Lutas de Classe em Portugal de 25 de Abril a 25 de Novembro
(e suas Relações com as Lutas de Independência na África)

Partido Comunista Internacional


O Mito do Dualismo de Poderes em Portugal


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A 9 de março de 1917, fazendo mofa do espanto da burguesia russa e internacional diante da notícia da brusca queda da autocracia, fato que ela considerava como um verdadeiro milagre, Lênin escrevia de Zurique; "Nem na natureza, nem na história acontecem milagres; mas toda reviravolta brusca da história, e especialmente toda revolução, proporciona um conteúdo tão rico, desenvolve combinações de formas de luta e de correlação entre as forças em luta tão inesperadas e tão originais, que muitas coisas podem parecer milagrosas à mente do filisteu"(1).

Duas forças principais, cada uma delas ligada às condições históricas e internacionais do passado e do presente, tinham concorrido para a realização desse "milagre"; por um lado, a santa aliança da burguesia e da grande propriedade rural, "com todos os seus acólitos inconscientes e todos os seus orientadores conscientes — os embaixadores e capitalistas anglo-franceses -", que tinha subido ao poder não só graças ao impulso mas também em função da guerra imperialista, cuja continuação mais eficaz até a vitória perseguida ela devia permitir; por outro lado, a classe operária, organizada nos Sovietes de seus "deputados" (ela tinha conservado fresca na memória a lembrança das gigantescas lutas de 1905 e da longa guerra de posições dos anos seguintes) , arrastando atrás de si primeiro os "camponeses fardados" e, em seguida, os camponeses à paisana.

Na mente dos burgueses, dos proprietários rurais e dos "assistentes de direção" daquele "vigoroso acelerador" que tinha sido o conflito imperialista, bem como nos anseios do oportunismo, que tinha ligado inteiramente seu destino à sorte do conflito e, portanto, da ordem burguesa com seus novos trajes democráticos, essas duas forças formavam, e deviam necessariamente formar, um só e único bloco. Lênin, por sua vez, tinha em mente os "interesses de classe absolutamente heterogéneos [as] aspirações políticas e sociais absolutamente opostas" que faziam, do que era aparentemente um só bloco, o teatro de uma luta que não ora ocasional, mas histórica, e o início de algo muito mais vasto: a revolução proletária internacional, deflagrada contra a "maçaroca sangrenta" que ligava entre si "as potências beligerantes, os grupos beligerantes de capitalistas, os "amos" do regime capitalista, os escravocratas da escravidão capitalista".

A guerra tinha posto bruscamente em movimento essas forças. Juntas — mas juntas apenas objetivamente —, elas tinham dado o golpe de misericórdia no tzarismo. Porém, aquilo que os homens de bem do mundo inteiro tinham tomado por um milagre havia engendrado outro milagre, imprevisto por eles, mas esperado pelo marxismo; não tanto o "milagre" do reavivamento dos antagonismos e, portanto, da luta de classe, mas sobretudo o da cristalização em dois poderes distintos e inconciliáveis desses mesmos antagonismos e das classes a eles correspondentes, as quais só convergiam por instante numa tarefa "comum".

Esses dois poderes opostos eram, por um lado, o governo burguês dos outubristas e dos cadetes — governo "que quer levar a guerra imperialista até o fim e que é, na realidade, um empregado da companhia financeira Inglaterra & França" -; por outro lado, o Soviete, "uma organização operária, o embrião do governo operário, representante dos interesses de todas as massas pobres, que aspiram à paz, ao pão e a liberdade". Embrião de governo, sim, mas com seus destacamentos armados, seus corpos de polícia, seus órgãos administrativos, seus primeiros golpes de aríete no aparelho de Estado existente, suas incursões no sacrário da hierarquia militar, sua irresistível tendência a estender-se da cidade ao campo, substituindo — justamente em nome das aspirações elementares das massas pobres e exploradas — o poder de fato e de direito. E embrião de poder significava embrião de Estado, órgão de que os marxistas, ao contrário dos anarquistas, sabem que necessitam; significava, em suma, germe de uma ditadura.

