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Primeira Edição: Publicado originalmente na revista Princípios, edição 21, MAI/JUN/JUL, 1991, Páginas 34, 35, 36.
Fonte: https://vermelho.org.br
HTML: Fernando Araújo.
Para marcar os 150 anos da Comuna de Paris, o Portal Vermelho oferece aos internautas um artigo do saudoso José Carlos Ruy publicado em 1991, sob o impacto do fim da experiência socialista na União Soviética e Europa. Para Ruy, “a comuna foi a tentativa mais radical de se colocar em prática as promessas teóricas da democracia burguesa, mas a repressão sangrenta mostrou que elas não passaram de retórica”.
A questão da democracia é tema central na avaliação teórica da Comuna de Paris. Os próprios communards já haviam enfrentado este problema na prática, e as soluções que encontraram permitiram à teoria política do proletariado uma compreensão mais precisa e avançada da necessidade de extinção do Estado e do caráter histórico e classista da democracia.
“O velho edifício governamental deve ser destruído de cima a baixo, e reconstruído sobre as bases ditadas pela ciência e pela justiça (…). Só o trabalho deve ter retribuição (…) e aqueles que não trabalham não têm o direito de viver ou, pelo menos, de tomar parte na vida social. Estes são os princípios fundamentais da Comuna”, escreveu em 24 de abril de 1871 o jornal communard L’Ami du peuple, uma reedição do glorioso jornal que Marat dirigiu na revolução de 1789.
Esse trecho destaca dois traços fundamentais: a necessidade da destruição da velha máquina burocrático-militar, de construção de um novo Estado, mais democrático, e a contraposição do trabalho à propriedade como critério para a participação social e política. Com esses dois traços, essa nova democracia diferencia-se radicalmente da democracia liberal burguesa, que se baseia na manutenção da máquina estatal burocrático-militar e na propriedade como fundamentos do exercício da cidadania.
Em nossos dias, assistimos a uma forte revivência do liberalismo, que contamina inclusive o pensamento de esquerda. Muitos rendem-se aos preconceitos liberais e renunciam à política proletária, prostrando-se ao altar do Estado burguês, que encaram como um instrumento neutro, acima das classes. Outros rendem-se à avalanche neoliberal e, a pretexto de atualizar as teses socialistas, ajustam a elas contrabandos ideológicos do liberalismo, numa colcha de retalhos eclética.
A Comuna de Paris tentou levar às últimas consequências as idéias de igualdade, liberdade e fraternidade herdadas da revolução francesa de 1789, e provou de forma dramática os limites além dos quais o exercício dessas idéias não pode ir sob o domínio burguês. Não foi só a meta final que o socialismo deve perseguir que a Comuna de Paris desvendou – um governo popular realmente democratizado, onde o Estado se resumiria à administração das coisas e não das pessoas, numa sociedade sem classes. Esse foi o legado deixado pela Comuna aos trabalhadores revolucionários.
A burguesia também tirou lições da Comuna de Paris. Foi depois dela que a burguesia francesa encontrou também, finalmente, sua forma estável de governo, a república parlamentar. Os limites da democracia burguesa também foram definidos, com clareza, após a Comuna de Paris.
A Constituição francesa de 1875, que fundou a III República, uniu os partidários da monarquia e os republicanos conservadores (homens como Thiers, Jules Favre e outros), num conluio dos algozes da Comuna para afastar a pecha de radicalismo que envolvia a República desde 1789.
Aquela foi uma república de proprietários, formalmente democrática, cujo presidente era eleito indiretamente por uma Assembléia Nacional formada pela Câmara dos Deputados e por um Senado que tinha um terço de seus membros com mandato vitalício e os outros dois terços preenchidos por uma eleição onde só votaram os funcionários públicos provinciais. O sufrágio universal masculino foi conquistado após duras lutas.
A III República começou a entrar em crise quando forças populares começaram a apresentar desempenho eleitoral favorável. Na eleição de 1936, a Frente Popular dos comunistas e socialistas fez maioria no parlamento e assumiu o controle do governo. A máscara democrática tinha então, na França, seus dias contados. A instabilidade política traduziu-se numa rápida deterioração institucional até que, em 1940, com os alemães de Hitler ocupando boa parte do território francês, instaurou-se o regime de Vichy, dirigido pelo marechal Petain e que colaborou intimamente com os nazistas.
Em contraposição a esse Estado de proprietários, que afastava o povo, limitando severamente sua participação política, a Comuna de Paris ajudou a definir os traços de uma verdadeira república democrática de trabalhadores, e uma forma de Estado que subordinava-se à sociedade, ao invés de tornar-se senhor dela.
Não se pode, porém, ter a ilusão de que a Comuna tivesse sido socialista. Marx enfatizou seu caráter de governo de operários e, dez anos depois, em 1881, numa carta a Domela Nieuwenhuis, chamou a atenção para o fato de a Comuna de Paris ter sido “simplesmente a sublevação de uma cidade sob condições excepcionais”, e a “maioria da Comuna não era em modo algum socialista nem tampouco podia sê-lo”.
Lênin, por sua vez, destacou (em 1917): “a verdadeira tarefa que a Comuna teve de cumprir foi, acima de tudo, o exercício da ditadura democrática e não socialista, ou seja, a aplicação do nosso programa mínimo”.
A Comuna foi, pode-se dizer, a tentativa mais destacada de se colocar em prática os postulados teóricos da própria teoria política da democracia burguesa: o governo baseado na livre manifestação da vontade dos cidadãos. A burguesia produz, na teoria, inúmeras declarações de intenção que, na prática, não cumpre, ao criar obstáculos institucionais que limitam o exercício dessas boas intenções. E a Comuna de Paris desmascarou o mito da democracia burguesa. Num comunicado ao povo dizia inspirar-se na República revolucionária de 1792 para realizar a “liberdade política pela igualdade social”. Era demais para a burguesia, e a repressão feroz e sanguinária mostrou que, para ela, aqueles ideais invocados não passavam de retórica.
A radicalização do programa de 1789 e a tentativa frustrada de sua realização marcaram o encerramento de uma etapa na história política européia e a abertura de uma nova fase. A república parlamentar francesa que se seguiu à Comuna afastou o povo e baseou-se numa aliança da elite (ou conciliação, como se diz no Brasil) contra o povo. Desde então, mudou o padrão de alianças de classes que vigorou nas revoluções burguesas do passado. Naquelas revoluções, a burguesia era a classe dirigente, que guiava todo o povo na luta contra a nobreza feudal e seus privilégios, e exercia a hegemonia sobre os trabalhadores da cidade e do campo, que mobilizou em defesa do programa de mudanças burguesas na sociedade.
Depois de 1848, a classe operária começou a libertar-se da liderança burguesa, e adquiriu programa, organização e objetivos próprios. Em consequência, as elites proprietárias formaram na Europa sua “santa aliança” contra a democracia e o socialismo. A guerra franco-prussiana de 1870 e a Comuna de Paris consolidaram esse novo padrão de aliança de classes, que sobrepôs-se inclusive às rivalidades nacionais. Quando eclodiu a Comuna, a traição nacional da elite assumiu claramente o caráter de traição contra o povo francês, e a camarilha de Favre, Thiers e companhia apelou por ajuda ao comando alemão, que aceitou libertar mais de 100 mil soldados franceses que mantinha prisioneiros, com os quais Thiers pôde reorganizar seu Exército e esmagar a Comuna.
O novo padrão de aliança de classes unia proprietários contra o povo trabalhador. A classe operária, por seu turno, demorou em encontrar novos aliados. O lento aprendizado histórico fez dela a vanguarda na luta dos trabalhadores, e esse aprendizado implica dotar os dirigentes operários não só de uma teoria revolucionária nova e mais avançada. Ele impõe também o rompimento com os particularismos e o exclusivismo classista, forjando um programa de mudanças revolucionárias para o conjunto da sociedade, no qual outros setores de trabalhadores e camadas oprimidas pelo capitalismo – principalmente os camponeses e a pequena-burguesia assalariada – se reconheçam.
Na época da Comuna de Paris, essas idéias ainda não estavam claras na consciência dos trabalhadores, que nem mesmo tinham um programa definidamente operário e popular. As influências mais decisivas entre os operários franceses eram, então, Pierre Proudhon e Luis Augusto Blanqui. Proudhon preconizava a reorganização da sociedade baseada na associação de pequenos produtores independentes, idéia de uma pequena-burguesia assustada com o crescimento da grande indústria. Blanqui, por sua vez, desprezava a política de massas, e encarava a atividade política com espírito de seita, como uma tarefa de um pequeno grupo de lutadores abnegados que tomariam o poder de assalto e imporiam as reformas necessárias de modo ditatorial.
A comuna de Paris representou o declínio dessas idéias no movimento socialista. “A Comuna foi o túmulo da escola proudhoniana de socialismo”, escreveu Engels. Ela marcou, por outro lado, o começo da hegemonia do marxismo, do socialismo científico, no campo revolucionário socialista.
