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Primeira Edição: baseado em uma palestra chamada "Existencialismo é um Humanismo" que Sartre deu no Club Maintenant em Paris, em 29 de Outubro de 1945. Data da primeira publicação: 1946
Fonte: www.filosofia.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=129
Tradução: Rita Correia Guedes
HTML: Fernando Araújo.
Gostaria de defender, aqui, o existencialismo de uma série de críticas que lhe foram feitas.
Em primeiro lugar, acusaram-no de incitar as pessoas a permanecerem no imobilismo do desespero; todos os caminhos estando vedados, seria necessário concluir que a ação é totalmente impossível neste mundo; tal consideração desembocaria, portanto, numa filosofia contemplativa – o que, aliás, nos reconduz a uma filosofia burguesa, visto que a contemplação é um luxo. São estas, fundamentalmente, as críticas dos comunistas.
Por outro lado, acusaram-nos de enfatizar a ignomínia humana, de sublinhar o sórdido, o equívoco, o viscoso, e de negligenciar certo número de belezas radiosas, o lado luminoso da natureza humana; por exemplo, segundo a senhorita Mercier, crítica católica, esquecemos o sorriso da criança. Uns e outros nos acusam de haver negado a solidariedade humana, de considerar que o homem vive isolado; segundo os comunistas, isso se deve, em grande parte, ao fato de nós partirmos da pura subjetividade, ou seja, do penso cartesiano, ou seja ainda, do momento em que o homem se apreende em sua solidão – o que me tornaria incapaz de retornar, em seguida, à solidariedade com os homens que existem fora de mim e que eu não posso alcançar no cogito.
Na perspectiva cristã, somos acusados de negar a realidade e a seriedade dos empreendimentos humanos, já que, suprindo os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade, resta apenas a pura gratuidade; cada qual pode fazer o que quiser, sendo incapaz, a partir de seu ponto de vista, de condenar os pontos de vistas e os atos alheios. Tais são as várias acusações a que procuro hoje responder e a razão que me levou a intitular esta pequena exposição de: “O Existencialismo é um Humanismo”. Muitos poderão estranhar que falemos aqui de humanismo. Tentaremos explicitar em que sentido o entendemos. De qualquer modo, o que podemos desde já afirmar é que concebemos o existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana. A crítica básica que nos fazem é, como se sabe, de enfatizarmos o lado negativo da vida humana. Contaram-me, recentemente, o caso de uma senhora que, tendo deixado escapar, por nervosismo, uma palavra vulgar, se desculpou dizendo: “Acho que estou ficando existencialista”. A feiúra é, por conseguinte, assimilada ao existencialismo e é por isso que dizem sermos naturalistas. Se o somos, é estranho que assustemos e escandalizemos muito mais do que o naturalismo propriamente dito assusta ou escandaliza hoje em dia. Aqueles que digerem tranqüilamente um romance de Zola, como A Terra, ficam repugnados quando lêem um romance existencialista; outros, que se utilizam da sabedoria das nações – profundamente tristes –, acham-nos mais tristes ainda. Mas será que existe algo mais desesperançado do que o provérbio: “A caridade bem dirigida começa por si próprio”, ou “Ama quem te serve e serás desprezado; castiga quem te serve e serás amado”? São notórios os lugares-comuns que podem ser utilizados neste assunto e que significam sempre a mesma coisa: não se deve lutar contra os poderes estabelecidos, não se deve lutar contra a força, não se deve dar passos maiores do que as pernas, toda ação que não se insere numa tradição é romantismo, toda ação que não se apóia numa experiência comprovada está destinada ao fracasso; e a experiência mostra que os homens tendem sempre para o mais baixo e que são necessários freios sólidos para detê-los, caso contrário instala-se a anarquia. No entanto, as pessoas que ficam repetindo esses tristes provérbios são as mesmas que acham muito humano todo e qualquer ato mais ou menos repulsivo, as mesmas que se deleitam com canções realistas: são estas as pessoas que acusam o existencialismo de ser demasiado sombrio, a tal ponto que eu me pergunto se elas não o censuram, não tanto pelo seu pessimismo, mas, justamente pelo seu otimismo. Será que, no fundo, o que amedronta na doutrina que tentarei expor não é fato de que ela deixa uma possibilidade de escolha para o homem? Para sabê-lo, precisamos recolocar a questão no plano estritamente filosófico. O que é o existencialismo?
A maioria das pessoas que utilizam este termo ficaria bastante embaraçada se tivesse de justificá-lo: hoje em dia a palavra está na moda e qualquer um afirma sem hesitação que tal músico ou tal pintor é existencialista. Um cronista de Clartés assina o Existencialista. Na verdade, esta palavra assumiu atualmente uma amplitude tal e uma tal extensão que já não significa rigorosamente nada. Está parecendo que, na ausência de uma doutrina de vanguarda análoga ao surrealismo, as pessoas, ávidas de escândalo e de agitação, estão se voltando para esta filosofia, que, aliás, não pode ajudá-la em nada nesse campo; o existencialismo, na realidade, é a doutrina menos escandalosa e a mais austera; ela destina-se exclusivamente aos técnicos e aos filósofos. Todavia, pode ser facilmente definida. O que torna as coisas complicadas é a existência de dois tipos de existencialistas: por um lado, os cristãos – entre os quais colocarei Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica – e, por outro, os ateus – entre os quais há que situar Heidegger, assim como os existencialistas franceses e eu mesmo. O que eles têm em comum é simplesmente o fato de todos considerarem que a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário partir da subjetividade. O que significa isso exatamente?
Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um livro ou um corta-papel; esse objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou num conceito; tinha, como referencias, o conceito de corta-papel assim como determinada técnica de produção, que faz parte do conceito e que, no fundo, é uma receita. Desse modo, o corta-papel é, simultaneamente, um objeto que é produzido de certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida: seria impossível imaginarmos um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que tal objeto iria servir. Podemos assim afirmar que, no caso do corta-papel, a essência – ou seja, o conjunto das técnicas e das qualidades que permitem a sua produção e definição – precede a existência; e desse modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada. Eis aqui uma visão técnica do mundo em função da qual podemos afirmar que a produção precede a existência.
Ao concebermos um Deus criador, identificamo-lo, na maioria das vezes, com um artífice superior, e, qualquer que seja a doutrina que considerarmos – quer se trate de uma doutrina como a de Descartes ou como a de Leibniz –, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos o entendimento ou, no mínimo, que o acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando. Assim, o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta-papel, no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo determinadas técnicas e em função de determinada concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Desse modo, o homem individual materializa certo conceito que existe na inteligência divina. No século XVIII, o ateísmo dos filósofos elimina a noção de Deus, porém não suprime a idéia de que a essência precede a existência. Essa é uma idéia que encontramos com freqüência: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e mesmo em Kant. O homem possui uma natureza humana; essa natureza humana, que é o conceito humano, pode ser encontrada em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal: o homem. Em Kant, resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem da Natureza, tal como o burguês, devem encaixar-se na mesma definição, já que possuem as mesmas características básicas. Assim, mais uma vez, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na Natureza.
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou da mesa. Pois queremos dizer que o homem, antes de mais nada, existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser. Não o que ele quis ser, pois entendemos vulgarmente o querer como uma decisão consciente que, para quase todos nós, é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos. Eu quero aderir a um partido, escrever um livro, casar-me, tudo isso são manifestações de uma escolha mais original, mais espontânea do que aquilo a que chamamos de vontade. Porém, se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados, e os nossos adversários se aproveitaram desse duplo sentido. Subjetivismo significa, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser comunista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do homem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja toda a humanidade. Numa dimensão mais individual, se quero casar-me, ter filhos, ainda que esse casamento dependa exclusivamente de minha situação, ou de minha paixão, ou de meu desejo, escolhendo o casamento estou engajando não apenas a mim mesmo, mas a toda a humanidade, na trilha da monogamia. Sou, desse modo, responsável por mim mesmo e por todos e crio determinada imagem do homem por mim mesmo escolhido; por outras palavras: escolhendo-me, escolho o homem.
