Saudades do Império

Francisco Martins Rodrigues

Setembro/Outubro de 2006


Primeira Edição: Política Operária nº 96, Set-Out 06

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Quase comovente a nostalgia com que Miguel Sousa Tavares (Público, 25/6) nos leva a visitar o mundo colonial hoje caído em pedaços. Vejam esta roça com a sua Casa Grande: outrora produzia cacau e café em abundância, mil e quinhentos trabalhadores saíam todas as manhãs para o mato, havia fruta fresca e pão cozido, uma piscina, crianças que iam para a escola... “Isto dava tudo”, diz o velho guarda, saudoso do tempo antigo. E agora, só ruínas…

O contraste é tal que o leitor não pode deixar de perguntar-se: afinal, valeu a pena termos vindo embora? Não era, apesar de tudo, melhor aquele tempo, em que a economia funcionava, do que o abandono actual?

E ainda uma outra pergunta: será que aquela gente queria mesmo ver-se livre de nós? Parece que não, a julgar pelo orgulho com que um dos guardas exibe a chave da roça que o patrão branco lhe confiou ao partir.

De meditação em meditação, o nosso viajante é avassalado pela gesta dos colonos que por ali labutaram, imagina os sonhos, ilusões e saudades sepultados naquelas pedras. E sente um grande respeito. “Não tento compreender e, menos ainda, julgar: sei que mataram, que estropiaram, que escravizaram, que maltrataram. Sei que não há nada de grandioso ou de louvável em tantas dessas vidas sepultadas nos cemitérios do Império. Mas, todavia, não julgo. Porque é uma insuportável arrogância moral julgar a História com a vantagem o tempo".

E assim, com esta elegante pirueta ideológica- não julguemos a História, que isso é sinal de arrogância - Miguel Sousa Tavares, progressista patenteado, reinstala-se docemente na nostalgia do Império. “Não julguemos a História” quer, muito simplesmente, dizer: “Os colonos tiveram os seus motivos para agirem como agiram, não devemos fazer juízos de valor”.

Se não fosse um democrata de via reduzida, MST devia saber há muito que quando se olha muito de perto as motivações, as alegrias e os dramas dos opressores e se guarda uma conveniente distância das alegrias, dos dramas e da razão dos oprimidos, entra-se no “vale tudo” e até uma empresa desprezível como a colonização pode aquirir tons de epopeia.


Inclusão 21/08/2019