PCP: o Drama do Costume

Francisco Martins Rodrigues

Setembro/Outubro de 2002


Primeira Edição: Política Operária nº 86, Set-Out 2002

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Porquê estes sobressaltos cíclicos que desde há duas décadas abalam o PCP? O que querem os “renovadores”? Num volume recente, Rumo à mudança, editado pela Campo da Comunicação, João Amaral reuniu, para além de artigos e entrevistas já publicados na imprensa (quase todos num estilo “democrático” frouxo e de leitura pouco mobilizadora), umas tantas cartas internas, essas sim interessantes, porque dão pistas sobre o desenrolar do conflito surgido na direcção do partido nos últimos anos.

Embora não seja fácil encontrar as questões políticas em divergência, já que aos “renovadores” não interessa, nesta fase, aprofundar ideias que podem causar uma reacção negativa dos militantes, a sua plataforma lá acaba por aparecer (Programa de Janeiro de 98 de onde saiu o celebrado “Novo Impulso”). Sinteticamente:

  1. o partido deveria deixar de estar sistematicamente contra a construção europeia; “Temos de afirmar sem hesitação que estamos e somos pela UE”;
  2. Deveria ser dada maior atenção ao pessoal dos serviços, aos técnicos, etc., e aos seus novos problemas e valores (ambiente, cidadania...) — e portanto acabar com o “obreirismo” que até agora tem servido de barreira à actualização da linha política;
  3. “O PS não é igual ao PSD”, pelo que deverá ser abordado de forma mais construtiva, ou seja, trabalhar activamente para abrir a porta a uma possível coligação PS-PCP, que a direcção de Carvalhas admite em teoria mas obstrui na prática;
  4. Para o PCP entrar na esfera dos partidos de poder, sem discriminações humilhantes, deve repudiar explicitamente os “crimes de Staline” — termo de código que designa não tanto a condenação do terror policial na URSS dos anos 30-40 como a garantia de que o partido jamais tentará tomar o poder pela força ou pôr a burguesia fora da lei;
  5. Por último, como é óbvio que uma mudança só poderá ter lugar se se afastar a “velha guarda” irreformável, os “renovadores” reclamam o fim dos atropelos à democracia interna, o rejuvenescimento dos quadros do partido, a admissão de candidaturas concorrentes nas eleições internas, etc., e este é naturalmente o campo onde lhes é mais fácil angariar simpatias.

Não se pode dizer que esta plataforma não faça sentido, se pensarmos naquilo que o PCP efectivamente é desde há várias décadas. Porque, para lá das frases de circunstância de uns e outros sobre a sua “fidelidade aos princípios”, as suas “convicções comunistas” e o seu “leninismo”, mero paleio para a geral, a meta estratégica do PCP consiste na entrada para um governo possível (isto é, nos limites da ordem burguesa), que proceda a certas reformas. E como isso pressupõe, obviamente, um reforço da representação parlamentar do partido, e como essa representação não cessa pelo contrário de minguar, eleição após eleição, o desacordo quanto ao modo de preservar o espaço eleitoral do partido instalou-se no aparelho dirigente desde há mais de vinte anos. Essa é que é a causa das divergências. As “actualizações” introduzidas pelo comité central pecam sempre por insuficientes. Cresce o desalento dos militantes. E, neste aspecto, os “renovadores” têm o mérito, se assim se pode dizer, de exprimir em voz alta o que todos no PCP pensam em silêncio: “Por este andar nunca mais vamos para o governo aplicar o nosso programa!”

Amaral e os seus amigos, cansados de esperar pelos prometidos frutos da “coerência” da direcção, alarmados com a sangria imparável de votantes, avisam que o velho espaço eleitoral do PCP se esgotou e se não se encontrar depressa um lugar novo o partido caminha para a extinção. Esse lugar novo passa por despir de vez o uniforme “leninista” e “proletário”, ganhar a confiança das classes médias democráticas e das instituições (nacionais e europeias) — “estabelecer um novo relacionamento com a sociedade”, como propõe sugestivamente o mesmo Amaral numa entrevista. Trilham afinal caminho idêntico ao das anteriores levas “renovadoras”, que na altura tão severamente condenaram.

O pior é que falta aos “renovadores” uma resposta convincente para a pergunta que sempre lhes atira a “velha guarda” — imobilista, obtusa, mas longamente rodada na política: que efeitos irá causar essa mudança de prioridades e de linguagem sobre a base tradicional do partido? quem garante que, ao voltar costas à base operária e sindical, sem dúvida envelhecida e descrente mas ainda assim o sustentáculo do partido, o PCP conseguirá instalar-se numa nova base social intermédia? Ao tomar-se semelhante ao PS, não perderá o PCP a razão de existir? Não se afundará nessa reconversão, como aconteceu a tantos outros, por essa Europa fora? Não é mais seguro esperar que mude esta conjuntura desfavorável e que regressem os que se afastaram?

A discussão é portanto eminentemente pragmática; não tem nada a ver com divergências ideológicas no terreno do marxismo; gira apenas à volta das tácticas mais eficazes para preservar votos e chegar ao governo. É uma guerra de família entre reformistas e não seremos nós a tomar partido por uns ou por outros. Deixamos isso para a malta do PS e do PSD — “solidários” os primeiros com os “renovadores”, em que já vêem um reforço em perspectiva, simpatizantes os outros com os cunhalistas, que ao menos servem para reduzir o espaço eleitoral do PS.

Não é difícil prever que nada de muito novo vai sair deste pequeno drama. Dissipada a ilusão de que poderiam conquistar maioria no comité central e ganhar pacificamente o controle do aparelho do partido, sujeitos ao contra-ataque dos “velhos”, vendo reduzir-se a sua base real de apoio, os “renovadores” queimam os últimos cartuchos antes de serem expulsos e seguirem o caminho dos seus antecessores: uma mais que provável aproximação ao PS, já que nada indica que consigam criar uma corrente autónoma.

Neste dilema insolúvel se vai esgotando o PCP. A direcção, metida na armadilha da sua “coerência”, está condenada a ver reduzir-se-lhe o terreno sem nada poder fazer. Carvalhas, nitidamente cansado do frete a que o obrigam, espera que o rendam no posto e o deixem ir para casa. Os dissidentes, sem uma política própria, vão sendo engolidos pelo PS. Quanto à outra alternativa, por que alguns sebastianistas incorrigíveis e jovens ingénuos ainda esperam — romper com o reformismo pseudocomunista de longa data, retomar o destino revolucionário para que o PCP foi fundado em começos do século passado — essa está inteiramente fora de questão. O cunhalismo teve os seus dias de glória na resistência antifascista mas foi também o melhor antídoto para expurgar o partido de tendências revolucionárias e para o meter nos carris da ordem. O PCP está gasto. Ideias comunistas renovadas terão que vir de outras paragens.


Inclusão 26/08/2019