Tudo isso permite-nos compreender o que subjaz a palavras um tanto grandiloqüentes como angústia, desamparo, desespero. Como vocês poderão constatar, é extremamente simples. Em primeiro lugar, como devemos entender a angústia? O existencialista declara freqüentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, porém nós estamos convictos de que estas pessoas mascaram a ansiedade perante si mesmas, evitam encará-la; certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas se todos fizessem o mesmo?, eles encolhem os ombros e respondem: nem todos fazem o mesmo. Porém, na verdade, devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós? e não podemos escapar a essa pergunta inquietante a não ser através de uma espécie de má fé. Aquele que mente e que se desculpa dizendo: nem todo mundo faz o mesmo, é alguém que não está em paz com sua consciência, pois o fato de mentir implica um valor universal atribuído à mentira. Mesmo quando ela se disfarça, a angústia aparece. É esse tipo de angústia que Kierkegaard chamava de angústia de Abraão. Todos conhecem a história: um anjo ordena a Abraão que sacrifique seu filho. Está tudo certo se foi realmente um anjo que veio e disse: tu és Abraão e sacrificarás teu filho. Porém, para começar, cada qual pode perguntar-se: será que era verdadeiramente um anjo? ou: será que sou mesmo Abraão? Que provas tenho? Havia uma louca que tinha alucinações: falavam-lhe pelo telefone dando-lhe ordens. O médico pergunta: “Mas afinal, quem fala com você?” Ela responde: “Ele diz que é Deus”. Que provas tinha ela que, de fato, era Deus? Se um anjo aparece, como saberei que é um anjo? E se escuto vozes, o que me prova que elas vêm do céu e não do inferno, ou do subconsciente ou de um estado patológico? O que prova que elas se dirigem a mim? Quem pode provar-me que fui eu, efetivamente, o escolhido para impor a minha concepção do homem e a minha própria escolha à humanidade? Não encontrei jamais prova alguma, nenhum sinal que possa convencer-me. Se uma voz se dirige a mim, sou sempre eu mesmo que terei de decidir que essa voz é a voz do anjo; se considero que determinada ação é boa, sou eu mesmo que escolho afirmar que ela é boa e não má. Nada me designa para ser Abraão, e, no entanto, sou a cada instante obrigado a realizar atos exemplares. Tudo se passa como se a humanidade inteira estivesse de olhos fixos em cada homem e se regrasse por suas ações. E cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu, realmente, aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a humanidade? E, se ele não fazer a si mesmo esta pergunta, é porque estará mascarando sua angústia. Não se trata de uma angústia que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades conhecem bem. Quando, por exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de uma ofensiva e envia para a morte certo número de homens, ele escolhe fazê-lo, e, no fundo, escolhe sozinho. Certamente, algumas ordens vêm de cima, porém são abertas demais e exigem uma interpretação: é dessa interpretação – responsabilidade sua – que depende a vida de dez, catorze ou vinte homens. Não é possível que não exista certa angústia na decisão tomada. Todos os chefes conhecem essa angústia. Mas isso não os impede de agir, muito pelo contrário: é a própria angústia que constitui a condição de sua ação, pois ela pressupõe que eles encarem a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, eles se dêem conta de que ele não tem nenhum valor a não ser o de ter sido escolhido. Veremos que esse tipo de angústia – a que o existencialismo descreve – se explica também por uma responsabilidade direta para com os outros homens engajados pela escolha. Não se trata de uma cortina entreposta entre nós e a ação, mas parte constitutiva da própria ação.
Quando falamos de desamparo, expressão cara a Heidegger, queremos simplesmente dizer que Deus não existe e que é necessário levar esse fato às últimas conseqüências. O existencialista opõe-se frontalmente a certo tipo de moral laica que gostaria de eliminar Deus com o mínimo de danos possível. Quando, por volta de 1880, os professores franceses tentaram constituir uma moral laica, disseram mais ou menos o seguinte: Deus é uma hipótese inútil e dispendiosa; vamos suprimi-la: porém, é necessário – para que exista uma moral, uma sociedade, um mundo policiado – que certos valores sejam respeitados e considerados como existentes a priori; é preciso que seja obrigatório, a priori, ser honesto, não mentir, não bater na mulher, fazer filhos etc., etc. Vamos portanto realizar uma pequena manobra que nos permitirá demonstrar que esses valores existem, apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, se bem que, como vimos, Deus não exista. É essa, creio eu, a tendência de tudo o que é chamado na França de radicalismo: por outras palavras, a inexistência de Deus não mudará nada; reencontramos as mesmas normas de honestidade, de progresso, de humanismo e teremos assim transformado Deus numa hipótese caduca, que morrerá tranqüilamente por si própria. O existencialista, pelo contrário, pensa que é extremamente incômodo que Deus não exista, pois, junto com ele, desaparece toda e qualquer possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais existir nenhum bem a priori, já que não existe uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos ser honestos, que não devemos mentir, já que nos colocamos precisamente num plano em que só existem homens. Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dela nada a que se agarrar. Para começar, não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta. Assim, não teremos nem atrás de nós, nem na nossa frente, no reino luminoso dos valores, nenhuma justificativa e nenhuma desculpa. Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz. O existencialismo não acredita no poder da paixão. Ele jamais admitirá que uma bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o homem, fatalmente, a determinados atos, e que, conseqüentemente, é uma desculpa. Ele considera que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensará nunca, também, que o homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera que é o próprio homem quem decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a inventar o homem a cada instante. Ponge escreveu, num belíssimo artigo: “O homem é o futuro do homem”. É exatamente isso. Apenas, se por essas palavras se entender que o futuro está inscrito no céu, que Deus pode vê-lo, então a afirmação está errada, já que, assim, nem sequer seria um futuro. Se se entender que, qualquer que seja o homem que surja no mundo, ele tem um futuro a construir, um futuro virgem que o espera, então a expressão está correta. Porém, nesse caso, estamos desamparados. Tentarei dar-lhes um exemplo que permita compreender melhor o desamparo; contarei o caso de um dos meus alunos, que veio procurar-me nas seguintes circunstâncias: o pai estava brigando com a mãe e tinha tendências colaboracionistas; o irmão mais velho morrera durante a ofensiva alemã de 1940; e esse jovem, com sentimentos um pouco primitivos mas generosos, desejava vingá-lo. A mãe vivia só com ele, muito perturbada pela semitraição do pai e pela morte do filho mais velho, e ele era seu único consolo. Esse jovem tinha, naquele momento, a seguinte escolha: partir para a Inglaterra e alistar-se nas Forças Francesas Livres, ou seja abandonar a mãe, ou permanecer com a mãe e ajudá-la a viver. Ele tinha consciência de que a mãe só vivia em função dele e que o seu desaparecimento, talvez a sua morte, a mergulharia no desespero. Tinha também consciência de que, no fundo, cada ato que ele fazia em relação à mãe tinha uma resposta concreta, no sentido de que ele a ajudava a viver, enquanto cada ato que ele fizesse para partir e combater seria ambíguo, poderia perder-se na areia, não servir para nada; por exemplo: partindo para a Inglaterra, ele poderia permanecer indefinidamente num campo espanhol ao passar pela Espanha; poderia chegar à Inglaterra, ou a Argel, e ser colocado num escritório preenchendo papéis. Encontrava-se, assim, perante dois tipos de ação muito diferentes; uma delas concreta, imediata, porém dirigida a um só indivíduo; a outra, dirigida a um conjunto infinitamente mais vasto, uma coletividade nacional, mas, por isso mesmo, ambígua, e podendo ser interrompida a meio caminho. Simultaneamente, ele hesitava entre dois tipos de moral. De um lado, uma moral da simpatia, da devoção individual; e, de outro lado, uma moral mais ampla, mas de uma eficácia mais contestável. Precisava escolher uma das duas. Quem poderia ajudá-lo a escolher? A doutrina cristã? Não. A doutrina cristã diz: sede caridosos, amai o próximo, sacrificai-vos por vosso semelhante, escolhei o caminho mais árduo etc., etc. Mas qual é o caminho mais árduo? Quem devemos amar como irmão, o combatente ou a mãe? Qual a utilidade maior: aquela, vaga, de participar de um corpo de combate, ou a outra, precisa, de ajudar um ser específico a viver? Quem pode decidir a priori? Ninguém. Nenhuma moral estabelecida tem uma resposta. A moral kantiana diz-nos: nunca trate os outros como um meio, trate-os como um fim. Muito bem; se eu ficar junto de minha mãe, estarei tratando-a como um fim e não como um meio, mas, por isso mesmo, estarei correndo o risco de tratar como meio aqueles que combatem à minha volta, e, vice-versa, se eu me juntar àqueles que combatem, estarei tratando-os como fim e, pelas mesmas razões, posso estar tratando minha mãe como meio.
Já que os valores são vagos e que eles são sempre amplos demais para o caso preciso e concreto que consideramos, só nos resta confiar em nosso instinto. Foi o que o jovem tentou fazer; e, quando nos encontramos, ele dizia: no fundo, o que conta é o sentimento; eu deveria escolher aquilo que verdadeiramente me impele em determinada direção. Se eu sentir que gosto da minha mãe o bastante para lhe sacrificar todo o resto – meu desejo de vingança, meu desejo de ação, meu desejo de aventuras –, fico com ela. Se, pelo contrário, eu sentir que meu amor por minha mãe não é suficiente, então eu parto. Mas como determinar o valor de um sentimento? O que é que constituía o valor do sentimento que ele tinha por sua mãe? Precisamente o fato de que ele permanecera, por ela. Posso dizer: amo tal amigo o suficiente para lhe sacrificar tal soma de dinheiro; mas só poderei dizê-lo se o fizer. Posso dizer: amo minha mãe o bastante para ficar junto dela; mas não posso determinar o valor dessa afeição a não ser, precisamente, que eu pratique um ato que a confirme e a defina. Ora, como eu desejo que esse afeto justifique os meus atos, acabo sendo arrastado num circulo vicioso.
