Festa Estragada

Francisco Martins Rodrigues

Abril de 2000


Primeira Edição: Política Operária nº 74, Mar-Abr 2000

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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 Verdadeiro balde de água gelada foi a reacção dos brasileiros à cena de amor paternal longamente ansiada e ensaiada deste lado do Atlântico, por ocasião dos 500 anos da viagem de Cabral. Houve quem ficasse em estado de choque com o comentário de Caetano Veloso: “O que Portugal veio fazer ao Brasil foi sugar e matar índios”. E quando Jorge Sampaio passar por Porto Seguro, no próximo dia 22 de Abril, vai defrontar-se com uma grande manifestação de repúdio pelas comemorações oficiais, animada por uma comissão que adoptou o nome de “Outros 500”, na base de uma frente comum de movimentos de negros, índios, trabalhadores rurais sem-terra e sindicalistas. Pergunta a comissão: "Comemorar o quê? A invasão?”, e sugere que “a única atitude decente que Portugal poderia tomar seria recusar-se a participar desta farsa”, já que a colonização portuguesa foi directamente responsável pela criação de um país racista.

Todavia, o pequeno chauvinismo português investiu demasiado nesta exibição de orgulho para voltar atrás. E as autoridades insistem em comemorações pomposas que mal disfarçam o fiasco, como aconteceu há dois anos com as da viagem de Vasco da Gama à Índia, escondendo a nostalgia imperial atrás de argumentos ‘científicos” e “humanistas”.

Este e ainda um sentimento muito difundido entre nós. Num artigo recente (Público, 3/3), Miguel Sousa Tavares reagiu com azedume à ingratidão dos brasileiros, incorrendo nas habituais desculpas:

“Não se pode julgar a História pelos padrões éticos contemporâneos”, “não vamos ficar eternamente a pedir perdão pelos crimes do colonialismo”, “não se podem reduzir os males de que padece o Brasil à herança da colonização portuguesa”, “nós também não nos lastimamos da herança que nos deixaram os mouros”…

Levado pelo brio patriótico, chega ao ponto de invocar o papel do padre Vieira (!), a grande honra de o Brasil ter sido a certa altura sede do império português e até os fortes erguidos na Amazónia por iniciativa do marquês de Pombal, com pedras levadas de Portugal…

Sousa Tavares não vê nas suas opiniões “nenhum complexo de colonizador”, mas é esse efectivamente o seu problema. Porque a questão não está em saber quem matou mais índios e negros, se os portugueses enquanto lá estiveram, ou os brasileiros depois de independentes, mas em reconhecer que Portugal fundou ali uma sociedade de apartheid, cujas taras se prolongam até à actualidade. Nem se trata de “pedir perdão pelo colonialismo” mas de chamar, de uma vez por todas, crimes aos crimes e repudiar as mal-cheirosas ficções embelezadoras do colonialismo com que continuam a ser alimentadas gerações no nosso país, tantos anos depois do 25 de Abril. Nem tem cabimento a comparação com os mouros como facilmente entenderia quem não estivesse cego pela paixão patriótica, porque os mouros que aqui ficaram depois da Reconquista ficaram como párias e não como dominadores, que foi o caso dos portugueses no Brasil depois da independência.

O Bloco de Esquerda realiza, por ocasião das comemorações, dois comícios de protesto, um em Lisboa e outro no Porto, com a colaboração de representantes do Movimento dos Sem-Terra. Apoiamos sem reservas esta salutar iniciativa de desmistificação da opinião pública.


Inclusão 06/09/2018