Aurélio Peres, exemplo de lutador pelo povo

José Carlos Ruy

7 de dezembro de 2018


Fonte: https://vermelho.org.br

HTML: Fernando Araújo.


Nesta quinta-feira (6) foi lançada em São Paulo a biografia de Aurélio Peres ("Aurélio Peres — vida, fé e luta"), de autoria de Osvaldo Bertolino que, nesta entrevista, fala sobre a aventura de escrevê-la.

José Carlos Ruy – Bertolino, você está se especializando em escrever biografias de grandes figuras do movimento social e popular. Como foi escrever a história da vida de alguém da estatura do Aurélio Peres, cuja trajetória se confunde com a luta operária e popular na cidade de São Paulo?

Osvaldo Bertolino – Eu imaginei escrever algo bem mais modesto. Não tinha a dimensão da vida e da obra de Aurélio Peres. Quando consegui olhar o inquérito do DOI-Codi percebi que teria de preparar algo bem mais alentado. Envolvia uma conjuntura, com vários personagens confluindo para a mesma história. A ditadura militar estava promovendo uma verdadeira caçada aos comunistas e o pessoal da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) era o alvo da vez. A Guerrilha do Araguaia estava praticamente sob controle da repressão. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), outro alvo da ditadura, também não oferecia mais risco. E a luta armada nas cidades tinha sido aniquilada.

Sobrava esse pessoal da APML, que a ditadura julgava ser um movimento capaz de reerguer a guerra popular. O Aurélio Peres e outros militantes daquela organização caíram nas garras do DOI-Codi nessa circunstância. O problema é que os porões da repressão estavam totalmente sem controle, com duas facções do regime disputando seu comando. E quem caísse nas mãos daqueles bandos estava entregue à sorte.

Só aí a história rendeu um bom pedaço do livro. Depois teve o movimento de bairros, que começou com os Clubes de Mães e se transformou em Movimento contra o Custo de Vida. Coincidiu que em 1974 a economia entrou em parafuso, uma crise que foi se agravando até explodir no final da década de 1970 e início da década de 1980. Aurélio Peres soube catalisar a indignação que tomava conta do povo das periferias de São Paulo e organizou esse sentimento num simbólico abaixo-assinado com mais de um milhão de assinaturas, entregue no Palácio do Planalto, ao ditador-presidente, general Ernesto Geisel.

Como contar essa história fantástica, rica em detalhes? Não tinha como não ser com um estilo que pusesse o leitor na cena dos acontecimentos. Mas isso era só a metade da missa. Depois vieram os dois mandatos parlamentares e o ativismo sindical. O resultado foi essa publicação taluda, condizente com a grande obra desse magnífico personagem da história de luta por democracia, pela soberania da pátria e por direitos do povo.

José Carlos Ruy – Esta biografia, de certa maneira, se confunde com a de outra personalidade de vulto, de quem você também foi o redator da autobiografia – Vital Nolasco?

Osvaldo Bertolino – O Vital Nolasco é outra figura da extirpe de Aurélio Peres. Com características diferentes, obviamente, mas com a mesma tenacidade e compromisso com as causas do povo e da nação. Esses dois personagens estiveram juntos em toda aquela trajetória de resistência democrática das décadas de 1970 e de 1980. Com a diferença de que o Aurélio Peres teve mais protagonismo antes do fim da ditadura militar e o Vital depois.

A experiência parlamentar do Vital foi na Câmara dos Vereadores de São Paulo, onde se destacou com importantes iniciativas de interesse popular, uma vida descrita na sua autobiografia Vale a pena lutar, que tive a honra de escrever. Uma das muitas qualidades do Vital é que ele compreendeu a importância do registro histórico da sua luta e tomou a iniciativa de fazer o livro. Aí foi só juntar a necessidade de uma obra como aquela e a sua disposição de produzi-la que a coisa fluiu.

