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Havia grande agitação pelas ruas, à medida que se aproximavam do Largo do Carmo. Tinham evitado a Rua do Alecrim, como a senhora dissera, mas apesar disso a confusão continuava.
— O trânsito está todo entupido!
— Cada vez percebo menos disto; e se perguntássemos a alguém o que se está a passar?
— O que se está a passar é isto! — respondeu-lhes do lado uma voz de homem.
Os três viraram-se, surpreendidos. Um senhor, que teria aí uns sessenta anos, — calculou o Luís — agitava na frente deles um jornal:
— Reparem! Olhem bem para o que está aqui escrito!
O jornal era o "República" e, no fim da primeira página, lia-se em letras grossas: "ESTE JORNAL NÃO FOI VISADO POR QUALQUER COMISSÃO DE CENSURA".
— Mas ... O que é que isso quer dizer? — perguntou a Ana, timidamente.
O senhor tinha continuado o seu caminho mas ainda ouviu a pergunta da Ana. Virou-se para trás e fixou os três, comovido:
— Talvez não seja preciso vocês virem a saber o que é. Eu não tive essa sorte! — e desapareceu no meio da multidão, depois de acrescentar — O dia 25 de Abril de 1974 vai ficar na História! Para sempre!
— Mas o que é que ele quer dizer com aquilo?!
— Não estou mas é a perceber nada de nada!
— E isto parece uma feira gigantesca a ocupar as ruas todas!
— Só que não há nada para comprar! E as pessoas não têm ar de quem saiu para vir às compras!
— Mas também não têm cara de quem está triste!
— Nem alegre! Parece ... como se estivessem à espera de qualquer coisa!
— Mas quando se está à espera está-se parado, meu palerma! E está toda a gente a andar!
— É verdade! E todos na mesma direcção ... Se calhar é uma espécie de romaria!
— Mas nas romarias há coisas para vender ... e não são em dias da semana, em que toda a gente trabalha ...
— É verdade! Será que hoje é feriado em Lisboa?
— E uma romaria na Baixa de Lisboa? Onde é que já se viu? Vocês estão mas é malucos!
— Esperem, reparei agora noutra coisa! Vamos todos a caminhar para o mesmo sítio!
Toda aquela multidão se deslocava no mesmo sentido que os três miúdos. Parecia que todos tinham ouvido a explicação que a senhora lhes dera, e agora cumpriam escrupulosamente as indicações recebidas.
— Luís, — murmurou Ana assustada — achas que eles vão todos, como nós, para o Largo do Carmo?
— Não entendo, não entendo! — repetia este, perplexo, sem a ouvir.
O Filipe, esse não dizia nada. Caminhava, de olhos no chão, dando pontapés às pedras que encontrava.
E, de repente, chegaram à embocadura do Largo do Carmo. Era grande a confusão e, pelo meio de muita gente à civil, viam-se outra vez muitos tropas. Um jipe quase tapava a entrada do Largo.
— Vamos dar as mãos para não nos perdermos uns dos outros! — berrou o Luís. — Furamos por entre as pessoas!
Nisto, ouviu-se uma rajada de metralhadora e alguém que gritava muito alto: "Não queremos sangue! Não queremos magoar ninguém! Pedimos aos civis que abandonem o Largo!"
Mas não saiu ninguém do sítio em que estava. Pelo contrário, cada vez chegava mais gente. Aos poucos, os três tinham-se aproximado do centro do Largo. Estava cheio de blindados, carregados de soldados vestidos de camuflado e armados de metralhadoras, e havia também muitos outros, espalhados, misturados com civis .
— Reparem! — berrou de repente o Filipe, aliviadíssimo. — Todas as casas têm quatro andares!
— Vamos tentar descobrir a porta número 18! — respondeu-lhe o Luís. — Não larguem as mãos e vamos continuar a furar!
A Ana, no meio dos dois, não tugia nem mugia. Se não fosse o barulho da multidão teria a certeza absoluta que estava a sonhar. Assim, era impossível refugiar-se nessa ideia e as pernas fraquejavam-lhe.
Apesar dos tiros que tinham ouvido há pouco, não se via ninguém ferido e se ela não estivesse tão apavorada, ter-se-ia apercebido que nem sequer havia no meio de toda aquela gente uma atmosfera de hostilidade, mas que, de uma forma geral, todos conversavam uns com os outros, quase naturalmente, como se estivessem numa sala.
— Não posso crer! — berrou o Luís. — Olhem para o número 18!