Por outro lado, Gide disse, e muito bem, que um sentimento representado e um sentimento vivido são duas coisas quase indiscerníveis: decidir que amo minha mãe ficando junto dela, ou representar uma comédia que me levará a ficar, por causa de minha mãe, é mais ou menos a mesma coisa. Por outras palavras: o sentimento constrói-se através dos atos praticados; não posso, portanto, pedir-lhe que me guie. O que significa que não posso nem procurar em mim mesmo a autenticidade que me impele a agir, nem buscar numa moral os conceitos que me autorizam a agir. Vocês dirão: pelo menos, o jovem procurou o professor para pedir-lhe conselho. Porém, se vocês procurarem um padre, por exemplo, para que eles os aconselhe, vocês estarão escolhendo esse padre, e, no fundo, vocês já estarão sabendo, aproximadamente, o que ele lhes irá aconselhar. Ou seja: escolher o conselheiro é, ainda, engajar-se. A prova disso está em que, se vocês forem cristãos, dirão: consulte um padre. Existem, no entanto, padres colaboracionistas, padres oportunistas, padres resistentes. Qual deles escolher? E, se o jovem escolher um padre resistente ou um padre colaboracionista, já estará decidindo o tipo de conselho que irá receber. Assim, vindo procurar-me, ele sabia a resposta que eu lhe daria, e eu só tinha uma única resposta: você é livre; escolha, isto é, invente. Nenhuma moral geral poderá indicar-lhe o caminho a seguir; não existem sinais no mundo. Os católicos argüirão: sim, existem sinais. Admitamos que sim; de qualquer modo, ainda sou eu mesmo que escolho o significado que têm. Quando estive preso, conheci um homem assaz notável, que era jesuíta, havia ingressado na ordem dos jesuítas da seguinte forma: tinha experimentado uma série de dolorosos fracassos; ainda criança, seu pai morrera deixando-o pobre; entrou como bolsista numa instituição religiosa onde faziam questão de lembrar-lhe a todo instante que ele era aceito por caridade; em seguida, perdera diversas distinções honoríficas que tanto agradam às crianças; mais tarde, por volta dos dezoito anos, fracassou numa aventura sentimental; finalmente, aos vinte e dois anos, falhou em sua preparação militar, fato bastante pueril que, no entanto, constituiu a gota que fez transbordar o jarro. Esse jovem podia portanto considerar que fracassara em tudo; era um sinal, mas um sinal de quê? Poderia refugiar-se na amargura ou no desespero. Porém, muito habilmente para si próprio, considerou que seus insucessos eram um sinal de que ele não nascera para os triunfos seculares, e que só os triunfos da religião, da santidade, da fé, estavam ao seu alcance. Viu, portanto, nesse sinal, a vontade de Deus e ingressou na Ordem. Quem poderia deixar de perceber que a decisão sobre o significado do sinal foi tomada por ele e só por ele? Seria possível deduzir outra coisa dessa série de insucessos: por exemplo, que seria melhor se ele fosse carpinteiro ou revolucionário. Ele carrega, portanto, a total responsabilidade da decifração. O desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e angústia caminham juntos. Quanto ao desespero, trata-se de um conceito extremamente simples. Ele significa que só podemos contar com o que depende da nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa ação possível. Quando se quer alguma coisa, há sempre elementos prováveis. Posso contar com a vinda de um amigo. Esse amigo vem de trem ou de ônibus; sua vinda pressupõe que o ônibus chegará na hora marcada e que o trem não descarrilhará. Permaneço no reino das possibilidades; porém, trata-se de contar com os possíveis apenas na medida exata em que nossa ação comporta o conjunto desses possíveis. A partir do momento em que as possibilidades que estou considerando não estão diretamente envolvidas em minha ação, é preferível desinteressar-me delas, pois nenhum Deus, nenhum designo poderá adequar o mundo e seus possíveis à minha vontade. No fundo, quando Descartes afirmava: “É melhor vencermo-nos a nós mesmos do que ao mundo”, ele queria dizer a mesma coisa: agir sem esperança. Os marxistas, com quem conversei, retrucam-me: “Em sua ação, que estará, evidentemente, limitada por sua morte, você pode contar com a ajuda dos outros. Isso significa contar, simultaneamente, com o que os outros farão alhures para ajudá-lo, na China, na Rússia, e com o que eles farão mais tarde, depois de sua morte, para retomar sua ação e conduzi-la até sua completa realização, ou seja, à revolução. Você deve contar com isso, caso contrário estará demonstrando falta de moral”. Antes de mais nada devo dizer que contarei sempre com meus companheiros de luta, na medida em que esses companheiros estão engajados comigo numa luta concreta e comum, na unidade de um partido ou de um grupo que eu posso, em linhas gerais, controlar; ou seja, ao qual eu pertenço como militante, e de cujos movimentos estou ciente a cada instante. Nesse caso, contar com a unidade e com a vontade desse partido é exatamente como contar com o fato de que o ônibus chegará na hora certa e o trem não descarrilhará. Não posso, porém, contar com homens que não conheço, fundamentando-me na bondade humana ou no interesse do homem pelo bem-estar da sociedade, já que o homem é livre e que não existe natureza humana na qual possa me apoiar. Não sei qual será o futuro da revolução russa; posso admirá-la e tomá-la como exemplo, na medida em que tenho provas, hoje, de que o proletariado desempenha, na Rússia, um papel que ele não desempenha em nenhuma outra nação. Mas não posso afirmar que tal situação irá forçosamente conduzir ao triunfo do proletariado; devo ater-me ao que vejo; não posso ter certeza de que meus companheiros de luta retomarão o meu trabalho após minha morte para o conduzir à máxima perfeição, visto que esses homens são livres e decidirão livremente, amanhã, sobre o que será o homem; amanhã, após minha morte, alguns homens podem decidir instaurar o fascismo, e outros podem ser bastante covardes ou fracos para permitir que o façam; nesse momento, o fascismo será a verdade humana e pior para nós; na realidade, as coisas serão como o homem decidir que elas sejam. Isso significa que eu deva abandonar-me ao quietismo? De modo algum. Primeiro, tenho que me engajar; em seguida, agir segundo a velha fórmula: “não é preciso ter esperança para empreender”. Isso não quer dizer que eu não deva pertencer a um partido, mas que não deverei ter ilusões e que farei o melhor que puder. Por exemplo, se eu perguntar a mim mesmo: a coletivização, enquanto tal, será um dia implantada? Como vou saber? Sei apenas que farei tudo o que estiver ao meu alcance para que ela o seja; eu o farei; para além disso, não posso contar com mais nada. O quietismo é a atitude daqueles que dizem: os outros podem fazer o que eu não posso. A doutrina que lhes estou apresentando é justamente o contrário do quietismo, visto que ela afirma: a realidade não existe a não ser na ação; aliás, vai mais longe ainda, acrescentando: o homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos, nada mais que sua vida. Em função disso, podemos entender por que nossa doutrina horroriza certo número de pessoas. Freqüentemente, elas dispõem de um único recurso para suportar a sua miséria, e é o de pensar o seguinte: “As circunstâncias estavam contra mim; eu valia muito mais do que aquilo que fui; é certo que não tive nenhum grande amor ou nenhuma grande amizade, mas foi porque não encontrei um homem ou uma mulher dignos de tal sentimento; se não escrevi livros muito bons, foi porque não tive tempo livre suficiente para fazê-lo; se não tive filhos a quem me dedicar, foi porque não encontrei o homem com quem teria podido construir a minha vida. Permaneceram, portanto, em mim, inutilizadas e inteiramente viáveis, uma porção de disposições, de inclinações, de possibilidades que me conferem um valor que o simples conjunto de meus atos não permitem inferir”. Ora, na verdade, para o existencialista, não existe amor senão aquele que se constrói; não há possibilidade de amor senão a que se manifesta num amor; não há gênio senão aquele que se expressa em obras de arte; o gênio de Proust é a totalidade das obras de Proust; o gênio de Racine é a série de tragédias que escreveu; para além disso, não há nada. Por que atribuir a Racine a possibilidade de escrever uma outra tragédia, se, justamente, ele não o fez? Um homem compromete-se com sua vida, desenha seu rosto e para além desse rosto, não existe nada. Evidentemente, tal pensamento pode parecer difícil de aceitar por alguém que tenha fracassado em seus projetos de vida. Mas, por outro lado, ele leva as pessoas a entenderem que só a realidade conta, que os sonhos, as esperas, as esperanças, só permitem que o homem se defina como sonho malogrado, como esperanças abortadas, como esperas inúteis; ou seja, que ele se defina em negativo e não em positivo; todavia, quando se diz: “tu nada mais és do que tua vida...”, isso não implica que o artista seja julgado unicamente por suas obras de arte; mil outras coisas contribuem igualmente para defini-lo. O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem esses empreendimentos.
Nessas condições, não é por nosso pessimismo que nos acusam, mas, no fundo, pela dureza de nosso otimismo. Se certas pessoas nos censuram por desenvolvermos seres pusilânimes, fracos, covardes, e, por vezes, francamente maus, em nossas obras de ficção, não é unicamente porque eles são pusilânimes, fracos, covardes ou maus, pois, se fizéssemos como Zola e declarássemos que eles assim são devidos à hereditariedade, por influência do meio, da sociedade, por um determinismo orgânico ou psicológico, todos se tranqüilizariam e diriam: aí está, somos assim e ninguém pode fazer nada; o existencialista, porém, quando descreve um covarde, afirma que esse covarde é responsável por sua covardia. Ele não é assim por ter um coração, um pulmão ou um cérebro covardes; ele não é assim devido a uma qualquer organização fisiológica; mas é assim porque se construiu como covarde mediante seus atos. Não existe temperamento covarde; existem temperamentos nervosos, existem pessoas que têm “sangue fraco” como diz o povo; ou temperamentos ricos; mas o homem que tem sangue fraco nem por isso é um covarde, pois o que cria a covardia é o ato de renunciar ou de ceder: um temperamento não é um ato e o covarde se define pelos atos que pratica. O que as pessoas, obscuramente, sentem, e que as atemoriza, é que o covarde que nós lhes apresentamos é culpado por sua covardia. O que as pessoas querem é que nasçamos covardes ou heróis. Uma das críticas mais freqüentemente feitas aos Caminhos da Liberdade pode ser formulada deste modo: “Mas, afinal, esses seres tão fracos, como poderão ser transformados em heróis?”. Tal objeção é um tanto ridícula, pois pressupõe que as pessoas nasçam heróis. E, no fundo, é isso que todos desejam pensar: se eu nasço covarde, posso viver em perfeita paz, nada posso fazer, serei covarde a vida inteira, o que quer que eu faça; se nasço herói, também viverei inteiramente tranqüilo, serei herói durante a vida toda, beberei como um herói; comerei como um herói. O que o existencialista afirma é que o covarde se faz covarde, que o herói se faz herói; existe sempre, para o covarde, uma possibilidade de não mais ser covarde, e, para o herói, de deixar de o ser. O que conta é o engajamento total, e não é com um caso particular, uma ação particular, que alguém se engaja totalmente.