"Situação original", dirá Lênin um mês depois aos velhos bolcheviques aferrados ao esquema paralizante da "revolução burguesa ainda não acabada". Original, não porque contradissesse a previsão de 1905, mas porque "o diretor de cena onipotente" — a guerra mundial — tinha encurtado as etapas previstas do cataclisma social russo, colocando a classe operária de sopetão à frente dos camponeses e, primeiro ainda, dos soldados e levando-a "até quase à ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses"(2). "Situação original", não porque a história não tivesse conhecido situações congéneres (durante todo o ano de 1917, Lênin não cessará de referir-se não só à Comuna de Paris de 1871, como também à de 1792-1793; e Trotski, treze anos depois, evocará na Historia da revolução russa o exército de Novo Modelo de Cromwell), mas porque o férreo encadeamento dos fatos objetivos tinha posto com urgência na ordem do dia, para as classes exploradas, um poder que não fosse criado nem muito menos regido pela lei existente. E isso abria uma brecha na estrutura do novo "poder legítimo" e da sociedade de que esse poder era o baluarte.

A originalidade da situação não se esgotava nisso. Como Lênin declarará no I Congresso dos Sovietes, em junho de 1917, ela estava na existência de um partido que não se limitava a "tomar nota" da realidade de dois poderes empenhados numa luta inconciliável (inclusive os burgueses e seus lacaios oportunistas nela se empenhavam, embora por razões diametralmente opostas), mas que estava pronto para assumir o poder e que proclamava, desde então, que quem quer que apoiasse e incitasse os operários a apoiar o governo legítimo era "um traidor dos operários, um traidor da causa do proletariado, da causa da paz e da liberdade". Esse partido assumia a tarefa de "armar o proletariado, consolidar, ampliar e desenvolver a função, a importância e a força do soviete dos deputados operários", sabendo perfeitamente que "o entrelaçamento", a "formação de um todo" entre ditadura da burguesia e ditadura do proletariado e dos camponeses "não estava em condições de manter-se por muito tempo"(3). Ela duraria tanto mais, quanto mais se permitisse que a gangrena da "intoxicação pequeno-burguesa", do fascínio enganador e corruptor da "unidade", que o predomínio da "frase revolucionária" sobre o conteúdo, do apelo a apoiar o governo legal para "combater" a "reação à espreita"(4), infiltrasse e corroesse órgãos proletários ainda jovens e frágeis (como já estava acontecendo; e em abril o processo será rapidíssimo), o que seria de grande proveito para a burguesia.

Essa convicção não era fruto da iluminação genial de um indivíduo, mas o resultado de um balanço histórico de três quartos de século de lutas proletárias. Como Trotski escreve com razão, "nenhuma classe histórica bem definida se eleva repentinamente, numa só noite, mesmo que seja uma noite de revolução, de uma situação subalterna à hegemonia. Já na véspera, ela deve ocupar uma posição extremamente independente em relação à classe dominante. (...) O dualismo de poderes não só não pressupõe mas em geral exclui a subdivisão da autoridade em partes iguais e, em suma, qualquer equilíbrio formal da autoridade. É um fato revolucionário, não um fato constitucional (...). O dualismo de poderes se manifesta onde as classes antagónicas já se apoiam em organizações estatais fundamentalmente incompatíveisuma superada, a outra em formação — que a cada momento se repelem reciprocamente no plano da direção do país"(5). Mas esse estado de coisas, que em si representa uma conquista, nada tem de definitivo; ele pode ser perdido no espaço de uma noite, quando foram, porém, necessários meses e meses para produzi-lo. E por quê? Porque se trata de uma situação fora do comum, de uma espécie de "redução ao absurdo" da "compatibilidade dos antagonismos de classe" — um "absurdo" que, para ser positivo, não deve ser considerado como um resultado satisfatório e definitivo.

Não é por acaso que, ao recordar a Comuna, Lênin escreve que "um poder do mesmo tipo da Comuna de Paris" existe na Rússia, não só "na medida em que existem os Sovietes", mas sobretudo "na medida em que eles são um poder" e em que não cedem "suas posições à burguesia"(6). Não é por acaso que, à sombra do assalto ao céu dos proletários de "São Petersburgo", ele vê o espectro dos Cavaignacs de junho de 1848, antes mesmo que o dos Galliffets de maio de 1871. Ou ir até o fim, ou bater em retirada até a capitulação!

Uma revolução, ainda que vencida, pode ter tido o privilégio de nascer, como a de fevereiro de 1917, com os antagonismos de classe plenamente desenvolvidos, com as formas correspondentes de seu alinhamento organizativo já prontas, em vez de vir a luz sob o signo de tudo aquilo que, em fevereiro de 1848, tinha preparado a derrota e o massacre de junho: "a idílica abstração dos antagonismos de classe", "o equilíbrio sentimental dos interesses de classe contraditórios", "a magnânima embriaguez de fraternidade"(7), os "três meses de miséria oferecidos à República", as árvores da liberdade (antecipação dos cravos de Portugal) plantadas ao som da Marselhesa. Pode ter tido aquele privilégio, dizíamos, mas sempre pode cair nesse último estado.

