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Reunimos nesta brochura os principais artigos sobre Portugal publicados em nossa imprensa desde os primeiros dias da "revolução dos cravos" até aquele dia fatídico de novembro de 75 em que os cravos murcharam de chofre nas lapelas atónitas dos que davam por certa e garantida a vitória da revolução. Para uma melhor leitura agrupamos os artigos por tema, de modo que a ordem em que os apresentamos aqui nem sempre coincide com a ordem cronológica da sua publicação.
Assim, o primeiro artigo recoloca em seus justos termos a função das forças armadas, que o marxismo sempre mostrou serem um órgão diferenciado da sociedade de classes encarregado da defesa do poder das classes possuidoras, de que emanam. o vetor dessa força sempre será dirigido no sentido da conservação do regime burguês, isto é, num sentido anti-proletário, inclusive — e sobretudo — quando elas se ornam com galões pretensamente revolucionários e socialistas. Pretender que elas possam mudar sua função própria e transformar-se, de órgão de defesa do sistema capitalista, em órgão da sua destruição é como pretender que os intestinos possam trocar sua reles função digestiva pala, mais sublime e elevada, de órgão encarregado da memória e do pensamento. Em substância, o resultado das elucubrações dos que, incapazes de memorizar as inúmeras lições da história, admitem tamanho absurdo em nada difere, pelo conteúdo e pela forma, das mau-cheirosas excreções sólidas ou gasosas daqueles...
Esquecendo, ou escamoteando, essa função imutável das forças armadas num regime burguês, os partidos e grupos de esquerda tomaram o 25 de abril pelo despontar da Revolução, quando não por ela própria, cujo meio-dia viram na ópera-bufa de 28 de setembro, acreditando — e, pior ainda, fazendo crer — que a revolução pode ser realizada como uma conciliação dos antagonismos de classe no abraço eufórico entre as classes oprimidas e os principais garantes da opressão, em vez de ser, pelo contrário, o resultado da explosão desses antagonismos na forma culminante da luta de classes: a insurreição armada do proletariado contra o Estado burguês e seu aparelho civil e militar. Inebriados pelo aroma de fraternidade interclassista propagado pelos cravos distribuídos pelos veteranos dos massacres coloniais repentinamente convertidos ao "terceiro-mundismo", não viram que a revolução só existia na forma ilusória da "frase revolucionária", contribuindo assim para cultivar essa ilusão, o que era o objetivo dos golpistas — mil desculpas, dos revolucionários! — de abril, objetivo para cuja consecução os grandes partidos oportunistas — PC, e PS — envidaram todos os seus esforços. Precisamente por essa embriaguez geral comparamos a falsa revolução portuguesa àqueles dias de junho de 1848 na França, dias que preludiaram o sangrento massacre do proletariado parisiense, que despertara tarde demais da euforia da não menos falsa revolução.
Desmentindo, contra o humor geral, o caráter revolucionário da situação portuguesa, mostramos ser ela uma bem montada farsa que encobria a tragédia de que era palco o império colonial africano e cujo objetivo central era o de dar essa última um desfecho que não fosse inteiramente desfavorável à metrópole lusitana, conservando para essa ao menos parte de seus privilégios coloniais. É verdade que boa parte dos grupos de "extrema esquerda" percebeu a relação entre as guerras coloniais e o 25 de abril, o que, aliás, todo comentarista burguês não muito estúpido foi capaz de fazer. Mas ficaram nisso. A miopia (melhor seria dizer: a cegueira congénita) que lhes vem de seu imediatismo impediu que fossem além dessa simples constatação e vissem no MFA não um instrumento da Revolução,_mas sim da conservação social sob o signo infame da "descolonização" e da reconversão a que o capitalismo português se via forçado devido ao desmantelamento do seu império colonial.
