos seus sentidos, o homem se humaniza, cria e também se liberta. Sem fazer tábula rasa da biologia, convém salientar que a natureza do homem é também — e fundamental e profundamente — cultural. O homem é sempre a soma de todas as suas experiências sociais. Os homens não se dividem entre nobres selvagens, de um lado, e pessoas naturalmente más, de outro. De forma muito mais complexa, os homens, instintivamente, ora se comportam de maneira mais individualista, ora de modo mais coletivo. Ou seja, o social e o biológico caminham juntos — mas é normal que haja, aqui e ali, alguns desencontros. E nada é mais justo, aos olhos de quem trabalha, do que almejar melhorar a vida ou de vida.

Que o sonho de cada um possa ser medido pelo “amor que move o sol e as demais estrelas” (Dante Alighieri).

A democracia — sem adjetivos de tipo algum — é o novo nome do sonho. E o novo sonho só pode ser herdeiro daquilo que a Humanidade produziu de melhor. Ou seja, de todas suas tentativas conscientes de barrar a espoliação humana e dar um sentido às nossas vidas. Da filosofia grega à sensibilidade dos poetas latinos. Do espírito comunitário dos povos ditos primitivos e tradicionais ao espírito de comunhão das diversas religiões. Do Renascimento, sempre atual, uma vez que remete o homem ao próprio homem. Do Iluminismo também. Do marxismo (e suas partes integrantes), que investiga as causas objetivas da exploração do homem. Da psicanálise, que examina as razões subjetivas do sofrimento deste mesmo homem, como já se falou. Do sopro libertário das diversas descolonizações. Da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento central da contemporaneidade. Da chamada contracultura no Ocidente, apesar da ambiguidade do termo. Da beleza da Arte, pois como disse um pensador “um dos principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo” (Jean-Paul Sartre). Do respeito devido aos idosos, às crianças e a todos os demais indefesos. E também do novo papel social adquirido pela mulher. Dos embates sindicais, operários e camponeses e seus anseios por justiça, igualdade de oportunidades e divisão das riquezas. Do retorno a formas de vida mais próximas de suas fontes naturais (sem esquecer que um processo de mudanças — ainda que não se resuma à ética, é bem verdade — tampouco pode prescindir dela). Da memória e das paixões de todos nós, homens de boa vontade, enfim.

Precisamos de um novo relacionamento entre os seres humanos e as coisas que os cercam — e o novo se alimenta do velho. O passado se infiltra no presente das sociedades como a lembrança se incrusta na vida mental das pessoas. Pois a vida cessa quando cessam a continuidade e a memória.

A teoria inseparável da ação. Teorias não podem tudo. Conforme disse o pintor português Almada Negreiros: “Quando eu nasci, já estavam escritas todas as teorias para salvar a Humanidade. Faltava só salvar a Humanidade”.

A questão passa então por detectar quais as novas forças emergentes e de que meios elas dispõem para implementar as mudanças.

O desafio hoje implica, justamente, reunir todas essas lutas reformadoras; dar-lhes um espaço ou um denominador comum. Ou seja, montar uma nova formação política, até como maneira de se romper com a fragmentação presente nas práticas sociais atuais. Uma nova formação, no conteúdo e na forma. Que incorpore as novas tecnologias, como elemento de consulta e participação, a exemplo das possibilidades abertas pelas redes e conexões virtuais estabelecidas pela internet e meios correlatos de comunicação, expressão e também de atuação. A reunião entre indivíduos tende, com efeito, a se revestir cada vez mais de comportamentos novos. Os lugares de convivência estão mudando, deslocando-se por vezes das passeatas, dos comícios ou até mesmo dos anfiteatros e dos cafés para as redes. Mas mesmo assim não deixam de ser lugares. Essas redes, que podem se transformar em uma espécie de novo organizador coletivo, como outrora o jornal revolucionário, não se contrapõem à política — antes a revigoram; pois não existe sociedade sem política. É possível fazer convergir as antigas formas de encontro com as novas. Aí estão as mudanças no Oriente Médio, como exemplos disso. E é preciso ainda criar mecanismos que viabilizem a presença da sociedade nos órgãos influentes da nova formação, independentemente até mesmo de filiação partidária ou não. Enquanto entidade privada, a nova formação tem que ser um instrumento da sociedade junto ao Estado e não o contrário. A sociedade é sempre determinante. Na realidade, nunca é demais insistir que ela é a grande geradora de cultura, tecnologia e informação.