Creio que respondemos, assim, a algumas das críticas feitas ao existencialismo. Vimos, portanto, que ele não pode ser considerado como uma filosofia do quietismo, já que define o homem pela ação; nem como uma descrição pessimista do homem: não existe doutrina mais otimista, visto que o destino do homem está em suas próprias mãos; nem como uma tentativa para desencorajar o homem de agir: o existencialismo diz-lhe que a única esperança está em sua ação e que só o ato permite ao homem viver. Nesse plano, estamos, por conseguinte, perante uma moral da ação e do engajamento. Todavia, a partir desses poucos dados, acusam-nos ainda de aprisionar o homem em sua subjetividade individual. Também aí nos interpretam muito mal. Nosso ponto de partida é, de fato, a subjetividade do indivíduo e isso por razões estritamente filosóficas. Não porque sejamos burgueses, mas porque desejamos uma doutrina baseada na verdade e não num conjunto de belas teorias cheias de esperança, mas sem fundamentos reais. Como ponto de partida, não pode existir outra verdade senão esta: penso, logo existo; é a verdade absoluta de consciência que apreende a si mesma. Qualquer teoria que considere o homem fora desse momento em que ele se apreende a si mesmo é, de partida, uma teoria que suprime a verdade pois, fora do cogito cartesiano, todos os objetos são apenas prováveis e uma doutrina de probabilidades que não esteja ancorada numa verdade desmorona no nada; para definir o provável, temos de possuir o verdadeiro. Portanto, para que haja uma verdade qualquer, é necessário que haja uma verdade absoluta; e esta simples e fácil de entender; está ao alcance de todo o mundo; consiste no fato de eu me apreender a mim mesmo, sem intermediário.
Em segundo lugar, esta é a única teoria que atribui ao homem uma dignidade, a única que não o transforma num objeto. Todo materialismo me leva a tratar todos os homens, eu próprio inclusive, como objetos, ou seja, como um conjunto de reações determinadas que nada distingue do conjunto das qualidades e dos fenômenos que constituem uma mesa, uma cadeira ou uma pedra. Nós desejamos, precisamente, estabelecer o reino humano como um conjunto de valores distintos dos do reino material. Porém, a subjetividade que alcançamos a título de verdade não é uma subjetividade rigorosamente individual, visto que, como já demonstramos, no cogito eu não descubro apenas a mim mesmo, mas também os outros. Através do penso, contrariamente à filosofia de Descartes, contrariamente a filosofia de Kant, nós nos apreendemos a nós mesmos perante o outro, e o outro é tão verdadeiro para nós quanto nós mesmos. Assim, o homem que se alcança diretamente pelo cogito descobre também todos os outros, e descobre-os como sendo a própria condição de sua existência. Ele se dá conta de que só pode ser alguma coisa (no sentido em que se diz que alguém é espirituoso, ou é mau ou é ciumento) se os outros o reconhecerem como tal. Para obter qualquer verdade sobre mim, é necessário que eu considere o outro. O outro é indispensável à minha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo. Nessas condições, a descoberta da minha intimidade desvenda-me, simultaneamente, a existência do outro como uma liberdade colocada na minha frente, que só pensa e só quer ou a favor ou contra mim. Desse modo, descobrimos imediatamente um mundo a que chamaremos de intersubjetividade e é nesse mundo que o homem decide o que ele é e o que são os outros.
Além disso, se bem que seja impossível encontrar em cada homem uma essência universal que seria a natureza humana, consideramos que exista uma universalidade humana de condição. Não é por acaso que os pensadores contemporâneos falam mais freqüentemente da condição do homem do que de sua natureza. Por condição, eles entendem, mais ou menos claramente, o conjunto dos limites a priori que esboçam a sua situação fundamental no universo. As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade pagã ou senhor feudal ou proletário. O que não muda é o fato de que, para ele, é sempre necessário estar no mundo, trabalhar, conviver com os outros e ser mortal. Tais limites não são nem subjetivos nem objetivos; ou, mais exatamente, têm uma face objetiva e uma face subjetiva. São objetivos na medida em que podem ser encontrados em qualquer lugar e são sempre reconhecíveis; são subjetivos porque são vividos e nada são se o homem os não viver, ou seja, se o homem não se determinar livremente na sua existência em relação a eles. E, embora os projetos humanos possam ser diferentes, pelo menos nenhum deles permanece inteiramente obscuro para mim, pois todos eles não passam de tentativas para transpor esses limites, ou para afastá-los, ou para negá-los, ou para se adaptar a eles. Conseqüentemente, qualquer projeto, por mais individual que seja, tem um valor universal. Todo projeto, mesmo o do chinês, do indiano ou do negro, pode ser entendido por um europeu. Poder ser compreendido significa que o europeu de 1945, a partir de uma situação que ele concebe, pode projetar-se para os seus limites, da mesma maneira, e pode reconstituir em si mesmo o projeto do chinês, do indiano ou do africano. Existe uma universalidade em todo projeto no sentido em que qualquer projeto é inteligível para qualquer homem. Isso não significa de modo algum que esse projeto defina o homem para sempre, mas que ele pode ser reencontrado. Temos sempre a possibilidade de entender o idiota, a criança, o primitivo ou o estrangeiro, desde que tenhamos informações suficientes. Nesse sentido, podemos dizer que há uma universalidade do homem; porém, ela não é dada, ela é permanentemente construída. Construo o universal, escolhendo-me; construo-o entendendo o projeto de qualquer outro homem, de qualquer época que seja. Esse absoluto da escolha não elimina a relatividade de cada época. O que o existencialismo faz questão de mostrar é a ligação existente entre o caráter absoluto do engajamento livre – pelo qual cada homem se realiza, realizando um tipo de humanidade – engajamento sempre compreensível em qualquer época e por qualquer pessoa, e a relatividade do conjunto cultural que pode resultar dessa escolha; é preciso sublinhar, simultaneamente, a relatividade do cartesianismo e o caráter absoluto do engajamento cartesiano. É nesse sentido que podemos dizer que cada um de nós é absoluto respirando, comendo, dormindo ou agindo de um modo qualquer. Não existe diferença alguma entre ser livremente, ser como projeto, como existência que escolhe a sua essência, e ser absoluto; não existe nenhuma diferença entre ser um absoluto temporariamente situado, ou seja, que se localizou na história, e ser universalmente compreensível.
Tudo isso não resolve inteiramente a objeção de subjetivismo. De fato, tal objeção assume ainda várias outras formas. A primeira é a seguinte: há quem nos diga que, se assim é, então cada um de nós pode fazer o que bem entender – acusação que se expressa de vários modos. Em primeira instância, acusam-nos de anarquia; e, em seguida, declaram: “vocês não podem julgar os outros, pois não há razão alguma para preferir tal projeto a tal outro”; finalmente, há quem diga: “tudo o que vocês escolhem é gratuito, vocês dão com uma mão o que fingem receber com a outra”. Essas três objeções não parecem ter sido formuladas com muita seriedade. Comecemos pela primeira: vocês podem escolher o que bem entenderem: tal afirmação não é verdadeira. A escolha é possível, em certo sentido, porém o que não é possível é não escolher. Eu posso sempre escolher mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim mesmo estarei escolhendo. Isso, se bem que pareça estritamente formal, tem suma importância, pois limita a fantasia e o capricho. Se, de fato, perante determinada situação – como, por exemplo, a situação que me define como um ser sexuado, podendo ter relações com um ser de outro sexo, podendo ter filhos – sou obrigado a escolher uma atitude e, de qualquer modo, sou responsável por uma escolha que, engajando a mim mesmo, engaja também toda a humanidade, mesmo se nenhum valor a priori determinar a minha escolha, esta nada terá a ver com o capricho. E, quem pensar estar encontrando aqui a teoria gidiana do ato gratuito, não estará compreendendo a enorme diferença entre a nossa doutrina e a de Gide. Gide não sabe o que é uma situação; ele age por simples capricho. Para nós, ao contrário, o homem encontra-se numa situação organizada, com a qual está engajado; pela sua escolha, ele engaja toda a humanidade e não pode evitar essa escolha: ou permanece casto, ou se casa e não tem filhos, ou se casa e tem filhos; de qualquer modo e seja que for que ele faça, é impossível que ele não tenha uma total responsabilidade em relação a esse problema. Efetivamente, ele escolhe sem se referir a valores preestabelecidos, mas é injusto acusá-lo de capricho. Digamos antes que devemos comparar a escolha moral à construção de uma obra de arte. E, aqui, precisamos fazer uma pausa para esclarecer que não se trata de uma moral estética, pois a má fé de nossos adversários é tanta que até disso nos acusam. O exemplo que escolhi não passa de uma comparação. Esclarecido esse ponto, perguntamos: alguma vez se acusou um artista que faz um quadro de ele não se inspirar em regras estabelecidas a priori? Alguém, alguma vez, lhe indicou que quadro deveria fazer? É evidente que não existe nenhum quadro definido que deva ser feito; o artista engaja-se na construção do seu quadro e o quadro que deve ser feito é, precisamente, o quadro que ele tiver feito. Sabemos que não existem valores estéticos a priori; contudo, existem valores que se tornam visíveis, posteriormente, na própria coerência do quadro, nas relações que existem entre a vontade de criação e o resultado. Ninguém pode prever como será a pintura de amanhã; não se pode julgar a pintura a não ser que esteja feita. Qual a relação de tudo isso com a moral? Trata-se da mesma situação criadora. Nunca falamos na gratuidade de uma obra de arte. Quando nos referimos a uma tela de Picasso, nunca dizemos que ela é gratuita; compreendemos perfeitamente que ele se construiu a si mesmo, tal qual é, ao mesmo tempo que pintava, que o conjunto de sua obra se incorpora à sua vida.