Ao contrário, aceitaram despreocupadamente as flores do MFA e tomaram prazenteiramente parte na farsa que ele encenava. Caucionando a política da "descolonização" ao fazerem seu, direta ou indiretamente, o projeto de um "imperialismo popular" acalentado pela esquerda do MFA, tornaram-se cúmplices do seu Estado na opressão colonialista e caíram, assim, estrepitosamente, na lama imunda do social-imperialismo, como documentamos ao analisar seu comportamento diante do teste da questão colonial. Seguiram nisso o PC e o PS que, obedecendo à sua natureza de agentes da burguesia, tinham-se feito, desde os primeiros momentos, sem hesitações nem reservas, os porta-vozes "operários" da nova política colonialista de seu Estado.
Do mesmo modo que conseguiram o apoio, direto ou indireto, à sua política no campo colonial, os próceres do MFA foram igualmente felizes no campo social interno, em que buscavam unanimemente, acima das divergências entre as correntes de esquerda e de direita do Movimento, preservar, por um lado, a unidade das forças armadas comprometida pelo descontentamento e pelas manifestações da indisciplina da tropa, resultado da desastrosa campanha da metrópole negreira na guerra colonial, e, por outro lado, manter o movimento social, que se ativara em consequência dos abalos provocados na metrópole pelos golpes vigorosos da luta independentista nas colónias, dentro dos marcos da sacrossanta ordem burguesa.
Com efeito, também nesse campo os grandes partidos oportunistas, bem como os grupos do oportunismo de "extrema esquerda", empunharam de uma maneira ou de outra a bandeira da unidade desfraldada pelo MFA: unidade entre praças e oficiais, entre povo e forças armadas, o que, na realidade, significa submissão de todo o proletariado — isto é , do proletariado fardado, os soldados, e civil — a este baluarte da Ordem burguesa que são as forcas armadas.
No tocante a essas últimas, o princípio da unidade entre praças e oficialidade (o marxismo ensina — e os próprios fatos portugueses comprovam — que, devido à natureza do organismo militar, o apoio ainda que a uma parte apenas da oficialidade significa apoio ao conjunto da mesma, isto é, submissão à hierarquia e ao aparelho militar burgueses) teve como consequência a esterilização do movimento dos soldados.
Fazendo eco aos golpes vibrados no exército português, pelas massas angolanas sobretudo, a resistência dos soldados possibilitou um início de organização — as comissões de soldados —, fato que, aliás, o MFA tinha tentado prevenir mediante toda uma demagogia participacionista, quando ficou patente que não podia mais se opor a ele. A leviandade do imediatismo viu nesse movimento um passo no caminho do desmantelamento do exército, e nas comissões, um órgão de poder. Embora seja verdade que essas comissões tenham, em certos casos, paralisado momentaneamente a hierarquia militar e impedido que fossem executadas ordens dirigidas contra o movimento operário – o que é um fato altamente positivo –, é um absurdo falar de “desmantelamento” do exército, principalmente quando o movimento dos soldados esteve sempre subordinado à hierarquia militar, através dos famigerados "oficiais de esquerda".
Condição indispensável de tal "desmantelamento" é a ruptura total e incondicional entre a tropa — os proletários fardados — e toda a oficialidade, de direita como de esquerda, ruptura sem a qual é impossível constituir a única força capaz: de desmantelar o aparelho militar, destruindo precisamente a hierarquia militar: o proletariado revolucionário das fábricas e dos quartéis, organizado como partido de classe de modo totalmente independente do Estado burguês e todas as suas instituições. E essa força classista só poderá consumar essa destruição mediante a insurreição armada.
Ora, a submissão à oficialidade impedia a constituição dessa força e, por conseguinte, que o movimento dos soldados e suas organizações se colocassem num plano realmente revolucionário. Mais ainda, essa não ruptura paralisou a própria luta pelas reivindicações económicas e políticas de defesa das condições de vida dos soldados e contra o despotismo hierárquico militar, luta que constituía o verdadeiro conteúdo daquele movimento. Assim, por exemplo, os SUV, devido a sua orientação de unidade com os oficiais "revolucionários", deitaram fora sua carga de combatividade ao manterem-se nos marcos inconsequentes da luta pela simples mudança de certos oficiais, com o que condenaram a por-se a reboque do oportunismo.