Já o Aurélio Peres foi mais reticente. Penso que por receio de ser mal interpretado. Ele sofreu um bocado com aquela história do Antônio Barbosa Neto, o Barbosinha, em 1986. Esse personagem era o principal dirigente do PCdoB no estado de São Paulo. Ficou esse arranhão na relação do Aurélio Peres com a então direção estadual do PCdoB, uma nódoa nunca devidamente removida. E numa situação assim é inevitável o sentimento de injustiça; no caso dele ainda mais grave por ter sido um destacado opositor do regime militar.

Aurélio Peres esperava uma atitude mais decidida da própria direção nacional. Mas as contradições e as complexidades da época eram tantas que não foi possível uma solução sem arestas. Ao se sentir sem ter a quem recorrer, Aurélio Peres optou por um recuo temporário na militância. Mas nunca renegou sua ideologia e o PCdoB.

Foram a atitude desprendida da direção da Fundação Maurício Grabois e a imprescindível advocacia política do Vital Nolasco que demoveram Aurélio Peres da ideia de não registrar suas memórias e sua luta. Com isso, ele fez uma espécie de catarse para tentar superar esse episódio definitivamente, removendo a crosta de indignação com aquela política do Barbosinha. Aurélio Peres desabafou, criticou, se autocriticou e, ao que parece, fez o que queria e precisava ser feito. O Vital Nolasco foi fundamental nisso tudo.

José Carlos Ruy – Geralmente militantes do movimento social deixam poucos sinais de sua trajetória. Quais foram as dificuldades que você encontrou psra escrever a biografia de Aurélio. E também quais foram os apoios?

Osvaldo Bertolino – No caso do Aurélio Peres consegui reunir uma farta documentação. Foi até difícil fazer as formas de cada episódio, tal era a riqueza de detalhes. Lógico, tudo isso exigiu cuidado, porque a memória nacional ainda é algo muito maltratado no Brasil. A gente acessa a matéria-prima bruta, um mundaréu de papéis e documentos que precisam ser analisados com lupa de precisão. As pesquisadoras Sandra Costa e Vanilda Fatega foram uma espécie de garimpeiras, escavando minhas indicações.

Das montanhas de cascalhos que elas reuniam eu tirava as pepitas de ouro. A vida e a obra de Aurélio Peres são tão vastas e profícuas que, para caber numa biografia, precisavam de uma síntese cuidadosa. Mas essa foi a parte mais fácil. A que deu um certo trabalho foi a pesquisa oral, a técnica de lidar com informações da memória das pessoas. Aí o cuidado tem de ser redobrado. Eu procuro não emitir opinião sobre os fatos, optando por apoiá-los no mínimo em evidências. Com as devidas observações de que são evidências. Creio que esse é um recuso imprescindível para não se vender ficção como história, como é comum se ver por aí.

Nesse caso da memória oral, também optei pelo caminho de reunir o máximo de informações para sintetizá-las no âmbito da trajetória do biografado. A vantagem é que, em se tratando de Aurélio Peres, o que não faltaram foram fontes para revelar informações preciosas. O resultado foi esse livro rico em informações e profícuo em lições. Outro aspecto importante, nessa questão do apoio é que muita gente se dispôs a ajudar. Uns corrigiram os originais, outros apontaram lacunas, mais outros revisaram e assim foi se formando um preciso time de colaboradores voluntários.

Citei as pesquisadoras Sandra Costa e Vanilda Fatega, mas quero falar também do diagramador Laércio D’Ângelo, que com seu capricho deu essa bonita forma ao livro. Quero falar também do próprio Aurélio Peres, da sua esposa Conceição e dos seus filhos Leni e Marco Aurélio, que ajudaram com muita dedicação. A Fundação Maurício Grabois disponibilizou todos os recursos necessários. Isso foi fundamental. O Aurélio Peres tem essa vantagem: seu carisma, sua seriedade, sua firmeza política e ideológica e sua cordialidade fizeram as pessoas a se sentirem com vontade de ajudar nesse trabalho. Enfim, foi relativamente tranquilo fazer essa obra.