O mesmo acontece no plano moral. O que há em comum entre a arte e a moral é que, nos dois casos, existe criação e invenção. Não podemos decidir a priori o que devemos fazer. Penso ter deixado esse ponto suficientemente claro ao contar a história do aluno que me procurou e que poderia ter recorrido a qualquer moral, a kantiana ou qualquer outra, que não encontraria nenhum tipo de orientação: foi obrigado a inventar sozinho a sua lei. E – quer ele tenha escolhido ficar com a mãe, fundamentando sua moral nos sentimentos, na ação individual e na caridade concreta, quer tenha escolhido partir para a Inglaterra, preferindo o sacrifício – não poderíamos jamais dizer que esse homem fez uma escolha gratuita. O homem faz-se; ele não está pronto logo de início; ele se constrói escolhendo a sua moral; e a pressão das circunstâncias é tal que ele não pode deixar de escolher uma moral. Só definimos o homem em relação a um engajamento. Parece-nos, portanto, absurdo que nos objetem a gratuidade da escolha. Em segundo lugar, há quem afirme o seguinte: vocês não podem julgar os outros; sob certo ponto de vista, é verdade e, sob outro, é falso. É verdade no sentido em que, cada vez que o homem escolhe o seu engajamento e o seu projeto com toda a sinceridade e toda a lucidez, qualquer que seja, aliás, esse projeto, não é possível preferir-lhe um outro; é ainda verdade na medida em que nós não acreditamos no progresso; o progresso é uma melhoria; o homem permanece o mesmo perante situações diversas, e a escolha é sempre uma escolha numa situação determinada. O problema moral não mudou desde a época em que era possível escolher entre os escravagistas e os não-escravagistas, na altura da Guerra de Secessão, por exemplo, até ao momento presente em que podemos optar pelo M.R.P ou pelos comunistas.
Todavia, podemos julgar, pois, como já disse, cada um escolhe perante os outros e se escolhe perante os outros. Para começar, podemos considerar (e isso talvez não seja um juízo de valor, mas é um juízo lógico) que algumas escolhas estão fundamentadas no erro e outras na verdade. Podemos julgar um homem dizendo que ele tem má fé. Tendo definido a situação do homem como uma escolha livre, sem desculpas e sem auxílio, consideramos que todo homem que se refugia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má fé. É possível objetar o seguinte: por que razão ele não poderia escolher-se como um homem de má fé? E eu respondo que não tenho que julgá-lo moralmente, mas defino a sua má fé como um erro. Não podemos escapar, aqui, a um juízo de verdade. A má fé é, evidentemente, uma mentira, pois dissimula a total liberdade do engajamento. No mesmo plano, direi que tem má fé, igualmente, aquele que declara que certos valores preexistem a si próprios; estarei em contradição comigo mesmo se, concomitantemente, quiser esses valores e afirmar que eles me são impostos. Alguém pode perguntar-me: e se eu quiser ser um homem de má fé? Eu responderei: não há motivo algum para que você não possa sê-lo, mas declaro que você tem má fé e que a atitude de estrita coerência é a atitude de boa fé. Além disso, posso fazer um juízo moral. Quando declaro que a liberdade, através de cada circunstância concreta, não pode ter outro objetivo senão o de querer-se a si própria, quero dizer que, se alguma vez o homem reconhecer que está estabelecendo valores, em seu desamparo, ele não poderá mais desejar outra coisa a não ser a liberdade como fundamento de todos os valores. Isso não significa que ele a deseja abstratamente. Mas, simplesmente, que os atos dos homens de boa fé possuem como derradeiro significado a procura da liberdade enquanto tal. Um homem que adere a um sindicato comunista ou revolucionário quer alcançar objetivos concretos; tais objetivos implicam uma vontade abstrata de liberdade; porém, essa liberdade é desejada em função de uma situação concreta. Queremos a liberdade através de cada circunstância particular. E, querendo a liberdade, descobrimos que ela depende integralmente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade, enquanto definição do homem, não depende de outrem, mas, logo que existe um engajamento, sou forçado a querer, simultaneamente, a minha liberdade e a dos outros; não posso ter como objetivo a minha liberdade a não ser que meu objetivo seja também a liberdade dos outros. De tal modo que, quando, ao nível de uma total autenticidade, reconheço que o homem é um ser em que a essência é precedida pela existência, que ele é um ser livre que só pode querer a sua liberdade, quaisquer que sejam as circunstâncias, estou concomitantemente admitindo que só posso querer a liberdade dos outros. Posso, portanto, formar juízos sobre aqueles que pretendem ocultar a si mesmos a total gratuidade de sua existência e sua total liberdade, em nome dessa vontade de liberdade implicada pela própria liberdade. Aqueles que dissimularem perante si mesmos a sua total liberdade, com exigências da seriedade ou com desculpas deterministas, eu os chamarei de covardes; os outros, que tentarem demonstrar que sua existência era necessária, quando ela é a própria contingência do aparecimento do homem sobre a terra, eu os chamarei de canalhas. Porém, covardes ou canalhas, só podem ser julgados ao nível de uma rigorosa autenticidade. Assim, embora o conteúdo da moral seja variável, certa forma dessa moral é universal. Kant afirma que a liberdade quer a si mesma e a liberdade dos outros. Certos; mas ele considera que o formal e o universal bastam para constituir uma moral. Nós pensamos, pelo contrário, que princípios abstratos demais não conseguem definir a ação. Tomemos, mais uma vez; o caso do aluno: em nome de que, em nome de que grande máxima moral teria ele podido decidir, com toda a tranqüilidade de espírito, abandonar sua mãe ou permanecer junto dela? Não existem meios para julgar. O conteúdo é sempre concreto e, por conseguinte, imprevisível; há sempre invenção. A única coisa que importa é saber se a invenção que se faz se faz em nome da liberdade.
Examinemos, por exemplo, os dois casos seguintes: vocês poderão constatar em que medida se assemelham e, ao mesmo tempo, diferem. Consideremos O Moinho à Beira do Rio. Nele encontramos certa mocinha, Maggie Tulliver, que encarna o valor da paixão e está consciente disso: ela está apaixonada por um jovem rapaz, Stephen, noivo de uma garota insignificante. Essa Maggie Tulliver, em vez de preferir, levianamente, a sua própria felicidade, escolhe sacrificar-se, renunciar ao homem que ama, em nome da solidariedade humana. Na Cartuxa de Parma, a Sanseverina exemplifica o caso oposto: considerando que a paixão constitui o verdadeiro valor do homem, ela teria declarado que um grande amor merece sacrifícios; que é preciso preferir o amor-paixão à banalidade do amor conjugal que uniria Stephen e a jovem boba com quem deveria casar-se; ela escolheria sacrificar esta última e realizar a sua felicidade; e, como nos mostra Stendhal, ela se sacrificaria a si mesma por paixão se a vida assim o exigisse. Estamos, aqui, diante de duas morais rigorosamente opostas; eu considero que elas são equivalentes: nos dois casos, a meta proposta foi a liberdade. E vocês podem imaginar duas atitudes estritamente semelhantes quanto aos efeitos: Uma jovem, por resignação, prefere renunciar ao seu amor; outra, por apetite sexual, prefere desconhecer a ligação anterior do homem que ama. Essas duas ações se assemelham, exteriormente, àquelas que acabamos de descrever. Contudo, são inteiramente diferentes. A atitude da Sanseverina está muito mais próxima da de Maggie Tulliver do que de uma voracidade inconseqüente.
Vocês podem, portanto, constatar que essa segunda acusação que nos fazem é simultaneamente verdadeira e falsa. Podemos escolher qualquer coisa se nos colocarmos ao nível de um engajamento livre.
A terceira objeção é a seguinte: vocês recebem com uma mão o que dão com a outra; isso significa que, no fundo, os valores não têm seriedade; já que vocês os escolhem. Argumentarei dizendo que lamento muito que assim seja, mas, já que eliminamos Deus Nosso Senhor, alguém terá de inventar os valores. Temos que encarar as coisas como elas são. E, aliás, dizer que nós inventamos os valores não significa outra coisa senão que a vida não tem sentido a priori. Antes de alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem a vive que deve dar-lhe um sentido; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido. Pode constatar-se, assim, que é possível criar uma comunidade humana. Criticaram-me por perguntar se o existencialismo é um humanismo. Responderam-me: afinal, você escreveu, na Náusea, que os humanistas estavam errados, você troçou de um certo tipo de humanismo, por que razão voltar atrás agora? Na realidade, a palavra humanismo tem dois significados muito diferentes. Podemos considerar como humanismo uma teoria que toma o homem como meta e como valor superior. Há humanismo, nesse sentido, em Cocteau, por exemplo, quando, em sua narrativa A Volta ao Mundo em 80 Horas, um personagem declara, ao sobrevoar as montanhas, de avião: o homem é admirável. Isso significa que eu, pessoalmente, que não construí aviões, irei beneficiar-me dessas invenções particulares e poderei, pessoalmente, enquanto homem, considerar-me como responsável e honrado pelos atos particulares de alguns homens. O que supõe que podemos atribuir um valor ao homem em função dos atos mais elevados de certos homens. Tal humanismo é absurdo, pois só o cachorro ou o cavalo poderiam emitir um juízo de conjunto sobre o homem e declarar que o homem é admirável – o que eles não têm a mínima intenção de fazer, que eu saiba, pelo menos. Mas não podemos admitir que um homem possa julgar o homem. O existencialismo dispensa-o de todo e qualquer juízo desse tipo: o existencialismo não colocará nunca o homem como meta, pois ele está sempre por fazer. E não devemos acreditar que existe uma humanidade à qual possamos nos devotar, tal como fez Auguste Comte. O culto da humanidade conduz a um humanismo fechado sobre si mesmo, como o de Comte, e, temos de admiti-lo, ao fascismo. Este é um humanismo que recusamos. Existe, porém, outro sentido para o humanismo, que é, no fundo, o seguinte: o homem está constantemente fora de si mesmo; é projetando-se e perdendo-se fora de si que ele faz com que o homem exista; por outro lado, é perseguindo objetivos transcendentes que ele pode existir; sendo o homem essa superação e não se apoderando dos objetos senão em relação a ela, ele se situa no âmago, no centro dessa superação. Não existe outro universo além do universo humano, o universo da subjetividade humana. É a esse vínculo entre a transcendência, como elemento constitutivo do homem (não no sentido em que Deus é transcendente, mas no sentido de superação), e a subjetividade (na medida em que o homem não está fechado em si mesmo, mas sempre presente num universo humano) que chamamos humanismo existencialista. Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro legislador a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se para si mesmo mas procurando sempre uma meta fora de si – determinada libertação, determinada realização particular – que o homem se realizará precisamente como ser humano.
