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Este é o insuportável arcaísmo organizacional e, mais profundamente, político-cultural com que se deve acabar se realmente se quer avançar para um "Partido Comunista de novo tipo". "Superar o centralismo democrático"? Se alguma vez o PCF o conheceu por pouco tempo, na época heróica da bolchevização, há muito que ele foi superado, precisamente pelo alinhamento estalinista com o centralismo autocrático. É esta velha cultura mortífera de alienação política, e o espírito das estruturas correspondentes, que é imperioso erradicar; o que se não fará por decreto, nem num só congresso. A fortiori um Congresso como o XXVIII, último avatar de um sistema organizacional que se afunda e procura transformar-se radicalmente, dentro dos seus próprios limites. Esta contradição fundamental reflecte-se de um modo ou de outro em todas as disposições dos estatutos adoptados em 1994. Assim, logo no seu preâmbulo: o relatório que abriu as discussões do Congresso sobre esse ponto da ordem de trabalhos justificava a opção de neles não fazer figurar "concepções doutrinárias" nem "reafirmações de princípios" que devessem balizar o futuro - "nada está prescrito nem garantido, a não ser o efectivo desenvolvimento das iniciativas humanas". Da imprecisão teórica que daí resulta emerge contudo, neste preâmbulo, uma indicação precisa: o PCF age para transformar a sociedade "construindo um socialismo democrático e autogestionário". Tudo está pois caduco na velha abordagem teorizante, excepto a asserção central do socialismo científico, versão XXII e XXIII Congressos, quer dizer, se aquilo que acima amplamente expusemos tem alguma pertinência, o mais caduco da antiga visão das coisas. De igual modo em relação ao princípio organizador último: em palavras é um nunca mais acabar de valorizações da inteira "soberania dos aderentes" sobre o partido; fazem-se rapapés a formulações espontaneístas: o partido seria tão-só aquilo que "constróem em conjunto" os comunistas, as instâncias do partido "estruturam-se a partir do papel vital da célula", a secção "agrupa" as células e a federação as secções (artigo 7.º). Por pouco não se dizia, contra Lenine, que o partido se constrói de baixo para cima... Mas, na realidade, as estruturas impõem-se com inteira autoridade estatutária aos aderentes, a começar pela célula, "quadro vital da organização comunista" (artigo 10.º). E se acontecesse os comunistas quererem "soberanamente" pôr em causa a célula? Seria necessário pôr em causa os estatutos! Cá estamos no mais clássico esquema vertical do centralismo democrático leniniano, embora nos garantam o contrário.
E isto não é ainda o essencial. O essencial é que, em muitos pontos decisivos, os estatutos adoptados no XXVIII Congresso, ao mesmo tempo que pretendem superar o centralismo democrático num sentido mais democrático, mantêm impavidamente o espírito, quando não a letra, do centralismo autocrático. É o caso, da maior importância, no que respeita às direcções. Não estará o próprio conceito de direcção irremediavelmente infectado pelo vírus estalinista do poder sobre o partido? Objecção rapidamente arrumada pelo relatório que, neste caso, denuncia "qualquer demagogia "basista""... O artigo 20.º dos estatutos expõe detalhadamente que "a todos os níveis" o papel das direcções é "fundamental", "indispensável", "decisivo", por toda uma série de razões onde facilmente podem ir buscar um álibi as mais tradicionais práticas delegatárias, paternalistas, ou mesmo confiscatórias da democracia de partido. O Comité Nacional, claro está, dispõe por seu turno de "plena capacidade de iniciativa política, na base das decisões do Congresso" (artigo 26.º), mas deve eleger "a sua Mesa, o seu Secretariado e o Secretário ou Secretária Nacional do Partido". Assim, os estatutos que pretendem superar o centralismo democrático perenizam sem o mínimo debate a instituição "Primeiro-Secretário" de que todos conhecemos o papel determinante na auto-reprodução do centralismo autocrático... Um outro ponto capital: os refundadores comunistas puseram em causa, desde o XXVI Congresso, em 1988, o dogma estalinista segundo o qual, em quaisquer circunstâncias e seja qual for a sua gravidade, só a maioria do Comité Central tem o direito de submeter à discussão do Congresso um texto de orientação política - disposição altamente reveladora do facto de o centralismo autocrático não ser, de modo algum, um sistema sem tendências mas sim um sistema monotendencial, sendo nele proscrita qualquer outra tendência que não seja a da direcção. Sobre esta questão tão emblemática como nevrálgica a Direcção do Partido, ao fazer adoptar pelo XXVIII Congresso a noção de "base comum de discussão" (artigo 17.0 b), escolheu sem equívoco, embora numa formulação hábil, prorrogar a obrigatoriedade do texto único: era manter, também aqui, a tradição autocrática contra a de Lenine que, no mesmo momento em que o X Congresso do PC(b) proibia a organização em tendências, defendeu com êxito o direito de submeter ao Congresso várias plataformas em caso de divergências profundas. A uma análise não convencionada, os estatutos que regem o PCF em vésperas do ano 2000 revelam, sob uma inflação formal de democraticismo pós-centralista, um recurso a abordagens leninianas tradicionais, e, por debaixo desse próprio recurso, a manutenção, negada mas flagrante, das mais decisivas disposições da tradição estalinista; graças à última vigilância de uma alta direcção, desta vez efectivamente cessante...
Quanto mais reflicto nesta vasta questão da forma-partido comunista, mais me custa compreender a tendência tão espalhada para ver nos princípios e nas realidades da organização leniniana a matriz daquilo que designo por centralismo autocrático - todo o problema posto aqui sendo o de identificar bem o que o engendra, para conceber um tipo de força comunista que não corra o risco de o reproduzir. É verdade que o partido leniniano, todo ele concebido em função de uma estratégia revolucionária à antiga, se caracterizava por uma verticalidade centralista perfeitamente obsoleta para uma organização comunista dos nossos dias. Mas era ao mesmo tempo um partido de democracia autêntica, porquanto tudo nele estava suspenso de congressos não falsificados, que debatiam sem constrangimentos, de um Comité Central não monolítico que se não dava como tarefa instrumentalizar, em todos os aspectos e à maneira de um poder absoluto, a vida do partido. Podem sem dúvida argumentar que o POSDR era um pequeno partido (algumas dezenas de milhares de membros antes de 1917) que vivia nas mais precárias condições, quase sem aparelho central, sem funcionários, sem eleitos, e que foi por isso, sugerem, que o seu centralismo se manteve com efeito em grande medida democrático. Mas logo que, tornando-se o PC(b), se instala no poder e se transforma numa vasta máquina de um milhão e tal de aderentes, de imediato se vê desenvolverem-se nele os traços do que irá ser o estalinismo. Em suma, se o leninismo original não desenvolveu antes dos anos vinte as suas supostas virtualidades autocráticas, isso dever-se-ia só às circunstâncias que lhe não proporcionaram os meios. Mas como é que se explica, raciocinando deste modo estritamente organizacional, que pequeníssimos partidos comunistas a lutar na oposição e sem nenhum poder nem por isso tenham deixado de ser, depois, dos mais estalinistas? Não será claro que este tipo de análise deixa escapar algo de essencial? E há ainda uma outra prova muito mais decisiva da necessidade de abordar a questão de modo completamente diferente: Lenine não tinha ainda escrito o Que fazer?, nem sequer tinha ainda entrado na vida política, e já a maior parte dos traços característicos do centralismo autocrático marcavam o mais poderoso e invejado partido operário, o Partido Social-Democrata alemão.
[pgs 175_178. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |