“O Rádio está Avariado”

Francisco Martins Rodrigues

18 de Abril de 2004


Primeira Edição: Entrevista de São José Almeida a FMR, 18/4/2004, jornal Público

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Francisco Martins Rodrigues voltou à Fortaleza de Peniche, agora museu, para recordar a sua passagem por aquele espaço de horror como preso político da PIDE. Uma primeira vez como militante do PCP. Depois como dirigente da FAP.

Naquele dia, na ala de alta segurança não ecoava a telefonia. Os presos estranharam. Perguntaram: “Então não há música?” A resposta foi: “O rádio está avariado.” Mais tarde não houve visitas. Acabaram por saber que se dera uma revolução, através da mulher de um dos presos que estava naquele Pavilhão C de Peniche, Rui d’Espinay.

Num primeiro tempo não perceberam bem qual o sentido da revolução e barricaram-se mesmo nas celas; só a 26, quando ouviram os populares a gritar palavras de ordem do lado de fora das muralhas da fortaleza, tiveram a certeza.

O dia 25 de Abril vivido dentro da ala de alta segurança foi ontem recordado no próprio local por um dos que ai o viveram, Francisco Martins Rodrigues, que, aos 77 anos, voltou à fortaleza a convite da revista História, integrando a iniciativa “Passeios na História” durante a qual os visitantes ouviram também contar a história da fortaleza pelo historiador Mariano Calado. Já a apresentação de Martins Rodrigues foi feita pelo historiador João Madeira.

Martins Rodrigues só sairia de Peniche no dia 27 Abril. É que, além do processo político, também foi condenado por “crime de sangue”, ele e Rui d’Espinay tinham morto um infiltrado da PIDE na Frente de Acção Popular (FAP), no pinhal de Belas, em 1965, por este ter estado na base da prisão de João Pulido Valente. Nas mesmas circunstâncias de prisão estava Viegas Aleixo, que, com Henrique Galvão, tomara o paquete “Santa Maria” e depois tinha também ele morto um pide.

De início, a Junta de Salvação Nacional não queria autorizar a libertação dos três. Logo na noite de 26 saem uma série de presos de Peniche, diz Martins Rodrigues ao PÚBLICO:

“Os presos do PC saíram, tendo conhecimento da situação, mas os outros, não sei se seriamos uns 25, fizemos um plenário em que decidimos que não saía ninguém a não ser que saíssem todos. O oficial queria pôr-nos na rua; acabámos por fazer um compromisso e saímos na condição de ficarmos em casa do advogado. Na manhã seguinte voltaram, Spínola tinha levantado condições. Inicialmente, éramos para ir transferidos para a Trafaria. O Viegas Aleixo foi mais chato porque estava preso com os comunistas e ficou cá só.”

Da segunda vez que esteve em Peniche, Martins Rodrigues foi para lá transferido em 1970, depois de quatro anos em Caxias a aguardar julgamento. Aí já tinha rompido com o PCP. Eleito membro do comité central em 1960 e membro da comissão executiva no Interior, com Blanqui Teixeira e Alexandre Castanheira, Martins Rodrigues assume posições críticas radicais em relação à posição da linha cunhalista sobre a guerra colonial, as acções armadas, a orientação soviética e a China. Divergências que resultam em ruptura no comité central, reunião que decorre em Moscovo — onde Cunhal vivia, diz Martins Rodrigues — em 1965.

Martins Rodrigues é enviado para Paris. No Avante! é publicada a sua expulsão, sob a acusação de roubar uma máquina de escrever e alguns francos. Martins Rodrigues não desiste e organiza a FAP e depois o Comité Marxista-Leninista Português, organização tutelar dos grupos de inspiração maoístas dos anos 60 e 70.

O nome proscrito da “grande fuga”

Quando volta a Peniche, nos anos 70, o regime estava mais aligeirado do que quando o conheceu, em 1958, ainda era militante do PCP. “Vim estrear a ala nova”, contou Martins Rodrigues durante a pequena palestra que proferiu aos visitantes. Então, tinha recebido como pena três anos mais medidas de segurança. Mas não a cumpriu. Integrou o grupo da “grande fuga” de 3 de Janeiro de 1960, que tirou de Peniche dez dirigentes e militantes comunistas: Álvaro Cunhal, Carlos Costa, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Miguel, Guilherme da Costa Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, José Carlos, Pedro Soares e Rogério de Carvalho. Uma participação que o PCP apaga dos seus relatos oficiais, por exemplo no livro 60 Anos de Luta, tratando Martins Rodrigues como um proscrito.

A operação recebeu o apoio imprescindível do GNR José Alves, contactado dentro da fortaleza por Joaquim Gomes, para auxiliar numa fuga que lhe foi explicada como sendo para tirar de Peniche apenas Álvaro Cunhal e Francisco Miguel. A este primeiro contacto seguiram-se outros fora das muralhas, organizados pelo PCP, que com José Alves combinou o pagamento em dinheiro.

