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Primeira Edição: Política Operária nº 91, Setembro-Outubro 2003
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Varela Gomes insurge-se no seu livro Esquerdalhos, renegados e outros bandalhos (ed. do autor, Lisboa, 2003) contra a baixeza dos antigos “esquerdistas” que rapidamente se converteram à nova ordem e se puseram à procura de bons tachos.
Se o seu opúsculo fosse só isto, seria divertido e instrutivo (é conhecida a riqueza informativa dos ficheiros de VG). O problema é que ele pretende transformar esta denúncia num “ensaio de interpretação e desmistificação do fenómeno esquerdista”, num “julgamento ético/político dos esquerdistas portugueses”, e neste verdadeiro ajuste de contas manifesta uma estreiteza de vistas nada marxista.
Com efeito, VG retoma a gasta tese soviética de que a onda “esquerdista” dos anos 60-70 seria simples produto dos “excessos líricos e anarquistas” da “revolução cultural” chinesa, a qual teria contagiado no Ocidente uns bandos de meninos da pequena burguesia, eivados de “ódio militante e virulento ao PCP e à União Soviética” e por isso acarinhados pela reacção, quando não manipulados pela CIA. Não lhe ocorreu procurar as raízes desse movimento na indignação e na revolta mais que justificadas de toda uma geração quando, às lutas revolucionárias que alastravam numa escala nunca vista, no Vietname, em África, em Cuba e por toda a América Latina, a URSS respondia com ofertas de “coexistência pacífica” aos governantes dos EUA, e os PCs “ortodoxos” piscavam o olho à burguesia com a “passagem pacífica e parlamentar ao socialismo”. Sobre isto, o “julgamento ético/ político” de VG não diz uma palavra.
E, naturalmente, se se omite esta deriva bem real para a direita, a reacção esquerdista surge como algo incompreensível e intolerável.
Ora, esses esquerdistas portugueses, que VG insulta com suspeitas de envolvimento com a PIDE e o imperialismo, foram presos às dezenas e condenados pelo fascismo; após o 25 de Abril despertaram a vigilância e o repúdio popular contra a reacção e a exploração; se muitas vezes entraram em conflito com o PCP foi porque este se opunha às lutas não programadas, obcecado pelos “perigos do aventureirismo”; as suas atitudes “sectárias e divisionistas”, que tanto indignam VG, eram em muitos casos o reflexo do sectarismo cego dos militantes do PCP contra eles; a acusação de que teriam “inviabilizado todos os projectos de resistência ao avanço da contra-revolução” do PCP e do MFA torna-se caricata, tendo em conta a dimensão diminuta desses grupos esquerdistas; e também não faz muito sentido querer desclassifiicar a corrente esquerdista por ter tido muitos “trânsfugas” depois do 25 de Novembro, quando se sabe que o mesmo aconteceu e continua a acontecer ao PCP.
Não idealizamos o “esquerdismo”. Sabemos que a campanha “anti-revisionista” do PC da China continha, para além de muitas críticas marxistas acertadas, uma componente burguesa nacionalista e que essa duplicidade se reflectiu pesadamente na corrente internacional pró-chinesa. Foi isso que fez com que, no nosso país, uns tantos grupos “maoístas” (MRPP, PCP(m-l)-AOC, OCMLP) se tenham revelado em 74-75 como activos e conscientes integrantes da direita; foi isso que, mesmo nos outros, deu origem a muitas flutuações e inconsequência. Mas isso não pode apagar o essencial do seu alinhamento: o “esquerdismo” (o autêntico, não o dos “maoístas” social-democratas) foi uma onda avançada como este país há muito não conhecia, a redescoberta exaltante do marxismo como uma imensa liberdade crítica, ao serviço dos despossuídos – aquilo que há muito estava morto nas fileiras do PCP.
Se VG queria entender o “fenómeno esquerdista” deveria ter colocado a si próprio algumas perguntas: porque é que tantos trabalhadores, que admiravam o PC pela sua resistência ao fascismo, mesmo assim davam ouvidos às propostas dos “esquerdistas”, divididos em grupinhos sem qualquer prestígio? Como é que se tornou possível a influência de jovens agitadores de ocasião em comícios e plenários de empresa? Por que mistério as iniciativas vanguardistas se popularizavam rapidamente como rastilho? A greve dos CTT, a primeira, que o PCP tentou desmobilizar e os esquerdistas apoiaram, foi obra da reacção? Eram os “esquerdistas” que transviavam as massas ou eram eles próprios um produto do ascenso do movimento?
O raciocínio que anima a diatribe de VG é, quanto a mim, o seguinte: a “agitação frenética” e a “grande bagunça” dos esquerdistas causou a “desorientação e ineficiência” nas forças que dirigiam o processo revolucionário; os esquerdistas teriam sido culpados por incutir nas massas ambições imprudentes, afastando-as da via bem ordenada que para elas tinham traçado os seus “verdadeiros dirigentes” – o PCP e a ala esquerda do MFA. Mas isto é uma incompreensão total do que seja a revolução. O marxismo de VG filia-se na velha escola da “revolução” arregimentada, que nunca produziu até hoje revolução nenhuma.
Inclusão | 16/10/2018 |