A própria existência de dois poderes — sua coexistência — prova, na realidade, que as bases da supremacia da classe dominante foram minadas mas não destruídas. E dessas bases renascem todas as inercias políticas, sociais e ideológicas do passado, anunciadoras da contra-revolução; recobram vigor as influências oportunistas que germinam na periferia da classe operária e que se infiltram a partir daí no seu interior; começa novamente a oscilar no sentido contrário ao do movimento da história o pêndulo da pequena burguesia urbana e rural; e o "outro" poder só fortalece, invoca a ordem, exige o "fim do caos". Até que os proletários percebem — tarde demais, porém!que é preciso dar um basta nisso tudo, e tombam nas barricadas de um sem número de junhos.

Será que é preciso dizer que a mesma coisa teria acontecido na Rússia e que Outubro nunca teria vindo à luz sem o partido que, de março a abril, ou melhor, na longa fase de preparação que vai de 1905 a 1916, tinha não só previsto, mas querido, preparado, organizado o outro desenlace, o desfecho vitorioso?

★★★

Antes, durante e depois de 25 de abril, nunca cometemos o erro escandaloso de confundir os cravos da "revolução portuguesa" com a bandeira vermelha do duplo poder surgido da revolução russa de fevereiro, e muito menos ainda com a bandeira do poder único, gloriosamente só, surgido da Revolução de Outubro. Os que o cometeram, porém, escandalizam-se com o fato (para nos nem um pouco escandaloso) de que, no dia 9 de outubro de 1975 — Pinheiro de Azevedo tenha dado aos militares ordem para voltarem aos quartéis; aos operários, ordem para se curvarem docilmente sobre as máquinas; aos camponeses, ordem para lavrarem seu árido pedaço de chão; aos trabalhadores em geral, ordem para saírem do caos da indisciplina e da "euforia reivindicatória". E acham igualmente escandaloso o fato de que, no dia 25 de novembro, Costa Gomes tenha sufocado a revolta dos pára-quedistas, e tudo mais que aconteceu em seguida.

Mas o que é verdadeiramente escandaloso é o fato de que, em todo o âmbito da "extrema esquerda", ninguém tenha sido capaz de entrever a gélida conclusão que se anunciava detrás das premissas floridas, a tumba da luta de classe independente detrás da máscara da unidade a qualquer preço — unidade entre MFA e povo; povo e operários ou camponeses; generais e soldados; e assim por diante em todos os tons da escala cromática. O que é escandaloso é o fato de que tenham feito passar por "dualismo de poderes", em ato ou potencial, aquilo que era um poder único, e por "Soviete", as fantasias da "assembleia", as imposturas "autogestionárias", as válvulas de escape do tipo "democracia direta", que encobriam o esforço tremendo da classe dominante para restaurar a ordem no país depois do "trauma" da decomposição do império colonial e da integração, desejada ou imposta, na economia européia.

Frágil no que concerne às suas estruturas internas, a burguesia portuguesa goza de sólidas ligações internacionais e é forte da experiência alheia (entre outras coisas, a experiência de dois séculos de tutela britânica). Fez em 1910 uma revolução democrática burguesa que, como recorda Lênin em O Estado e a Revolução (III,1) comparando-a com a dos Jovens Turcos, não tinha nada de "popular". Fez-se corporativista sob Salazar, dando-se ao luxo de sobreviver ombro a ombro com uma Espanha presa do terremoto social e da guerra civil. Forjou seus heróis de hoje no sangue dos massacres coloniais em nome de deus e da pátria. Na hora do acerto de contas, só teve que dar-se ao trabalho de escolher, entre a variedade de suas flores de estufa, aquela mais próxima do vermelho sem vermelha ser, a que mais tivesse cheiro de fraternidade, a mais popularmente aristocrática e aristocraticamente popular. Soube "conciliar" os antagonismos de classe que fermentavam na base das forças armadas e nas fábricas, servindo-se de um remédio de eficácia comprovada, o remédio, nas palavras de Marx, da "simpatia universal", da luta social que "só chegou a uma existência vaporosa, a existência da frase, da palavra", o remédio da suspensão do "terrível equívoco existente entre as classes" numa "embriaguez magnânima" não só de fraternidade) como também de liberdade e, de igualdade e, como é costume de bem uns quarenta anos para cá (para não remontarmos mais uma vez a 1848), de socialismo. Direta ou indiretamente, a "extrema esquerda" aceitou batizar tudo isso de "dualismo de poderes", de pré-revolução em marcha — pior ainda, da revolução pura e simplesmente —, criando uma realidade onde só havia uma ilusão e jogando com esta para eludir aquela, ou pior, para escondê-la aos proletários, traindo assim duplamente o ensinamento de Lênin.