Após essas reflexões, vemos que nada é mais injusto do que as acusações de que fomos alvo. O existencialismo nada mais é do que um esforço para tirar todas as conseqüências de uma postura atéia coerente. Esta não pretende, de modo algum, mergulhar o homem no desespero. Mas se, tal como fazem os cristãos, se decide chamar desespero a qualquer atitude de descrença, nossa postura parte do desespero original. O existencialismo não é tanto um ateísmo no sentido em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele declara, mais exatamente: mesmo que Deus existisse, nada mudaria; eis nosso ponto de vista. Não que acreditemos que deus exista, mas pensamos que o problema não é o de sua existência; é preciso que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus. Nesse sentido, o existencialismo é um otimismo, uma doutrina de ação, e só por má fé é que os cristãos, confundindo o seu próprio desespero com o nosso, podem chamar-nos de desesperados.
Discussão
Não sei se o desejo que você tem de ser compreendido o tornará mais claro ou mais obscuro, mas acho que o artigo de divulgação publicado no Ação induz o leitor a um mau entendimento. As palavras “desespero”, “desamparo”, têm uma ressonância muito mais forte num texto existencialista. Parece-me que, para você, o desespero ou a angústia são mais fundamentais do que, simplesmente, a decisão do homem que se sente só e é obrigado a decidir. É uma tomada de consciência da condição humana que não acontece a todo momento. Que nós escolhemos a toda hora, é ponto pacífico, mas a angústia e o desespero não se produzem constantemente.
Não quero evidentemente dizer que, ao escolher entre um mil-folhas e uma bomba de chocolate, escolho com angústia. A angústia só é constante no sentido em que minha escolha original é uma escolha constante. De fato, na minha opinião, a angústia é a ausência total de justificativas e simultaneamente, a responsabilidade perante todos.
Eu estava me referindo ao artigo publicado pelo Ação e parece-me que o seu ponto de vista estava um tanto enfraquecido.
Sinceramente, acho que é possível que, no Ação, minhas teses tenham ficado um pouco enfraquecidas; acontece, freqüentemente, que pessoas não qualificadas venham fazer-me perguntas. Encontro-me, então, diante de duas soluções possíveis: recusar-me a responder ou aceitar a discussão ao nível da vulgarização. Escolhi a segunda porque, no fundo, quando expomos teorias no colégio, numa aula de filosofia, aceitamos enfraquecer uma idéia para torná-la inteligível, e não é tão ruim assim. Se a teoria é uma teoria do engajamento, temos de engajar-nos até o fim. Se, realmente, a filosofia existencialista é uma filosofia que diz: “a existência precede a essência”, ela deve ser vivida para ser verdadeiramente sincera. Viver como existencialista é aceitar pagar por essa doutrina e não impô-la através de livros. Quem deseja que essa filosofia seja um engajamento de verdade, deve justificá-la perante aqueles que a discutem no plano político ou moral.
Você me acusa de utilizar a palavra humanismo. É que o problema se coloca da seguinte forma: Ou situamos a doutrina num plano estritamente filosófico, e devemos contar com o acaso para que ela desempenhe uma ação, ou, já que as pessoas esperam dela outra coisa e já que ela quer ser um engajamento, é preciso aceitar vulgarizá-la, com a condição de que a vulgarização não a deforme.
Aqueles que querem entendê-lo, entenderão e os que não querem, não entenderão.
Você parece conceber o papel da filosofia na comunidade de um modo já ultrapassado pelos acontecimentos. Antigamente, os filósofos só eram atacados por outros filósofos. O leigo não entendia nada e também não se importava com isso. Agora, a filosofia é obrigada a descer em praça pública. O próprio Marx procurou constantemente divulgar o seu pensamento; o Manifesto é a vulgarização de um pensamento.
A escolha original de Marx é uma escolha revolucionária.
Aquele que for capaz de dizer que ele se escolheu primeiro revolucionário e em seguida filósofo ou primeiro filósofo e depois revolucionário, pode considerar-se um espertalhão. Ele é filósofo e revolucionário: é um todo. O que significa dizer que sua escolha original foi ser revolucionário?
O Manifesto Comunista não me parece uma vulgarização mas uma arma de combate. Não posso crer que não seja um ato de engajamento. Uma vez que o Marx filósofo chegou à conclusão de que a revolução era necessária, seu primeiro ato foi o Manifesto Comunista, que é um ato político. O Manifesto Comunista constitui a ligação entre a filosofia de Marx e o comunismo. Qualquer que seja a moral que você tenha, a relação lógica entre essa moral e a sua filosofia não é tão sensível quanto a que existe entre Manifesto Comunista e a filosofia de Marx.
Trata-se de uma moral da liberdade. Se não existir contradição alguma entre essa moral e a nossa filosofia, nada mais se pode exigir. Os tipos de engajamento diferem em função das épocas. Numa época em que engajar-se era fazer a revolução, era preciso escrever o Manifesto. Numa época como a nossa, em que existem vários partidos que se dizem revolucionários, o engajamento não consiste em aderir a algum deles, mas em procurar esclarecer os conceitos, para definir com mais rigor a posição de cada um desses diversos partidos revolucionários e, simultaneamente, tentar agir sobre eles.
A questão que pode colocar-se, a partir dos pontos de vista que você acaba de destacar, é a de saber se a sua doutrina não irá apresentar-se, num futuro próximo, como a ressurreição do radical-socialismo. Isso pode parecer estranho, mas é assim que devemos colocar a questão atualmente. Você assume, aliás, os mais diversos pontos de vista. Porém, se procurarmos um ponto de convergência de todos esses pontos de vista, desses vários aspectos das idéias existencialistas, tenho a impressão de que o encontraremos numa espécie de ressurreição do liberalismo; sua filosofia tenta ressuscitar – em condições muito particulares, que são as condições históricas atuais – o que constitui o essencial do radical-socialismo, do liberalismo humanista. O que confere características próprias à sua doutrina é que a crise social mundial já não permite o antigo liberalismo; ela exige um liberalismo torturado, angustiado. Creio que é possível encontrar certo número de razões bastante profundas para essa apreciação, mesmo se nos ativermos aos termos que você mesmo utilizou. O que ressalta da exposição de hoje é que o existencialismo se apresenta sob forma de um humanismo e de uma filosofia da liberdade que, no fundo, é um pré-engajamento, um projeto que não se define. Você coloca em primeiro plano, como muitos outros, a dignidade humana, a eminente dignidade do indivíduo; estes são temas que, bem vistas as coisas, não estão muito afastados de todos os antigos temas liberais. Para justificá-los, você estabelece distinções entre os dois sentidos de humanismo, entre os dois sentidos de “condição humana”, atribuindo duplos sentidos a uma série de termos já sensivelmente desgastados, que, aliás, possuem toda uma história bastante significativa e cuja ambigüidade não é fruto do acaso. Para salvá-los, você inventa-lhes um novo significado. Deixo de lado todas as questões específicas relativas à técnica filosófica, muito embora elas me pareçam interessantes e importantes, e, a fim de me ater aos termos que escutei, destaco um ponto fundamental que demonstra que, apesar da distinção que você estabeleceu entre os dois sentidos de humanismo, você se apóia, no fundo, no antigo.
O homem apresenta-se como uma escolha a ser feita. Muito bem. Ele é, antes de mais nada, a sua existência no momento presente e está fora do determinismo natural; ele não se define anteriormente a si mesmo, mas em função do seu presente individual. Não existe natureza humana superior ao homem, mas uma existência específica lhe é dada em determinado momento. Pergunto a mim mesmo se a existência, concebida desse modo, não é uma outra versão do conceito de natureza humana que, por razões históricas, se reveste de uma nova expressão; se ela não é muito semelhante – muito mais do que parece à primeira vista – à natureza humana tal como era definida no século XVIII e cujo conceito você afirma rejeitar, já que ela se encontra, em larga medida, por trás da expressão “condição humana” tal como o existencialismo a utiliza. Sua concepção da condição humana é um substituto para a natureza humana, assim como você substitui a experiência vulgar ou a experiência científica pela experiência vivida.