Fortalecendo cada vez mais a sociedade civil, forçosamente plural, a nova formação política trabalhará para enfraquecer aos poucos o Estado, a ponto de torná-lo socialmente desnecessário e obsoleto. Ela fará a ligação ou intermediação entre o Estado e a sociedade organizada. Ela poderá se apresentar como a agremiação da sociedade do conhecimento, com os criadores de cultura, ciência e informação como atores sociais imprescindíveis. Ser a agremiação, em suma, da luta pelo fim de toda e qualquer subordinação: da maioria pela minoria; da sociedade civil pelo Estado; de quem trabalha por quem não trabalha; da mulher pelo homem; de uma pessoa por outra, enfim.

Daí a necessária centralidade da cultura e também dos movimentos, como forma de alterar comportamentos e combater preconceitos. Em relação à mulher, por exemplo. Como sabemos, ela é a metade da Humanidade. Mais do que isso, ela é mãe do homem. A mulher acolhe, dá abrigo ao homem. Ela é a guardiã da vida: o útero foi a primeira casa do homem. Durante muito tempo, a mulher foi de fato o proletário do homem. E talvez ainda o seja em determinados pontos do planeta. “A mulher é o primeiro ser humano que teve de sofrer com a escravidão” (Bebel). Nem toda situação de opressão emana do trabalho diretamente produtivo.

Nos célebres Ensaios, o filósofo francês Montaigne lembra uma história fabulosa envolvendo a coragem feminina, a qual merece ser contada sempre. O imperador Conrado III, ao cercar o Duque da Baviera, concordou em permitir que as mulheres deixassem o seu reduto, com a “condição de saírem a pé e levando apenas, com elas, o que pudessem carregar’ E empenhou sua palavra nisso. E as mulheres não titubearam: puseram às costas os filhos, os maridos e o próprio Duque, furando assim o cerco. Isso se deu no século XII.

As razões que conduziram à dominação do homem sobre a mulher remontam aos primórdios da Humanidade, quando a força física — e o homem era mais forte fisicamente do que a mulher — fazia as vezes de mola-mestra da sobrevivência (é preciso ver que estamos nos referindo a um período anterior à civilização moderna, o qual transcorria sob a égide dos instintos e, mesmo, da agressão). Hoje, até na esfera da produção material mais sofisticada, essa força cedeu lugar ao intelecto e à criatividade. Mais um motivo para que esse predomínio perdesse completamente o sentido. Se é de fato verdade que estamos longe da visão grega de uma mulher reduzida à sua função procriadora, não é menos verdade também que, se tomarmos como parâmetro o poder institucional, teremos de reconhecer que, mesmo em um país como a França dos primórdios do século XXI, a mulher representa apenas cerca de 12% da composição do Congresso Nacional.

Decididamente, o poder ainda é um grande diferencial entre os chamados gêneros. “Não há História fora da mulher amada...”, vaticinou um escritor do século XVIII, Jules Barbey d'Aurevilly, destacando o papel da mulher na trajetória humana — feita também de subjetividades. Pois sentimentos como o amor e a amizade — assim como atitudes solidárias e desprendidas — tornam mais prazerosas nossas existências. Não há sociedade que se sustente sem isso e sem a mulher no centro da vida. Ela foi fundamental na formação da produção (passagem da coleta para a agricultura) e que continua sendo decisiva na reprodução do homem. O antropólogo Claude Lévi-Strauss disse, certa vez, que o que realmente importava para nós era assimilar como os produtores se reproduziam. Tanto quanto os instrumentos de trabalho, o sexo é ordenador da nossa vida em sociedade, da nossa humana condição. E para isso não precisamos, a rigor, recorrer à vida nas chamadas sociedades primitivas — basta olhar o mundo à nossa volta.

Se o feminismo é um humanismo, ele tem de fazer dos homens aliados das mulheres. Pois bem. Mas homens e mulheres vivem forçosamente uma igualdade... diferente. Vale dizer, iguais nos direitos, diferentes na forma de se situar no mundo. De sentir este mundo.

O legítimo direito à diferença não pode se dar, contudo, em detrimento da universalidade dos conhecimentos e das práticas humanas. Vale dizer, reconhecer as diferenças sem deixar de ressaltar as semelhanças. Pois não há gênero fora da História, sem pertencimento a uma classe ou categoria social, por exemplo.