José Carlos Ruy – Nas décadas de 1970/ 1980 Aurélio Peres foi, sem dúvida, a principal liderança popular brasileira. Foi o coordenador do Movimento do Custo de Vida (depois Movimento da Carestia), que envolveu a população, com apoio do clero progressista da Igreja e do PCdoB. A liderança de Aurélio de certa forma se equipava à de Lula, que emergia no movimento operário dinamizado pela luta contra a carestia e pelo a anço da o0posição à ditadura, que crescia em sua esteira. É possível uma comparação entre estes dois líderes gigantes?

Osvaldo Bertolino – Sim, é possível. Era isso mesmo. O Aurélio Peres era mais formado política e ideologicamente. Isso fazia muita diferença. Ele tinha experiência com multidões e uma habilidade oratória incomum. Sem contar seu talento como mobilizador e organizador. Juntando tudo, o resultado foi um autêntico líder popular. As circunstâncias conduziram um e outro por caminhos diferentes, mas naquele período de resistência à ditadura militar Aurélio Peres tinha uma compreensão mais abrangente da tática política.

No livro há vários episódios em que essa diferença fica nítida. O mais importante é a predileção do senador Teotônio Vilela por ele na sua jornada pela anistia e pelas “Diretas já”. Como diz o próprio Aurélio Peres, ele era uma espécie de sombra do combativo senador alagoano. Os dois percorreram o país espalhando esperança e transformando sal em mel, como cantou Milton Nascimento na sua música “Menestrel das Alagoas”. Mas, mesmo sendo um crítico do caminho do Partido dos Trabalhadores (PT), Aurélio Peres não deixou de se postar ao lado de Lula naqueles embates iniciados em 1978 e que se estenderam até praticamente o fim do regime militar. Depois Lula se transformou nesse personagem político superlativo, enquanto Aurélio Peres, tolhido pelas barreiras da vida, se afastou um pouco da cena política.

José Carlos Ruy – O lançamento de seu livro, ocorrido nesta quinta feira (6) teve a virtude de mobilizar muita gente que estava na luta com o Aurélio, desde os anos 70, o Movimento do Custo de Vida, as Comunidades Eclesiais e Base e o PCdoB. Podemos entender essa mobilização como uma disposição de retomar a luta, neste momento em que a direita ameaça dominar novamente o cenário político brasileiro, com a iminente posse do proto-fascista Jair Bolsonaro?

Osvaldo Bertolino – Sim! Foi o que ele disse no final da sua fala. A hora é de retomar as mobilizações de bases, se inserir no povo e organizar a resistência. Essa grande quantidade guerreiros presentes no lançamento é uma demonstração do valor que as pessoas dão para esse tipo de militância. E o Aurélio Peres foi um mestre nessa matéria. Todos queriam vê-lo, tocá-lo, beber seus ensinamentos. E ele não deixou passar a oportunidade em branco: fez um firme chamamento à continuidade da sua escola de luta, ao mesmo tempo em que alertou para os graves riscos que ameaçam o país.

A quantidade de pessoas presentes no lançamento surpreendeu muita gente, mas eu já esperava isso. Como eu disse, Aurélio Peres deixou um legado que, por si só, tem um enorme poder de mobilização. Ele é desses personagens da história que serão lembrados por muito tempo como exemplo do que é ser uma pessoa digna, correta, íntegra, ética e combativa.
Não é fácil ser tudo isso. Quando surge alguém assim, todos que têm o privilégio de conhecê-lo querem aprender um pouco sobre como proceder para ter pelo menos um pouco dos seus valores. O livro tem exatamente essa finalidade: revelar Aurélio Peres por inteiro. O pai, o esposo, o líder popular, o deputado ativo, o líder sindical combativo e o companheiro leal. Em resumo: um autêntico comunista.


Inclusão: 12/11/2021