Se considerarmos as condições humanas como condições que se definem por um X, que é o X do sujeito, mas não pelo contexto natural dessas mesmas condições nem por sua determinação positiva, estamos perante outra forma de natureza humana: trata-se de uma natureza-condição, se você quiser, ou seja: a natureza humana não se define simplesmente como tipo abstrato de natureza mas revela-se por meio de algo que é muito mais difícil de formular – por razões que, na minha opinião, são históricas. Hoje em dia, a natureza humana define-se dentro dos limites dos quadros sociais que são os de uma desagregação geral dos regimes sociais, os das classes, dos conflitos que as atravessam, da miscigenação das raças e das nações, que fazem com que a idéia de uma natureza humana uniforme, esquemática, não possa mais apresentar-se com o mesmo caráter de generalidade, assumir o mesmo tipo de universalidade que tinha no século XVIII, época em que ela parecia expressar-se em função de um progresso contínuo. Atualmente, lidamos com uma expressão de natureza humana que as pessoas que pensam ou falam ingenuamente sobre o assunto chamam de condição humana; elas a expressam de modo caótico, vago e, na maioria das vezes, de um modo dramático, se se quiser, imposto pelas circunstâncias; e, na medida em que não desejam passar da expressão geral dessa condição ao exame determinista do que são efetivamente as condições, essas pessoas conservam o tipo, o esquema de uma expressão abstrata, análoga à natureza humana.
Assim, o existencialismo agarra-se à idéia de uma natureza humana. Mas agora já não é uma natureza orgulhosa de si mesma, mas uma condição temerosa, incerta e desamparada. E, efetivamente, quando o existencialismo fala de condição humana, está falando de uma condição que ainda se encontra verdadeiramente engajada naquilo que o existencialismo chama de projeto e que, conseqüentemente, é uma pré-condição. Trata-se de um pré-engajamento e não de um engajamento nem de uma verdadeira condição. De modo que também não é por acaso que tal condição se define, antes de mais nada, por seu caráter de humanismo geral. Aliás, quando, no passado, alguém falava de natureza humana, estava se referindo a algo mais delimitado do que uma condição em geral; pois a natureza já é outra coisa, é mais do que uma condição, em certo sentido.
A natureza humana não é uma modalidade no sentido em que a condição humana é uma modalidade. E é por isso que, na minha opinião, é melhor falar de naturalismo do que de humanismo. No naturalismo, há uma implicação de realidades mais gerais do que no humanismo, pelo menos no sentido que a palavra humanismo assume em sua exposição; estamos diante de uma realidade. Aliás, seria necessário ampliar esta discussão relativa à natureza humana, pois é preciso introduzir também o ponto de vista histórico. A realidade primeira é a realidade natural, da qual a realidade humana é apenas uma função. Mas, para isso, temos de admitir a verdade da história, e o existencialismo, de modo geral, não admite a verdade da história nem da história natural em geral, nem mesmo da história humana; e, no entanto, é a história que faz os indivíduos; é a sua própria história, a partir do momento em que são concebidos, que faz com que os indivíduos não nasçam e não apareçam num mundo que lhes confere uma condição abstrata, mas surjam num mundo do qual sempre fizeram parte, para o qual estão condicionados, e que eles próprios contribuem para condicionar – do mesmo modo que a mãe condiciona seu filho e que esse filho a condiciona desde a gestação. É somente desse ponto de vista que temos direito de falar da condição humana como de uma realidade primeira. Seria mais correto dizer que a realidade primeira é uma condição natural e não uma condição humana. Estou apenas repetindo, aqui, opiniões correntes e banais mas que não me pareceram de modo algum refutadas pela exposição do existencialismo. Em suma, se é verdade que não existe uma natureza humana abstrata, uma essência do homem independente ou anterior à sua existência, é certo também que não existe uma condição humana em geral, mesmo que, por condição, você entender certo número de circunstâncias ou situações concretas – visto que, em sua opinião, elas não estão articuladas. De qualquer modo, o marxismo tem, a esse respeito, idéias diferentes: a da natureza no homem e do homem na natureza, o qual não está forçosamente definido de um ponto de vista individual.
Isso significa que existem leis de funcionamento para o homem assim como para qualquer outro objeto de ciência, que constituem, na verdadeira acepção da palavra, sua natureza, uma natureza diversificada, é certo, e que pouco se parece com uma fenomenologia, quer dizer, com uma percepção experimentada, empírica, vivida, tal como ela é apresentada pelo senso comum, ou melhor, pelo pretenso senso comum dos filósofos. Nesse sentido, a concepção da natureza humana que tinha os homens do século XVIII estava, indubitavelmente, muito mais próxima da de Marx do que a de seu substituto existencialista: a condição humana como pura fenomenologia da situação.
Humanismo é infelizmente hoje em dia um termo que serve para designar diversas correntes filosóficas, desdobrando-se não somente em dois sentidos, mas em três, quatro, cinco, seis. Todo mundo é humanista, em nossos dias, mesmo certos marxistas, que descobriram ser racionalistas clássicos, são humanistas no sentido insípido do termo, derivado das idéias liberais do século passado: o sentido de um liberalismo refratado por toda a crise atual. E assim como os marxistas podem pretender ser humanistas, as diversas religiões – a cristã, a hindu e muitas outras – também pretendem ser, antes de mais nada, humanistas; e, por sua vez, o existencialismo, e também, de modo geral, todas as filosofias. Do mesmo modo, muitas das correntes políticas atuais afirmam sua filiação humanista. Tudo isso converge para uma espécie de tentativa de restabelecimento de uma filosofia que, no fundo e apesar de sua pretensão, recusa engajar-se, e recusa engajar-se não apenas ao nível político e social mas também num sentido filosófico profundo. Se o cristianismo pretende ser, antes de mais nada, humanista, é porque ele não quer engajar-se, porque ele não pode engajar-se, ou seja, participar da luta das forças progressistas, já que ele mantém suas posições reacionárias relativamente à revolução. Se os pseudomarxistas ou liberais declaram considerar o indivíduo antes de mais nada, é porque eles recuam diante das exigências da atual situação do mundo. Da mesma forma, o existencialista, enquanto liberal, considera o homem em geral porque não consegue formular uma posição exigida pelos acontecimentos, e a única posição progressista que nós conhecemos é a do marxismo. É o marxismo que coloca os verdadeiros problemas da nossa época.
Não é verdade que o homem tenha liberdade de escolha no sentido em que, através da escolha, ele confere à sua atividade um significado que ela não teria de outro modo. Não basta dizer que homens podem lutar pela liberdade sem saber que estão lutando pela liberdade; ou então, se atribuirmos um sentido pleno a tal reconhecimento, isso significa que homens podem engajar-se e lutar por uma causa que os domina, ou seja, podem agir num quadro que os ultrapassa e não apenas em função de si mesmos. Pois, afinal de contas, se um homem luta pela liberdade sem o saber, sem formular para si mesmo, lucidamente, os meios que utiliza e os objetivos que pretende atingir, isso significa que os seus atos vão determinar uma série de conseqüências que se insinuam numa trama casual cujo princípio e fim ele não capta, mas que, apesar de tudo, encerra sua ação e lhe confere um sentido, em função da atividade dos outros; e não apenas dos outros homens mas do meio natural em que esses homens agem. Porém, no seu ponto de vista, a escolha é uma pré-escolha; volto novamente a esse prefixo, pois considero que há sempre a intervenção de uma reticência nessa espécie de pré-escolha onde atua uma liberdade de pré-indiferença. Mas sua concepção da condição e da liberdade está vinculada a certa definição dos objetos sobre a qual devo dizer duas palavras. Aliás, é dessa sua idéia acerca do mundo dos objetos, da utensilidade, que deriva todo o resto. Você traça o quadro de um mundo descontínuo de objetos – feito à imagem das existências descontínuas dos seres – de onde está ausente todo causalismo, exceto essa estranha modalidade da relação de causalidade que é a da utensilidade passiva, incompreensível e desprezível. O homem existencialista tropeça num universo de utensílios, de obstáculos sujos, encadeados, apoiados uns nos outros por uma bizarra preocupação de se servirem uns aos outros, porém marcados pelo estigma, assustador para os idealistas, da assim chamada exterioridade pura. Esta modalidade de determinismo de utensilidade é, no entanto, a-causal. Mas onde começa e onde termina esse mundo cuja definição, aliás, é inteiramente arbitrária e que não se ajusta de forma alguma aos dados científicos modernos? Em nossa opinião, não começa nem termina em parte alguma, pois a segregação a que o existencialismo pretende submetê-lo relativamente à natureza, ou melhor, à condição humana, é irreal. Existe apenas um mundo, um único mundo diante de nós, e a totalidade desse mundo – homens e coisas, se você faz questão dessa distinção – pode ser afetada, em certas condições variáveis, pelo signo da objetividade. A utensilidade das estrelas, da raiva, da flor? Não vou especular sobre isso. Sustento, todavia, que sua liberdade, seu idealismo, nasceram do desprezo arbitrário pelas coisas. Todavia as coisas são bastante diferentes da descrição que você faz delas. Você admite que elas têm uma existência própria: isso já é um sucesso. Mas é uma existência puramente privativa, uma hostilidade permanente. O universo físico e biológico nunca constitui, para você, uma condição, uma fonte de condicionamentos – sendo que essa palavra, no seu sentido mais forte e prático, não tem mais realidade para você do que a palavra causa. É por isso mesmo que, para o homem existencialista, o universo objetivo não passa de uma fonte de aborrecimentos, sem influência, no fundo indiferente, um provável perpétuo, ou seja, exatamente o contrário do que ele é para o materialismo marxista.