Se os direitos sociais não têm sexo, o corpo e a sensibilidade sim. Na verdade, o combate é duplo: tem desdobramentos públicos, mas também privados, como a necessária ampliação dos direitos femininos na própria esfera doméstica. A democracia dentro de casa renova a democracia fora dela. Já ensinava um pensador: “o essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima: e dessa somos nós os amos” (Epicuro). Ou seja, a necessidade de se ter consciência do desejo e também o desejo de se ter consciência. A razão e o sonho, irmanados. A libertação social não pode prescindir dos nossos anseios e expectativas, os quais se alojam no mais profundo da nossa alma.

Desponta em boa parte dos países do mundo uma nova compreensão acerca das conexões entre movimentos sociais e esfera política, uma vez que as práticas de poder atravessam o conjunto das relações sociais e humanas. Se os movimentos sociais alteram as formas comportamentais — como as relações entre os grupos étnicos e as relações homem-mulher, por exemplo —, essas mesmas formas estão igualmente presentes no aparelho de Estado, como peças, portanto, de poder

O mesmo podemos dizer no tocante às nossas relações com o meio circundante — desconhece as fronteiras, essa violação da geografia pela história. Na esteira do comércio e da produção em escala mundial, após as conquistas coloniais, as plantas domesticadas unificaram os continentes. O mesmo ocorre com os processos de extração de ferro e petróleo. Hoje, ventos, maremotos, aquecimentos de todo tipo revelam cada vez mais que a natureza desdenha as barreiras impostas pelas nações. E que, sobretudo, a reprodução ampliada do capital tem pela frente um novo inimigo: o meio natural, justamente, cujos recursos são para lá de finitos. E isso sensibiliza as pessoas, faz com que elas se organizem e protestem. Evidentemente, o modo de produção capitalista não detém o monopólio dos danos ambientais — mas sua capacidade de sugar a terra e tudo que se mexe sob ou sobre ela é espantosa.

Ciência da vida — uma vez que estuda as relações que os seres vivos estabelecem entre si e com o meio circundante —, a ecologia é um caso interessante de conhecimento científico que se transformou em ação política, com alguns de seus conceitos invadindo nosso cotidiano e nossa vida prática. Espécie de sociologia da natureza, a ecologia revela aos homens que também as plantas e os animais vivem em comunidades e que nenhum organismo consegue sobreviver de forma isolada e que essa sobrevivência só se torna possível quando ocorre um equilíbrio entre as diferentes ações desencadeadas por esses seres vivos. União, harmonia e conservação: essas as chaves para a manutenção da vida natural.

“Sabemos o que fazem os animais, quais as necessidades do castor, do urso, salmão e de outras criaturas, porque antigamente os homens se casavam com eles e adquiriram esse saber de suas esposas animais... ” Essa impressionante passagem de um mito revelada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss em seu livro O pensamento selvagem nos faz refletir sobre uma época em que não havia um corte entre o mundo natural e o mundo social. Esse corte se deu pela cultura, essa outra natureza do homem... Mas daí a haver a ruptura que temos hoje, a distância é muito grande. Pois o homem tampouco pode se desvencilhar de sua segunda natureza — aquela do homem natural. O homem é a natureza pensando. A natureza pode e deve suprir nossas necessidades sem que isso implique que o homem a transforme em uma simples fonte de rendimento, uma espécie de armazém de matérias-primas indispensáveis ao desenvolvimento da indústria. Não se trata de combater o consumo — pois não existe sociedade que deixe de consumir e, além do mais, um dos maiores dramas da Humanidade é que faixas consideráveis da sua população sequer têm acesso a bens básicos. Nem consumismo nem penúria, então. O que está em jogo, isso sim, é a compreensão de que é preciso mudar as formas de se produzir em sociedade.

A passagem da natureza de condição de ventre do homem àquela de máquina desse mesmo homem está custando muito mais caro do que podemos imaginar

Assim como nada existe fora da História — ou de um tempo —, nada existe fora da terra — ou de um espaço. Mas a natureza não toma o poder... (ainda que possa se “rebelar”), cabendo aos homens conscientes reordenar suas relações com ela.