Os Sovietes de Petrogrado e de Moscou tinham nascido como embriões de poder da classe dominada contra o poder que tinha caído de maduro nas mãos da burguesia nacional e até mesmo internacional. Os organismos que, em Lisboa, a miopia das "esquerdas" confundiu e até identificou com os Sovietes nasceram como emanação direta do poder burguês encarnado pelo exército.

Os primeiros tinham dado uma expressão real, e não pura e vãmente simbólica, à ruptura que se tinha, produzido na sociedade ao cair o tzarismo e que, por contragolpe, se tinha estendido ao exército, opondo os proletários e camponeses fardados — os simples soldados — a toda a hierarquia militar e arrastando atrás desses a população rural. Organizando os operários em corpos armados, embora de forma rudimentar, eles desarmavam as forcas oficiais de repressão do Estado. Reivindicando a paz, eles lançavam as bases da desmobilização das frentes de guerra.

Suas caricaturas portuguesas nasceram no seio das forças armadas como fatores que permitiam reabsorver em sua estrutura unitária as forcas centrífugas reais ou potenciais provenientes da tropa e salvaguardar o baluarte armado da ordem das repercussões dos antagonismos de classe.

Com todos os seus escalões hierárquicos intactos, nem um pouco ansiosa para desmobilizar as frentes de guerra, mas, muito pelo contrário, decidida a retardar o abandono das mesmas, seja para tornar possível uma evacuação indolor das tropas, seja para deixar o caminho aberto, se não para a sua própria volta à carga, ao menos para o reatamento dos vínculos (e que vínculos da sangue!) entre os escombros do império e o ocidente(8), essa estrutura, tornada ainda mais compacta pela aparência de uma "democracia revolucionária" finalmente instaurada, não só tratou de evitar de armar os proletários e camponeses sem terra, mas assumiu as funções de polícia social, que os Sovietes de Petrogrado tinham delegado autoritariamente a si próprios, e reservou para si a exclusividade das armas, que os Sovietes tinham tomado não menos autoritariamente para si.

Cabia aos partidos oportunistas, PS e PC à frente, sufocar, por sua vez, as "iniciativas da base", que tendiam perigosamente a materializar-se em órgãos rudimentares de defesa e, potencialmente , de ataque. Fizeram-no afogando esses órgãos naquela ampla frente popular que compreende também os católicos e os liberais”, naquela "estreita aliança entre as forcas populares e os militares democratas", que Soares e Cunhal, opostos no que toca à questão das alianças internacionais, mas de acordo quanto às questões de fundo, tinham preparado desde há muito. Apanhados entre as duas pinças de uma mesma tenaz, operários a soldados foram postos a trabalhar para a manutenção ou, ao primeiro sinal de fissura, para a recomposição daquela unidade republicana interclassista(9) que os Sovietes vermelhos de 1917 tinham rompido. E suas energias foram canalizadas e dispersas naquela espécie de "assembleismo" que o pseudo-extremismo pequeno-burguês envernizado de vermelho eleva, desde há muito, a modelo da "revolução" futura, em que tais "assembléias" não são sequer concebidas como instrumento de execução, isto é, de intervenção despótica na vida pública, mas sim como simples arena de escape de uma cólera social em discussão permanente.

Faltou em Portugal a preliminar constituída pelo caráter, ao menos potencial, de antiestado inerente ao Soviete, produto e, ao mesmo tempo, fator de uma situação que só é de "dualismo de poderes" na medida em que é pré-revolucionária. E faltou aquela outra preliminar, sem a qual a primeira é, sem dúvida, condição necessária mas não suficiente do acerto de contas final entre as classes: o partido. O partido de oposição permanente ao Estado, que não só teoriza essa oposição mas que age, também, no sentido de abrir ainda mais as fissuras, em vez de saná-las, e que prepara, dia após dia, a revolução, sempre pronto para substituir qualquer organismo imediato mal esse organismo renuncie a exercer a plenitude dos poderes, em vez de estar sempre perseguindo o fantasma de uma unidade a ser defendida ou, se rompida, a ser restabelecida.

