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A cultura abre o caminho para as grandes transformações sociais. Historicamente tem sido assim em vários pontos do mundo, conforme se pode verificar ao examinarmos as grandes revoluções Francesa (1789) e Russa (1917) e seus estupendos intelectuais e artistas. Do filósofo Rousseau ao poeta Maiacovski, do revolucionário Saint Just ao não menos revolucionário Lênin e deste ao romancista Máximo Górki ou o cineasta Eisenstein e o pintor Marc Chagall. Isso, para não aludirmos aos movimentos culturais e utópicos que embalaram o sonho desses homens, tenham esses sonhos o nome de Iluminismo ou Futurismo. A cultura anuncia o novo. É da sua natureza. A cultura, sendo coletiva, também dá ao homem uma dimensão da sua individualidade. Assim, ela é um ponto de interseção entre o particular e o geral.
Com efeito, o conhecimento, como expressão da criatividade e da observação, tende a marchar com as mudanças, senão estar à frente delas. É o que demonstra a experiência recente da História, tanto no plano das transformações políticas — com a participação destacada de tantos formuladores e militantes provenientes das diversas áreas da cultura e da criação nas revoluções contemporâneas — quanto no terreno das mutações tecnológicas que a ciência vem promovendo no mundo. Um revolucionário rigoroso como Vladimir I. Lênin chegou a dizer — referindo-se, em 1902, à natureza da organização dirigida por ele — que não deveria haver diferença entre a ação revolucionária dos operários e dos intelectuais no interior da agremiação, formada por profissionais da agitação política. E esse processo da presença das forças portadoras de conhecimento sobre a cena política e econômica só fez se aprofundar na passagem para o século XXI.
Ainda que a sociedade seja o palco por excelência das contradições sociais, estas também ocorrem no plano das ideias. Ou “o ideal não é senão o material transposto e traduzido na mente humana?” (Karl Marx).
A História ensina que há fortíssimas ligações entre cultura e liberdade. Os períodos mais livres da trajetória brasileira foram também os mais profícuos. E, por vezes, o simples fato de se desejar a liberdade já configura uma realidade suficientemente poderosa para aguçar os nossos espíritos. Ou a Inconfidência Mineira não teve um impacto extraordinário sobre a nossa vida cultural? Quantos não se dedicaram às artes na região das Gerais, embalados pelo sonho libertário? Citaríamos ainda como exemplo, na fase contemporânea, os chamados anos dourados, a Era JK. Cinema Novo, a arquitetura de Brasília, a Bossa Nova, a explosão do esporte são conquistas dessa época — uma época indiscutivelmente livre.
E a História ensina também que o espírito crítico é condição básica para a criação. Dos vários caminhos que se apresentam ao artista — que vão da negação de tudo à aceitação pura e simples das regras do jogo — , sem dúvida aquele da inserção crítica na realidade tem se revelado o mais produtivo. Ou a arte não seria a eterna busca da harmonia e do ponto de equilíbrio.
E não podemos desconhecer tampouco as ligações marcantes entre cultura e criação popular, de um lado, e prática erudita, de outro — sem nos esquecermos ainda da ligação desse bloco com a chamada indústria cultural, que possui inegáveis aspectos de democratização do conhecimento. Prova maior disso é o caráter de cultura fronteiriça — aquela em que o criador tem um pé em cada margem do rio — de boa parte da produção artística brasileira. O músico Alfredo da Rocha Vianna, o Pixinguinha, era um artista fronteiriço e o mesmo se pode dizer de Heitor Villa-Lobos. O escritor Machado de Assis também tinha essa dupla natureza — e a afirmação é válida ainda para o dramaturgo Ariano Suassuna e o romancista Lima Barreto. Entre os pintores, Cândido Portinari era um homem do povo e Tarsila do Amaral, nascida em uma abastada família de plantadores de café de São Paulo, soube ir ao encontro das nossas origens populares. O poeta Ferreira Gullar também possui essa natureza duplicada. O mesmo diríamos do compositor e escritor Nei Lopes. E de Elomar Figueira de Melo, esse renascentista dos nossos sertões. Ou seja, todos esses artistas mesclavam aparato erudito, técnica altamente sofisticada e sentimento popular. Alguns partiam do popular em direção ao erudito — outros faziam o caminho inverso. Mas todos se encontravam na tênue linha da fronteira. Não há contradição nisso.