O Filipe ficou de novo sem pinta de sangue. A porta número 18 lá estava, mas completamente inacessível porque um blindado atravancava todo o passeio em frente à porta. Estava coladinho à casa; havia até soldados de pé, em cima do blindado, familiarmente encostados às paredes e janelas, tão tranquilos como se conversassem, encostados à esquina. Nem uma pulga se conseguiria esgueirar até à porta.
Ficaram os três de mãos dadas, especados em frente ao blindado, sem saberem o que fazer. De tal forma que um dos soldados reparou neles.
— Ei! Que andam vocês por aqui a fazer? Ala, para casa! Isto não é lugar para gente da vossa idade!
Apesar do tom de voz amigável, acharam mais prudente afastarem-se.
— Há uma casa de banho no meio da Praça! — balbuciou Ana, ainda meio atordoada. — Ao menos estamos mais sossegados.
— O quê? Achas que me vou esconder num W. C. para mulheres? — barafustou o irmão.
Mas, quando conseguiram chegar ao W.C., que era subterrâneo, calou-se logo porque estava atravancado de homens e mulheres. No meio de toda aquela gente, com a cabeça de fora, ao nível do passeio, um repórter relatava o que se passava com a boca muito colada ao microfone.
Um homem, encavalitado em cima da guarita, onde dois dias antes, tinham visto o soldado imóvel, esbracejava, naquela posição incómoda, de megafone na mão, apelando à calma e à moderação.
De vez em quando, de cima de um blindado, um tropa, que devia ser o que comandava tudo aquilo, dava ordens aos soldados e pedia aos civis para se retirarem do local.
Mas, pelo contrário, em vez das pessoas se irem embora, aplaudiam-no com muitas palmas, o que provocava, da parte do jornalista, relatos ainda mais inflamados. O W. C., cheio, à cunha, parecia em riscos de desabar com as palmas e a emoção de toda aquela gente.
— Não posso mais estar aqui dentro, estou cheio de falta de ar! — disse o Filipe.
— O que vamos fazer? — perguntou a Ana que, ao menos ali, se sentia protegida.
— Vamos arranjar um lugar onde estamos de certeza muito melhor ... — disse o Luís. — E arejado!
— Como? Queres desistir? Eu não saio daqui! — respondeu-lhe o Filipe, decidido.
— Nada disso, não te aflijas! Ora ouve o meu plano: estas casa antigas têm todas postigos no último andar. Dão para o telhado ...
— Sim, e daí?
— E daí ... que esses postigos costumam ficar sempre no patamar que dá para as escadas. A casa da minha avó, na Estrela, é muito parecida com esta e é assim. E a da minha tia ... Até têm uma escadinha para se subir ...
A Ana olhava para o irmão, aterrada. Antes dele acabar de explicar, já tinha adivinhado tudo. Ele queria entrar no número dezoito ... pelo telhado!
— Não contem comigo! — disse, fazendo-se muito branca, apesar do intenso calor que ali fazia. — Tenho vertigens horríveis!
— Bestial, pá! — o Filipe estava entusiasmadíssimo. — É uma óptima ideia ...
— O pior é que eu tenho medo de ficar aqui sozinha! — a Ana estava quase a chorar.
— Não te aflijas, nós seguramos-te! E não é assim tão alto! Vês-te livre desta confusão toda ...
— Bem, se não conseguir subir fico à vossa espera no prédio ao lado — condescendeu Ana.
A porta da casa ao lado estava aberta e os andares pareciam desertos; todos os moradores deviam estar na rua ou então pendurados nas janelas.
Chegar ao último andar, que por sorte era da mesma altura da casa ao lado, foi questão de segundos; e lá estava uma escada de ferro velhinha, na direcção do postigo.
O Filipe foi o primeiro a subir, mas teve de esperar que o Luís subisse, para, ambos, conseguirem abrir o postigo, que era pesado.
— Cá estamos nós! Vens Ana? É seguro, não tenhas medo! — disse o Luís, com metade do corpo de fora, prestes a saltar para cima das telhas.
— Bom, vou só ver como é isso aí — respondeu-lhe a irmã, subindo as escadas com toda a cautela.
— Olá! Temos visitas? — disse uma voz grossa. Os miúdos iam-se desequilibrando, com o susto. — Vêm-nos ajudar? Não era preciso, aqui em cima não há nada para fazer!
Em cima do telhado do prédio da casa número dezoito, dois soldados, de camuflado, boné e metralhadora, estavam calmamente sentados em cima das telhas.
— Se calhar também são do MFA! — concluiu o outro com ar galhofeiro.