Não foi acaso precisamente a acreditar a possibilidade da solucão oposta, isto é, a do mito unitário interclassista, que se dedicou aquela "extrema esquerda" que, em Lisboa como em toda parte, pretende reatar o fio da tradição revolucionária perdida? De fato, os maoistas, por um lado, e os espontaneistas, por outro, agitavam a bandeira do inquebrantável bloco "povo"-MFA; os trotskistas e paratrotskistas reempunhavam essa mesma bandeira, no próprio ato de renegá-la, pela via indireta da recuperação do oportunismo político e sindical, na perspectiva liquidacionista de um “governo operário" dos herdeiros locais de Noske e de Stalin; e, hoje, na versão revista e corrigida da FUR, a "extrema esquerda" contrapõe à fórmula da "unidade" sob o signo da disciplina e da ordem, encarnada pelo VI “governo da revolução", a fórmula, diferente apenas na aparência, da "unidade" a ser criada sob o signo de uma frente popular "de esquerda", temperada com a insubstituível especiaria da "democracia direta" finalmente conquistada, para uns, ou da "ditadura da classe e não de um partido", para os outros.

Se fosse possível confrontar o ciclo gloriosamente impetuoso de fevereiro-outubro de 1917 com o ciclo penosamente atrasado do 1974-1975 lusitano,- seria preciso passar de trás para a frente o filme da Petrogrado vermelha, começando-o a partir do beco sem salda em que os Sovietes estavam se metendo, e em que se teriam metido se não fosse a atuação decisiva do partido de Lênin: o mortal beco sem saída da subordinação de um movimento potencial mente revolucionário aos órgãos do poder constituído e à lei inexorável da classe dominante. Mas mesmo assim o confronto não é cabível, porque em Lisboa nunca existiu um "duplo poder", a não ser na imaginação aberrante e desorientadora dos que anunciam a três por dois a "crise de direção" da burguesia, com o que tentam ocultar sua própria renúncia às tarefas da preparação revolucionária e da ação de classe independente, inclusive em plena situação de controle totalitário das alavancas de comando pelo inimigo.

No jogo mutável das relações de força, os alinhamentos de classe não obedecem ao arbítrio do acaso, mas sim à lei de determinações materiais mais fortes que qualquer artifício "tático". Por isso, onde não acode o precedente histórico do fevereiro-outubro russo, só pode vir a dar-se o ciclo dos meses imediatamente posteriores a fevereiro de 1840 na Franca, quando a classe trabalhadora, saindo da embriaguez da simpatia universal e do fascínio enganador da unidade republicana, despertou para a consciência dos antagonismos “superados sentimentalmente" mas que reapareciam, por histórica determinação, por trás do véu da "frase", e percebeu, então, que lutara e se sacrificara não para si mas para seu adversário, e que detrás do sorriso da "bela revolução" despontava a sinistra gargalhada de Cavaignac gritando "maldito seja junho!".

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Em Lisboa também os antagonismos de classe artificialmente adormecidos ressurgem. Ou melhor, estão fadados a se exacerbar com os golpes de uma crise social e económica à qual a classe dominante, escondida atrás do biombo "mediador" das forças armadas, não é capaz nem pode opor nada mais além da eterna receita da austeridade e da ordem. Prova disso são os esforços confusos dos simples soldados e marinheiros no sentido de criar um mínimo de organização de defesa contra o conjunto do aparelho militar. Prova disso, a magnífica luta dos operários da construção, que sitiaram o palácio da assembleia e do governo. Mas, como demonstra a reconte contra-ofensiva do alto comando contra a indisciplina nas forcas armadas, por um lado o poder estatal fortaleceu-se nesses últimos meses muito mais do que amadureceu, em meio à tropa, o sentido de uma ruptura em relação à oficialidade; por outro lado, os próprios soldados rebeldes não vão alem da reivindicação de um governo que não seja o atual e, como os operários da construção, deixam-se ser manipulados sucessivamente ou por seus supostos "líderes carismáticos" (os Otelo e Rosa Coutinho, que ora...volatilizaram-se sem oferecerem a menor resistência), ou pelo PC, pronto para voltar à mais submissa e legalitária colaboração governamenta1 num governo da "direita".