Ainda em relação à importância fundamental da liberdade, defendemos a posição de que a cultura salvou muitas vezes o povo brasileiro do isolamento, sobretudo nos anos terríveis da ditadura militar. Foi a sua alegria de viver, em meio àquela escuridão. Por intermédio da cultura se respirava. Afinal, não se pode colocar uma cultura inteira na cadeia.
A atividade cultural é fundamentalmente agregadora. Agindo em estreita ligação com a esfera da educação e da própria comunicação, a cultura talvez seja o grande elemento de união dos povos neste século XXI.
Muitos são os desafios enfrentados pela cultura. A prática cultural, como sabemos, não satisfaz a uma necessidade puramente material e, isso sim, à realidade da criação. Esse o seu compromisso básico. Eis o que vai de encontro, naturalmente, ao espírito do capitalismo, à sua lógica perversa que tudo arrasta “para as águas geladas do cálculo egoísta”, conforme Karl Marx e Friedrich Engels haviam assinalado no Manifesto do Partido Comunista de 1848. Mas é preciso criar, criar mais e sempre, pois temos consciência de que a sociedade é a única fonte geradora de cultura e que o Estado deve se limitar a ajudar a alavancar a criatividade das pessoas. E não apenas isso: o Estado deve evitar a qualquer preço direcionar a atividade cultural ou artística. Sabemos todos aonde isso vai dar.
A política tem estimulado a cultura e mesmo a reflexão filosófica mais profunda: desde pelo menos a Revolução Francesa, para nos atermos ao início da chamada modernidade, não foram poucas as obras de valor escritas no calor da luta, como já insinuamos antes. A inteligência como sinônimo das mudanças. Autores como Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx, Friedrich Engels, Frantz Fannon, Erich Fromm, Norberto Bobbio e Ernst Fischer são patrimônio da Humanidade. As artes plásticas e cênicas tampouco deixam de nos impressionar Casablanca é um filme político — e também uma obra-prima. Guernica, de Pablo Picasso, talvez seja o grande quadro do século XX. O teatro de Bertolt Brecht encanta as plateias do mundo inteiro. Um livro como Dr. Jivago emociona ainda hoje, pelo seu caráter épico e libertário. Alberto Giacometti busca inspiração na África para suas esculturas magníficas. Erudito e popular. Nacional e regional. Moderno e tradicional. Criatividade acima de tudo: a cultura, como humanismo que é, vem derrubando essas barreiras de tempo e lugar, devido à sua vocação universal, ao seu desprezo pelas amarras, uma vez que abrange toda a existência humana. As ideias socialistas, postas em prática durante o processo revolucionário russo, por exemplo, tampouco escaparam a esse esquema, muito pelo contrário: “a doutrina socialista nasceu das teorias filosóficas, históricas, econômicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais”, asseverou Lênin no seu célebre O que fazer?
Diríamos ainda que a experiência das democracias representativas revela uma nítida ligação entre participação eleitoral progressista e acesso ao conhecimento. Ela demonstra que ali onde a educação se cristalizou o voto conservador encontra mais dificuldades em se expandir, mesmo em algumas faixas de renda consideradas mais elevadas da população. E o inverso também é verdadeiro: o posicionamento político mais avançado se depara com muitas barreiras em áreas e setores carentes de instrução, informação e acesso à ciência e à cultura. Assim, o “corte” não se opera somente no plano da renda ou mesmo da inserção na esfera produtiva, tendo também importância crescente as questões relacionadas ao modo de vida, ao pleno usufruto do conhecimento. A desinformação dá as mãos ao conservadorismo enquanto a instrução abre via para a conscientização social. Isso é fato. Após a catástrofe nazifascista, não dá para afirmar que um movimento é progressista pelo simples fato de arrastar multidões. A experiência iraniana recente também se encaixa nesse modelo, a intervenção popular sendo desviada para um processo teocrático, profundamente reacionário.
Independentemente dos atores e das conjeturas políticas, a luta não cessará enquanto o trabalhador continuar sendo alijado dos meios de produção e recebendo pelo seu esforço um valor abaixo daquilo que de fato ele cria. Esse afinal o grande embate.
Inclusão | 16/08/2019 |