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Fonte: https://vermelho.org.br
HTML: Fernando Araújo.
Há uma questão militar no governo Bolsonaro? Muitos acham que sim, mas é preciso estar atento ao rigor da expressão.
Embora com a presença no governo de mais de 130 oficiais das Forças Armadas, desde a cúpula até o 3º escalão, este não é um governo militar nos moldes do que foram os governos da ditadura de 1964.
No primeiro escalão, destacam-se importantes oficiais das Forças Armadas – além, é claro, do vice presidente, o General Hamilton Mourão. E aquele que é considerado o de mais prestígio no Exército, o general Eduardo Villas Bôas – que, durante a campanha eleitoral, classificou o então candidato como "inocontrolável".
O governo Bolsonaro tem, em posições chave, mais oficiais militares do que a maioria dos governos militares de 1964: entre os 22 ministros, são oficiais das Forças Armadas o tenente-coronel da Aeronáutica Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), os generais da reserva Fernando Azevedo e Silva (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete da Segurança Institucional) e Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), o almirante Bento Costa Lima Leite (Minas e Energia), o capitão da reserva Wagner Rosário (Transparência e CGU), o ex-capitão Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura) e o general Floriano Peixoto (Secretaria-Geral da Presidência), e o general Otávio Rêgo Barros (porta-voz da Presidência da República). Incluindo o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, e o presidente, o governo tem onze militares em postos de destaque, sem contar o general Villas Bôas, que foi comandante do Exército (cargo que equivale ao antigo Ministro do Exército) e hoje, gravemente doente (ele sofre de esclerose lateral amiotrófica, uma degenerativa) é assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
O que define, a rigor, o caráter militar de um governo, nas condições brasileiras, é a pauta que põe em prática. Se há ainda o renitente anticomunismo e a resistência contra governos de caráter mais democrático – como foram, no passado, o segundo mandato de Getúlio Vargas, os governos de Juscelino Kubitschek e de João Goulart e, recentemente, de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussseff – há também o legalismo, acentuado sob a égide da Constituição de 1988, que coloca a maioria dos chefes militares em posição de respeito à ordem institucional. E, sobretudo, à missão constitucional das Forças Armadas – a defesa da Pátria.
A pauta que domina o governo Bolsonaro, não é – nem pode ser confundida com – a pauta dos militares brasileiros que, historicamente – desde a década de 1910, está centrada na defesa do desenvolvimento econômico e industrial com o objetivo de construir uma infraestrutura logística que interligue o território nacional, e de criar as condições para produzir os armamentos necessários à autonomia da defesa nacional. Uma lição relativamente recente foi a Guerra das Malvinas, em 1982, quando a Argentina foi derrotada inclusive por não produzir, internamente e de maneira autônoma, as armas necessárias para enfrentar as tropas inglesas – e, obviamente, não conseguiu comprá-las no mercado internacional dominado pelo mesmo imperialismo dos EUA aliado da Inglaterra.
Neste particular Bolsonaro aprofunda os percalços da indústria bélica brasileira desde o final do regime militar, quando decisões tomadas pelo governo, sob influência e determinação dos EUA, este setor da indústria foi praticamente desmantelado – como revela o destino de uma empresa promissora como a Engesa, que foi rifada do mapa devido às pressões estadunidenses.
Bolsonaro, que se vangloria da patente de capitão, teve que sair do Exército em 1988 punido por sua atividade quase sindical – lutava por melhores salários, sendo punido por indisciplina – e a marca de sua ação na presidência da República é o oposto daquela ação inicial que o tornou notório faz mais de 30 anos – dedica-se agora a destruir as instituições que lutam pelos direitos e reivindicações dos trabalhadores.
Não há questão militar no governo Bolsonaro. Não como houve, no Império, com a chamada "questão militar" na década de 1880. Em 1883 o Tenente-coronel Antônio de Sena Madureira declarou-se contra o projeto de lei que pretendia impor a a contribuição ao montepio dos militares – a contribuição previdenciária da época. A punição a Sena Madureira fez aflorar a tensão existente entre o governo imperial e o Exército desde o final da Guerra do Paraguai, levantando entre a oficialidade temores de que o Imperador agiria contra o Exército, diminuindo sua importância ou mesmo o dissolvendo, a favor da tradicional Guarda Nacional. Isto é, havia uma ameaça contra o Exército. Que, durante a República nunca houve – muito menos hoje, sob o governo Bolsonaro, apesar de suas iniciativas que comprometem a soberania nacional e a autonomia para a produção de armas, como a venda da Embraer à Boeing, a cessão aos EUA da base de lançamento de foguetes de Alcântara, os cortes orçamentários que comprometem o próprio funcionamento das Forças Armadas.
Não existe questão militar neste governo que, embora com a presença de tantos militares, é um governo civil, resultado de uma eleição – é preciso enfatizar – e que enfrenta, já em seus primeiros meses de mandato, uma inusitada crise de legitimidade que pôde ser vista no domingo (26), na minguada manifestação pró-Bolsonaro que demonstra a erosão da base social que o elegeu em outubro de 2018.
O que existe no governo Bolsonaro, e preocupa os brasileiros que pensam em seu país, é uma grave questão democrática. O titular da presidência da República não esconde sua ânsia autoritária de governar sozinho, agindo contra instituições como o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal (STF) e todos aqueles que coloca sob o rótulo desqualificador de "velha política". Pretende agir contra estas instituições, esteios da ordem democrática e do equilíbrio entre os poderes da República, com o afã ditatorial de governar sem qualquer controle institucional e democrático sobre suas ações. Ações que, como largamente demonstrou nestes cinco meses inaugurais de seu governo, atentam contra os direitos do povo e dos trabalhadores, contra a soberania nacional e pela vergonhosa submissão aos EUA e a seu governo de direita dirigido por Donald Trump. Ter as mãos livres, livrando-se da tutela do legislativo e do judiciário, significa liberdade para as ações de grave desmantelamento do Estado nacional e das poucas políticas sociais que ainda sobram no país, rasgando completamente a Constituição de 1988.
A democracia sob ameaça, que marca o governo Bolsonaro, questão democrática que o país vive desde o golpe de 2016 que afastou do poder a presidenta eleita Dilma Rousseff, poderá nestas condições evoluir para uma questão militar – desde que este setor do funcionalismo público que detém o uso legitimo da força em defesa da pátria e das instituições, se tome em brios e se junte à ampla frente democrática de oposição aos desmandos autoritários de Jair Bolsonaro.