As lágrimas de amargura e decepção dos pára-quedistas de Tancos ficarão sendo para sempre o símbolo do caráter suicida — para o movimento revolucionário, como para o próprio movimento reivindicatório — da política de unidade com os oficiais, inclusive de esquerda, e um anátema contra os que teimam em preconizá-la. Que elas sirvam de lição aos militantes sinceros!
No que concerne ao proletariado fabril, essa política de unidade com as forças armadas não foi menos cheia de consequências negativas. A remodelação da fachada do Estado português empreendida pelos artífices do 25 de abril teve como contrapartida a eclosão de um impetuoso movimento operário reivindicatório que, aproveitando o espaço deixado livre enquanto a burguesia, através de seus procuradores fardados e agaloados, tratava de ajustar os parafusos da nova engrenagem de dominação e controle democráticos, procurou constituir organizações que correspondessem às exigências da sua luta.
Também nesse campo o PCP mostrou o que vale: tomando em suas mãos as rédeas do aparelho sindical herdado do salazarismo, aparelho que já penetrara há tempos (quem sabe se na previsão da eventualidade que ora se lhe apresentava...), tratou de manter o movimento operário dentro dos limites "responsáveis" compatíveis com os "superiores interesses nacionais", lançando-se para tal numa empreitada de aberta sabotagem do mesmo. Isso levou a classe operária a tender a organizar-se à margem da Intersindical, criando as tão comentadas comissões de trabalhadores. Foi, então, a vez do imediatismo de "extrema esquerda" mostrar sua incapacidade para dirigir o proletariado (para não dizermos o seu papel de útil complemento do oportunismo "de direita").
Enquanto apoiavam o PC nas eleições sindicais (com exceção dos maoístas que, em nome do anti-”social-fascismo”, apoiavam o PS…),ansiosos por colherem os frutos da árvore da Revolução,que no entanto não querem saber de plantar e cultivar – que perda de tempo seria! –, os grupos de "extrema esquerda” aclamaram essas comissões, assm como as de soldados, como Órgãos da revolução e do poder. Um poder que, ainda por cima, não era nem sequer de classe, como o marxismo ensina ser todo poder, mas "popular”, isto é, interclassista — velha mentira e superstição do iluminismo burguês, retomada e exaltada, sob cores falsamente marxistas, pela democracia pequeno-burguesa de todos os continentes!
Ofuscados pela miragem do poder popular, desprezaram os objetivos e descuraram das condições elementares da "guerrilha cotidiana contra o capital", sem a qual "a classe operária priva-se da possibilidade de empreender movimentos de maior envergadura" (Marx), guerrilha para a qual aquelas organizações tinham nascido; e transformaram-nas em palcos em que a luta era substituída por duelos de virtuosismo oratório, e o árduo trabalho de sedimentação e concentração das forças proletárias a partir da luta por suas necessidades vitais imediatas, pela "frase revolucionária" tonitruante e triunfalista.
E não é tudo. Embriagados com o bagaço da unidade povo-forças armadas, entregaram essas organizações, sempre através da maldita esquerda do MFA, em particular do COPCON, ao controle do Estado burguês, sabotando assim já nem diremos o movimento revolucionário, que não existia, mas a própria luta de defesa do proletariado, que só pode ser levada a cabo eficazmente numa total independência em relação as instituições burguesas e aos partidos oportunistas.
Como consequência de tudo isso não só a revolução não deu um só passo além da "frase" irresponsável, mas, o que é pior, privado de órgãos de luta independentes, o proletariado caiu inerme nas mãos do oportunismo stalinista e social-democrata, especialista em esterilizar as energias de classe desviando-as para o plano infecundo das modificações ministeriais e de governo (a greve dos operários da construção é um claro exemplo disso).