O regime encontrado em Peniche com a nova ala era de isolamento completo, lembra Martins Rodrigues, que explica que a ala obedecia a padrões prisionais americanos de isolamento e vigilância. Assim, em celas individuais estavam 14 presos, permanentemente vigiados por um guarda da PIDE que guardava consigo a chave da porta da ala para o exterior. Os presos tinham que formar à salda das celas, quando iam tomar as refeições no refeitório da ala. E na primeira fase nem recreio tinham. A introdução de mensagens era nas visitas, escondidas na estrutura dos sacos e cestos. Livros, só alguns. Jornais o mesmo para todos, levado de cela em cela pelo guarda, e onde com um lápis assinalavam com pontos quase invisíveis letras, formando mensagens.

Já depois da transferência de Cunhal para Peniche, em 1959, quando a fuga é organizada, o regime suavizara-se levemente e havia direito a recreios no pátio superior, por onde fugiriam. Nesses recreios, podiam conversar dois a dois, com um guarda da PIDE sempre a segui-los, para ouvir as conversas. É que, com Cunhal em Peniche, a campanha pela sua libertação aumentou a atenção sobre esta cadeia. Na mesma altura que Cunhal é transferido, o Ministério da Justiça passou então a ter um representante em Peniche, que estava na tutela da PIDE como todas as cadeias politicas. E, conta Martins Rodrigues, começou a haver algumas cedências às reivindicações dos presos.

Com tudo a postos, saíram das celas para jantar e, quando voltavam às celas, em grupo, aniquilaram o guarda. Carlos Costa foi quem tratou de o adormecer com o clorofórmio — precisa Martins Rodrigues ao PÚBLICO —, droga que fora introduzida pelo GNR José Alves durante a tarde desse dia por uma janela.

Adormecido e preso numa cela o guarda, os presos abrem a porta e atravessam o pátio debaixo do capote do GNR para depois descerem os dois lanços de muralha com uma corda de lençóis que Martins Rodrigues se lembra de estar a fazer com Cunhal. No largo entra no carro com Francisco Miguel e outros e rumo a Lisboa.

Viverá então um ano escondido numa casa-tipografia clandestina na Pontinha com Joaquim Ferrão Rafael, a mulher e a filha e onde andava descalço porque os vizinhos não podiam perceber que ele lá estava. Depois foi para a Columbano Bordalo Pinheiro, para outra casa, com Fernanda Paiva Tomás, Albina Pato, Joaquim Carreira e outros. Foi aí que dois pides tocaram à porta, pregando um susto a Fernanda Tomás, que teve porém o sangue-frio de perguntar quem procuravam. Afinal, era para o vizinho do lado, relata Francisco Martins Rodrigues, esboçando um sorriso.

Memórias de um preso político na prisão de Peniche

(In revista História a 18/4/2004, autoria de  Ana Pago)

«Não tenho muitos episódios para vos contar, na cela não se passa grande coisa», começou por avisar ontem Francisco Martins Regues, ao voltar à fortaleza de Peniche onde estava preso no dia 25 de Abril de 1974. Mas quando cruzou os portões, a memória fez-se voz. A sua experiência enquanto preso político voltou a incendiar-lhe o rosto. E regressou àquele 3 de Janeiro de 1960, longe no tempo, em que fugiu do terceiro piso com o líder histórico do PCP, Álvaro Cunhal, e outros dirigentes comunistas como Jaime Serra e Francisco Miguel.

Nessa altura, da famosa fuga da Peniche, Martins Rodrigues era do PCP, mas, na década de 60, saiu e formou o Comité Marxista-Leninista Português (CMLP), uma das organizações que, depois, deu origem à UDP.

«Cheguei aqui pela primeira vez em 1958 condenado por três anos a um regime de isolamento completo e castigos permanentes. Vim inaugurar esta ala de alta segurança da cadeia», recorda, escutando uma vez mais «o som agudo dos apitos com que eram dadas as ordens», prontamente obedecidas, sob pena de tortura. «O Guilherme Carvalho chegou a ser castigado por sorrir no refeitório. E na hora de recreio andava sempre um guarda atrás de nós para ouvir as conversas. Por isso dividíamo-nos em grupos: ia cada um para seu lado e era vê-lo a correr atrás de nós, feito louco».

«Tínhamos que sair dali para fora. As coisas aligeiraram um bocado para o nosso lado com a chegada do Álvaro Cunhal, passaram a permitir que os presos desta ala lessem todos o mesmo jornal e era assim que trocávamos mensagens em código», conta o ex-preso.

Planearam, então, a fuga, ajudados por um guarda que já se havia disposto a ajudá-los. Depois do jantar, levantaram-se da mesa para regressar à cela, saltaram com clorofórmio sobre o responsável que os vigiava, amarraram-no. «E passámos a gatinhar para o terraço onde estava o Jorge Alves (o guarda), que nos levou debaixo do capote, um o vim, para uma zona menos exposta. Daí descemos a muralha por uma corda de lençóis e fomos recolhidos por dois carros que nos aguardavam ali perto.»

Voltaria a Peniche na década de 70. «No dia 25 de Abril, quando acordámos, não havia rádios ligados, mas soubemos que tinha havido um golpe de Estado. Ficámos em pulgas! E no dia 26 ouvimos o povo na rua a gritar “Os presos cá para fora” e percebemos», «Foi indescritível», recordou.


Inclusão 24/08/2018