A redefinição do padrão de aliança de classes e a clara afirmação de um programa revolucionário do proletariado teve consequências importantes. Ficava claro, desde então, que a revolução no século XX só pode ser proletária e socialista. As “revoluções burguesas” afastaram-se das massas e procuraram crescentemente apoio na máquina militar, naquelas nações onde ainda não se completaram as transformações capitalistas.
O Brasil é um exemplo. Aqui, as lentas transformações que levaram à hegemonia capitalista foram baseadas naquele padrão de alianças entre as classes proprietárias e seu instrumento foram os militares radicalizados, como os “tenentes” dos anos 1920 e 1930. O adversário principal da revolução burguesa era agora o proletariado e o campesinato, que a burguesia temia mobilizar. Adversário, inclusive, que delimitava o alcance e os limites além dos quais, ao contrário de suas antecessoras, a revolução burguesa do século XX não vai mais. O principal desses limites é a manutenção do monopólio das terras nas mãos de minorias latifundiárias.
A Revolução Russa de 1917 foi talvez aquela em que o novo padrão de alianças foi mais cristalino. Em suas origens, ela pode ser vista como a última grande revolução burguesa, como a de 1789. A revolução, porém, põe em marcha duas linhas principais – o movimento político reformista da elite, que pretende apenas mudanças jurídico-institucionais, e a revolução da plebe, que exige transformações sociais mais profundas. Em 1789, a aliança da burguesia com os camponeses e a plebe levou à vitória contra a aristocracia, e permitiu à burguesia vitoriosa inclusive esmagar os setores radicalizados da plebe.
Em 1817, ao contrário, a classe operária já não estava sob liderança da burguesia. Ela disputava a direção do processo revolucionário e as lições da história foram de grande utilidade para guiar sua atuação. Os escritos de Lênin desse ano mostram sua permanente preocupação com a experiência da Comuna de Paris, suas virtudes e seus defeitos. A liderança bolchevique soube consolidar, na prática, a aliança operário-camponesa, construir a hegemonia do proletariado à frente de todos os trabalhadores do campo e da cidade e, assim, não só derrotar a ameaça de golpe militar, mas também desmoralizar os preconceitos liberais dos reformistas, que não aceitavam o poder dos sovietes e queriam submeter as instituições políticas populares, nascidas da luta, à liderança democrático-burguesa. Com isso, os bolcheviques conseguiram dirigir a revolução e superar sua primeira etapa, democrático-burguesa, e levá-la à segunda etapa, marcada pelo início da construção do socialismo e da primeira democracia operária da história.
O socialismo está morto, proclamou Thiers depois do massacre da Comuna. Engano. Poucos anos depois, o movimento socialista renascia na França e crescia em toda a Europa. Era já um movimento operário novo, mais forte, melhor armado teórico e praticamente, confirmando o que Marx havia escrito anos antes, em O Dezoito Brumário (de 1852): “As revoluções proletárias como as do século dezenove se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias dos seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que torna impossível qualquer retrocesso”.
Em nossos dias, o movimento revolucionário e socialista vive uma derrota muitas vezes mais dramática e dura do que a da Comuna de Paris. Os Thiers contemporâneos apregoam que o socialismo está morto, e insistem que a democracia burguesa é a etapa final do desenvolvimento político da humanidade. Muitos progressistas juntam-se a eles nessa cantilena.
Aparentemente, entretanto, vivemos – como nos dias da Comuna – a superação de uma etapa na história da luta pelo socialismo. Uma etapa que, apesar dos enormes esforços, das energias dispendidas, volta-se “ao que parecia resolvido” para recomeçar outra vez. Esse recomeço, entretanto, não parte do zero, mas da experiência acumulada em todas estas décadas, uma experiência que enfatiza dramaticamente que a construção do socialismo não se limita somente às transformações econômicas na sociedade, mas liga-se à democratização do Estado, sua crescente submissão à sociedade, à definição de novas relações entre os homens, de uma nova cultura que aponte para a liberdade e para o desenvolvimento das infinitas capacidades do gênero humano, a uma nova e mais avançada concepção do que sejam as forças produtivas e de sua submissão às necessidades do homem e não ao contrário, como no capitalismo.
Uma nova etapa na construção do socialismo deve levar em conta questões como essa, cujo véu a Comuna começou a levantar e que os bolcheviques, sob Lênin, iluminaram como nunca ocorrera antes.