★★★
O próprio desfecho da "farsa portuguesa" deixou patente — salvo para os falsos extremistas — que as divergências entre as alas opostas do MFA não eram, em absoluto, como se pretendeu, "a expressão de posições de classe antagónicas"; ao contrário, elas estavam ligadas principalmente ao modo de dar um desenlace a "tragédia africana": de fato, o pano caiu sobre a primeira passadas apenas duas semanas da independência de Angola.
Perdida a parada angolana, as forças da burguesia portuguesa, até então concentradas fundamentalmente na frente africana, poderiam agora ser empregadas na frente social interna. O espetáculo circense do poder popular, com que os Otelos e outros ilusionistas do MFA, coadjuvados pelos palhaços e malabaristas da "extrema esquerda", tinham distraído a atenção e as energias proletárias da luta classista independente, já poderia ceder lugar ao ferro das forças repressivas estatais recompostas do lado de fora do circo enquanto a plateia tinha os olhos fixos no picadeiro. A "frase revolucionária" tinha cumprido sua função paralisadora: ela já podia ser posta de reserva e ceder seu lugar à dura realidade de um capitalismo decrépito, sim, mais ainda firmíssimo em seus fundamentos, que a obsessão da unidade tinha preservado intactos da agitação social.
Os imperativos da remodelação do capitalismo português falaram mais alto que as divergências quanto aos meios de realizá-la, e a barulhenta esquerda do MFA calou-se "responsavelmente” e submeteu-se sem protestos à perspectiva oposta, imposta pelo costume secular de servilismo para com os imperialismos mais poderosos, o europeu em primeiro lugar.
A capitulação da esquerda do MFA (Otelo silencioso ao lado de Costa Gomes que, naqueles dias de novembro, lia a célebre proclamação: retrato simbólico disso) não só mostra claramente os limites de seu jogo em relação à direita, como também — e sobretudo — confirma pela enésima vez que, no governo como na oposição, a esquerda é um complemento eficaz da direita na imposição dos imperativos anti-proletários do Capital, de que são, ambas, servidoras devotadas.
Essa capitulação não significa, porém, o abandono definitivo do método de esquerda por parte da burguesia portuguesa, do mesmo modo que 25 de novembro não marcou o enterro do movimento operário que refluiu, sofreu uma derrota, sim, mas renascerá necessariamente para novas — e, esperamos, mais fecundas! — batalhas. Embora esse método tenha falido na tentativa de solucionar a crise portuguesa ligada à questão colonial, as contradições do capitalismo nacional e internacional poderão chamá-lo mais uma vez a um papel de primeiro plano (sabe lá se através das urnas...) precisamente para amortecer os choques sociais e de classe que explodirão dessas contradições.
Para que esse novo ciclo de agitação social não repita o ciclo de embriaguez da falsa revolução de 25 de abril levando a uma nova derrota proletária perfumada com os cravos da "fraternidade universal", o proletariado deverá fazer o balanço daquele ciclo. Esse balanço mostrar-lhe-á que o proletariado não pode se apoiar na esquerda burguesa, militar ou civil, na sua luta de emancipação, nem tampouco para defender-se ou derrotar a direita (ambas, em última instância, estão coligadas contra ele); mostrar-lhe-á que a unidade entre o proletariado das fabricas dos campos e dos quartéis, por um lado, e a burguesia — por intermédio da oficialidade “revolucionária" e dos partidões do oportunismo — — por outro, leva necessariamente a compactuar com seu Estado na opressão colonial, a paralizar e esvaziar o movimento classista dos operários e soldados, privando-o da possibilidade de empreender consequentemente até a própria defesa de suas condições de vida, trabalho e luta. Do que deverá concluir que romper essa unidade é uma condição indispensável para forjar o partido de classe que lhe possibilitará renascer para uma vida que não seja aquela vida efémera e inebriante que só transcorre no plano ilusório da "frase revolucionária", mas em que se afirme como força classista capaz de lutar independentemente por seus objetivos próprios, não só no campo de suas necessidades vitais imediatas, como também, e principalmente, no campo decisivo da luta revolucionária final pelo poder e pela ditadura.
É a esse balanço que destinamos a presente brochura.
Inclusão | 25/04/2019 |