É por todas essas razões e outras mais que você não concebe o engajamento da filosofia senão como uma decisão arbitrária que você qualifica de livre. Ao dizer que Marx definiu uma filosofia você está desvirtuando a própria história de Marx, já que ele a engajou. Não, muito pelo contrário, o engajamento, ou, melhor, as atividades social e política foram determinantes para seu pensamento mais geral. Suas doutrinas se definiram através de uma multiplicidade de experiências. Parece-me evidente que o desenvolvimento do pensamento filosófico de Marx se processou em contato consciente com o desenvolvimento político ou social. Aliás, o mesmo aconteceu, aproximadamente, com os filósofos anteriores. Se Kant é um filósofo sistemático, conhecido por se ter mantido afastado de toda e qualquer atividade política, isso não significa que sua filosofia não tenha desempenhado certo papel político; Kant, o Robespierre alemão, sendo Heine; e, se na época de Descartes, por exemplo, se podia admitir que o desenvolvimento da filosofia não desempenhasse nenhum papel político imediato – que, aliás, não é verdade –, desde o século passado isso tornou-se impossível. Hoje em dia, retomar, de qualquer forma que seja, uma posição anterior ao marxismo, é o que eu chamo voltar ao radical-socialismo.
O existencialismo, na medida em que pode fazer nascer vontades revolucionárias, deve engajar-se, de início, numa operação de autocrítica. Não creio que o faça de bom grado, mas deveria fazê-lo. Deveria sofrer uma crise na pessoa daqueles que o defendem, uma crise dialética, que dizer, que preservasse, em certo sentido, algumas posições de alguns de seus partidários, que não são desprovidas de valor. Isso me parece tanto mais necessário que pude observar as conclusões sociais, verdadeiramente inquietantes e nitidamente retrógradas que alguns deles extraíram do existencialismo. Um deles escrevia, como conclusão de uma análise, que a fenomenologia pode servir, hoje, de modo muito preciso, no plano social e revolucionário, para dotar a pequena burguesia de uma filosofia capaz de permitir-lhe tornar-se a vanguarda do movimento revolucionário internacional. Por intermédio das intencionalidades de consciência, poder-se-ia dar à pequena burguesia uma filosofia que correspondesse à sua existência própria, que lhe permitisse tornar-se a vanguarda do movimento revolucionário mundial. Cito esse exemplo, mas poderia mencionar outros do mesmo gênero que mostram que certo número de pessoas, que até estão muito engajadas e que estão ligadas à temática do existencialismo, chegam a desenvolver teorias políticas que, no fundo – e retomo o que estava dizendo no início –, são teorias coloridas de neoliberalismo, de neo-radical-socilaismo. É realmente perigoso. O que mais nos interessa não é procurar coerência dialética entre todas as áreas abordadas pelo existencialismo, mas examinar a orientação desses temas que conduzem pouco a pouco – e até possivelmente à sua revelia e em função de uma pesquisa, de uma teoria, de uma atitude que você imagina ser muito definida – que conduzem, dizia, a alguma coisa que não é o quietismo, é claro (falar de quietismo, na época atual, é brincadeira, já que ele é impossível), mas a algo que se assemelha à passividade da espera. Isso talvez não seja contraditório com certos engajamentos individuais, mas é contraditório com a procura de um engajamento que tenha um valor coletivo e, sobretudo, um valor prescritivo. Por que razão o existencialismo não deveria impor diretrizes? Em nome da liberdade? Mas, afinal, se se trata de uma filosofia orientada no sentido indicado por Sartre, ela tem de impor diretrizes; em 1945, ela tem de dizer que é preciso aderir à UDSR, ao partido socialista, ao partido comunista ou a outro qualquer; ela deve dizer se é a favor do partido dos trabalhadores ou do partido pequeno-burguês.
É muito difícil responder a tudo o que você disse, porque você disse muita coisa. Vou tentar responder a alguns pontos que anotei. Em primeiro lugar, acho que você assumiu uma posição dogmática. Você declarou que nós estávamos retomando uma posição anterior ao marxismo, que nós estávamos retrocedendo. Creio que seria necessário provar que nós não pretendemos assumir uma posição posterior a dele. Não quero discutir sobre esse assunto, mas gostaria de perguntar-lhe como você conseguiu ter tal concepção da verdade. Você pensa que existem coisas absolutamente verdadeiras visto que faz críticas em nome de uma certeza. Porém, se todos os homens são objetos, como você diz, de onde provém semelhante certeza? Você declarou que é em nome da dignidade humana que o homem se recusa a tratar o homem como objeto. Está errado. É por uma razão de ordem filosófica e lógica: se você postular um universo de objetos, a verdade desaparece. O mundo do objeto é o mundo do provável. Você tem de admitir que toda teoria, quer seja científica ou filosófica, é provável. A prova disso está em que as teses científicas, históricas variam e que elas se formulam sob forma de hipótese. Se admitirmos que o mundo do objeto, o mundo do provável, é único, não teremos mais do que um mundo de probabilidades, e assim, como é necessário que a probabilidade dependa de certo número de verdades adquiridas, de onde provém a certeza? O nosso subjetivismo permite certezas a partir das quais poderemos juntar-nos a você no plano do provável e justificar o dogmatismo que você manifestou no decorrer da sua exposição e que é incompreensível na posição que você assumiu. Se você não define a verdade, como podemos conceber a teoria de Marx de outra forma que não seja a de uma doutrina que surge, desaparece, se modifica e que tem apenas o valor de uma teoria? Como fazer uma dialética da história se não se começar por estabelecer certo número de regras? Encontramo-las no cogito cartesiano; não podemos encontra-la senão situando-nos no terreno da subjetividade. Nós jamais discutimos o fato de que, constantemente, o homem é um objeto para o homem, mas reciprocamente é necessário, para apreender o objeto enquanto tal, que haja um sujeito que se apreenda como sujeito.
Em segundo lugar, você fala de uma condição humana que por vezes você chama de pré-condição e você menciona a existência de uma pré-determinação. O que lhe escapou, neste ponto, é que nós aderimos a muitas das descrições do marxismo. Você não pode criticar-me como criticaria alguém do século XVIII que ignorasse tudo sobre esse assunto. O que você nos disse sobre a determinação é algo que sabemos há muito tempo. O verdadeiro problema, para nós, é o de definir em que condições existe universalidade. Já que não existe natureza humana, como conservar, através da história, que se modifica constantemente, um número suficiente de princípios universais que nos permitam interpretar, por exemplo, o fenômeno Spartacus, o que pressupõe um mínimo de compreensão da época? Estamos de acordo nesse ponto: não existe natureza humana, ou seja, cada época se desenvolve segundo leis dialéticas, e os homens dependem da época e não de uma natureza humana.
Quando você procura interpretar, você diz: é porque estamos nos referindo a determinada situação. Porém nós nos referimos às analogias ou às diferenças existentes entre a vida social daquela época e a nossa. Se, ao contrário, tentássemos analisar essa analogia em função de um tipo abstrato, não chegaríamos nunca a nada. Assim, suponha que, daqui a dois mil anos, o homem não disponha, para analisar a situação atual, senão de teses sobre a condição humana em geral; como faria ele para analisar retrospectivamente? Não conseguiria.
Nunca pensamos que não se deviam analisar condições humanas nem intenções individuais. O que chamamos de situação é justamente o conjunto de condições materiais e psicanalíticas que, em determinada época, definem com precisão um conjunto.
Não me parece que a sua definição esteja de acordo com os seus textos. De qualquer modo, fica claro que sua concepção da situação não é de modo algum identificável, sequer aproximadamente, com uma concepção marxista, visto que nega o causalismo. A sua definição não é precisa: ela desliza com freqüência, habilmente, de uma posição a outra, sem que você defina seu ponto de vista de modo suficientemente rigoroso. Para nós, uma situação é um conjunto construído e que se revela por toda uma série de determinações, e de determinações de tipo casual, incluindo a causalidade de tipo estatístico.
Você está falando de causalidade de ordem estatística. Isso não significa rigorosamente nada. Você poderia explicar-me, com clareza, o que você entende por causalidade? No dia em que o marxista conseguir explicar-me isso, acreditarei na causalidade marxista. Sempre que se fala em liberdade, vocês dizem: perdão, a causalidade existe. Essa causalidade secreta que só tem sentido em Hegel, vocês não podem explicá-la. Você tem um sonho de causalidade marxista.
Você admite que existe uma verdade científica? Podem existir áreas que não comportam nenhuma espécie de verdade. Mas o mundo dos objetos – espero que pelo menos isso você reconheça – é o mundo de que se ocupam as ciências. Ora, para você, trata-se de um mundo que não tem senão uma probabilidade e que não alcança a verdade. Portanto, o mundo dos objetos, que é o da ciência, não admite nenhuma verdade absoluta. Mas atinge uma verdade relativa. No entanto, essas ciências utilizam a noção de causalidade: você concorda?
R: Claro que não. As ciências são abstratas, elas estudam as variações de fatores igualmente abstratos e não a causalidade real. Trata-se de fatores universais num plano onde as ligações podem sempre ser estudadas. Ao passo que, no marxismo, trata-se do estudo de um conjunto único no qual se procura uma causalidade. Isso nada tem a ver com a causalidade científica.
Você deu um exemplo, longamente desenvolvido, o do jovem que o procurou.
Não estava ele no plano da liberdade?
Você devia ter-lhe dado uma resposta. Se eu tivesse no seu lugar, teria tentado informar-me do que ele era capaz, qual a sua idade, quais as suas possibilidades financeiras, teria tentado examinar as relações que ela tinha com a mãe. É possível que eu tivesse emitido uma opinião provável, mas teria certamente tentado definir um ponto de vista preciso, que talvez até se revelasse falso ao nível da ação, mas eu o teria com certeza levado a se engajar, de alguma forma.
Se ele veio pedir-lhe um conselho, é porque já escolheu a resposta. Em termos práticos, é claro que eu poderia ter-lhe dado um conselho; mas, já que ele procurava a liberdade, quis deixá-lo decidir sozinho. Aliás, eu já sabia o que ele ia fazer, e foi o que ele fez.