Não e contestando um gabinete em favor de outro, invocado (como, infelizmente, os próprios SUV invocam) como uma acalentada "volta às origens", as quais são a causa primeira do balanço negativo de mais de dezoito meses de ilusões fatais; não é assim que será possível romper esse círculo vicioso que parece desfazer-se só para recompor-se num plano formalmente diferente. Ao contrário, a condição sine qua non para dele sair é que se rompa para sempre com o interclassismo frentista e que se enfie nas brechas que se abrirem no bloco informe da "unidade" a cunha da luta de classe independente; é que, no vivo da guerrilha proletária cotidiana em defesa das condições de vida, de trabalho e de luta, o partido que proclama abertamente a revolução e a ditadura vermelha, e as prepara, cresça, aprofunde suas raízes, se tempere, afie suas armas, amplie sua influência, varra do caminho este duplo flagelo: o oportunismo socialista-stalinista e o reboquismo esquerdista. A esse fio está 1igada não só a perspectiva final da conquista do poder, como também a perspectiva imediata da defesa física da classe contra o jugo do capital.

O problema não é local, mas internacional. A península ibérica, na sua parte espanhola, está às vésperas ou de um novo incêndio de classe, ou de um enésimo salvamento do status que levado a cabo por uma infame confraria de "reconciliadores" reunidos em torno da cabeceira da grande enferma para restituir-lhe o oxigénio de uma unidade nacional perdida. Nesse tabuleiro, talvez se jogue a sorte de mais um vintênio: ou um vintênio de guerra social, ou um vintênio de iqnóbil "paz" entre as classes em toda a área europeia dilacerada nela crise, mas ainda firme em suas bases burguesas graças à contribuição decisiva de todas as variedades de oportunismo.

Qualquer que nossa ser o veredito contingente da história, cabe aos revolucionários trabalhar para que essas bases não saiam fortalecidas mas, ao contrário, profundamente minadas. O que só pode ser conseguido pelo repúdio de toda frente interclassista, da toda nostalgia democrática, legalitária e pacifista.

(Programme Communiste, n.° 68, out.-dez. 75
Il Programma Comunista, n° 1, 9/1/1976)


Notas de rodapé:

(1) Lênin, Cartas de longe, I, em Obras Escogidas, t. 2, pg. 23 e seguintes, ed. espanhola (os grifos são nossos). (retornar ao texto)

(2) Lenin, As tarefas do proletariado na nossa revolução, 10 de abril de 1917, ibidem, t. 2, pg. 48. (retornar ao texto)

(3) A frase e de Lenin (loc. cit.) . Trotski, por sua vez, escreve: "Por sua própria natureza, tal situação [o dualismo de poderes] não pode ser estável. A sociedade necessita de uma concentração do poder e busca irresistivelmente essa concentração, seja através da classe dominante, seja, como em nosso caso, através das duas classes que dividem o poder entre si. A divisão do poder nada mais é que um prenúncio da guerra civil". (Historia da revolução russa, I, capítulo sobre o "dualismo de poderes"). (retornar ao texto)

(4) "Nada mais estúpido", dirá Lênin em 14 de março, "do que a tática que consiste em "apoiar" o novo governo com o suposto objetivo de "lutar contra a reação". Essa luta requer o armamento do proletariado" (em As tarefas do POSDR na revolução russa). (retornar ao texto)

(5) Trotski, loc. cit. (retornar ao texto)

(6) Lênin, O dualismo de poderes, 9 de abril de 1917, Obras Escogidas, t. 2, pg. 41. (retornar ao texto)

(7) Marx, As lutas de classe na França de 1848 a 1850, capitulo "A derrota de junho de 1848". (retornar ao texto)

(8) É até claro demais que isso contribuiu para o enfraquecimento da luta de independência nacional, principalmente em Angola, preludiando uma nova tragédia congolesa, do mesmo modo que o retorno dos colonos à metropole prepara uma reedição portuguesa da sangrenta experiência chilena. Também nisso, a responsabilidade da "extrema esquerda" é enorme, como já tivemos a oportunidade de demonstrar em outros artigos. (retornar ao texto)

(9) Marx observava que a república de fevereiro na França, não se chocando com nenhum obstáculo, encontrou-se pouco a pouco desarmada. A burguesia portuguesa e seu "braço secular", as forças armadas, lograram realizar a obra-prima de fazer com que se volatilizassem fisicamente primeiro o salazarismo, depois o spinolismo, depois, sucessivamente, os "espectros" das mais diversas reações, empurrados para a cena um depois do outro e logo dela retirados. E o fez, ora mobilizando, ora desmobilizando as massas populares, desorientando-as e, por isso mesmo, desarmando-as física e moralmente. (retornar ao texto)

Inclusão 25/04/2019