Concentração de chumbo nas plantas (captadoras de energia solar), poluição do ar e das águas, uso de inseticidas: como conciliar progresso e vida saudável? Os elementos básicos da biosfera — ou seja, a água, o ar e o solo — estão sendo degradados de forma assustadoramente rápida ou até irreversíveis. Esse não é o menor dos nossos dramas.

Essa constatação leva a outra: a de que o capitalismo está prestes a se tornar um modo de depredação, de tal forma vem colocando a busca desenfreada pelo lucro acima dos compromissos com a produção propriamente dita. Isso acontece particularmente com o chamado capital financeiro, volátil. Daí a presença ou mesmo o alastramento de uma espécie de burguesia do crime no mundo, direcionando seus capitais para atividades e práticas ilícitas. Com isso, desenvolve-se também uma ideologia da destruição, um tipo de anti-humanismo total. Refúgios tradicionais do humanismo, como a arte, já sofrem tremendamente com isso, arrastadas que são pelas ondas da violência, para as “águas geladas do cálculo egoísta”. Ao defender a “necessidade da arte”, o pensador e revolucionário austríaco Ernst Fischer reconhecia seu papel como força complementar à vida e fator de desalienação do ser humano. Sua força pedagógica, em síntese.

Vale dizer, a tarefa do nosso tempo implica encontrar soluções para esses impasses. Sem esquecer que os problemas criados pela intervenção tecnológica serão resolvidos pela própria tecnologia — e não por um retorno a um passado natural mítico. E tecnologia nada mais é do que criação, intervenção cultural do homem.

Prossigamos. Durante muito tempo, no denominado campo progressista, a questão social foi reduzida ao conflito capital versus trabalho. Mas é preciso lembrar que há conflitos — e, mesmo, situações de exploração e de estranhamento — anteriores ao pleno estabelecimento do modo de produção capitalista. Que saem do fundo da História. A questão racial se insere nisso daí, assim como a própria problemática sexual e aquela dos que têm deficiência física ou orgânica. É preciso abordá-las como parte da luta — e não como luta à parte. Reconhecer o específico não implica desconhecer o geral.

Não há área de injustiça separada das demais e a ausência de universalização conduz, forçosamente, a uma política de privilégios e exclusões. Daí a importância de não se perder de vista a noção de “totalidade, a penetrante supremacia do todo sobre as partes” (Lukács). O todo não é a parte e a parte não é o todo — mas tudo isso é inseparável.

Trata-se assim de resolver o problema particular pelo geral e vice-versa. Exemplifica essa conjugação a formação de núcleos étnicos nos partidos políticos e outras entidades de representação popular. Só se combate o racismo e os preconceitos em geral com educação e também reforçando o convívio entre as pessoas e os próprios povos. Durante muito tempo recorreu-se à biologia e à noção de raça na tentativa de justificar a submissão de um povo a outro, em descarada manipulação. Tal atitude nada tem a ver com a ciência e, sim, com a expansão e a dominação econômicas.

Integrar o cotidiano e as questões relativas ao modo de vida à política é parte também do novo sonho. Conforme indicou o sociólogo francês Alain Touraine, os conflitos, na sociedade do conhecimento, ao invés de acabarem, antes generalizam-se. Com isso, as lutas se alimentam mutuamente.

Somos todos psiquicamente iguais. A nossa maior obra é a nossa própria vida. O principal direito é o direito a si mesmo. À sua identidade. A sociedade que queremos não se compõe de maiorias nem de minorias. O que une as pessoas é muito mais expressivo do que as desune.

Opor ao estado de coisas atual uma resistência firme e serena, de pequenos, porém, decisivos passos. Uma resistência que talvez não seja lá muito heroica ou espetacular — mas que pode se revelar eficiente, radical e profunda. Ademais, as mudanças lentas e graduais são muito mais frequentes e estão muito mais presentes sobre a cena histórica do que as mudanças abruptas, conforme costuma lembrar o revolucionário brasileiro Armênio Guedes — para quem o conceito de esquerda, por exemplo, não é nem um pouco fixo, variando historicamente como qualquer outro. E são essas mudanças e esses conceitos frutos de consensos e negociações de longo prazo. Não se impõe nada a ninguém — nem mesmo a liberdade.

“E, no entanto, se move” (Galileu Galilei). Suavidade nos métodos e radicalidade nos objetivos. Espírito crítico e ação rebelde sempre — com a cultura, em sentido amplo, no centro de tudo.


Inclusão 16/08/2019