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Primeira Edição: Política Operária nº 62, Nov-Dez 1997
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A propósito de uma semi-autocrítica envergonhada de Álvaro Cunhal.
Publicou há alguns meses a Vértice um artigo em louvor da posição anticolonialista coerente que sempre teria sido a do PCP. Mais cauteloso, concede Álvaro Cunhal, num texto recente que comentamos noutro local desta revista(1), que a “breve abordagem do problema colonial” terá sido “talvez, a principal insuficiência dos documentos do IV Congresso” do seu partido, realizado em 1944. Mesmo assim, insiste em gabar a “contribuição directa e apoio constante à formação, organização e desenvolvimento da luta pela independência dos povos das colónias portuguesas” prestada pelo PCP. Não existe, nem na análise de Cunhal nem no artigo da Vértice, uma palavra para as múltiplas provas de que o PCP, opondo-se ao colonialismo ultra do governo fascista, sempre manteve a porta aberta ao colonialismo da Oposição democrática, fazendo afirmações inequívocas de apoio à dominação das colónias por Portugal. Para não ir mais longe, recordo três artigos publicados nesta revista (P. O. nº 56, 57 e 60), nos quais documentei abundantemente o uso que o PCP fez da questão colonial como força de reserva ao serviço da sua política de Unidade anti-salazarista, e isto não de forma esporádica, mas permanentemente, ao longo de décadas.
Em complemento a esses artigos e em atenção do prudentíssimo Álvaro Cunhal e do distraído articulista da Vértice, recordo hoje mais algumas provas do “anticolonialismo intransigente” do PCP, desta vez no caso de Timor.
Em Dezembro de 1941, no seguimento da guerra mundial no Pacífico, tropas australianas e holandesas ocuparam Timor-Leste. Salazar, que fazia o jogo das potências do Eixo, veio dias depois protestar na Assembleia Nacional contra esse “atentado à soberania nacional”.
Como reagiu a direcção do PCP? Ao tomar posição sobre os acontecimentos num manifesto difundido nesse mesmo mês, atacou a hipocrisia de Salazar mas para concluir que a política deste “ameaça fazer perder Timor”. Esta posição era inadmissível num partido comunista, visto que equivalia a reivindicar para Portugal o direito a conservar as colónias.
No mês seguinte, o Avante nº 6 era ainda mais explícito ao classificar a ocupação australiana de Timor como “atentória da integridade territorial de Portugal”, parecendo não se aperceber de que usava quase as mesmas palavras de Salazar. Em Março do ano seguinte, o Avante nº 8 voltava à carga contra a “política de traição que fez perder Timor”. A ilha fora entretanto ocupada por tropas japonesas e os dirigentes do PCP visivelmente queriam mostrar à opinião democrática que partilhavam o amor por esse pedaço do Império.
Que esta onda patrioteira não foi fruto de inclinações oportunistas ocasionais na direcção do partido (Júlio Fogaça era então o responsável pela imprensa) prova-o uma nova tomada de posição do Avante (nº 62, de Setembro de 1944) sobre Timor, quando o responsável da redacção e secretário principal do partido era já Álvaro Cunhal. Depois de noticiar a cumplicidade das autoridades portuguesas com os ocupantes japoneses, escrevia o Avante: “Os antifascistas e patriotas que lutam pela liberdade e independência não esquecerão os nomes dos traidores de Portugal”. Mais uma vez, não havia uma palavra para o direito do povo timorense à independência, contra japoneses, australianos, holandeses e… portugueses.
De resto, a perspectiva geral do PCP sobre a questão colonial foi sintetizada nesta época pelos “9 Pontos-Programa” propostos pela direcção do partido aos agrupamentos da Oposição. Nesse documento, divulgado no Avante nº 29, de Março de 1943, e a que já me referi num artigo anterior (P. O. 60), propunha-se, como política de um futuro Governo Democrático de Unidade Nacional, a “aliança livre com os povos coloniais”, expressão bem-soante que omitia o essencial: o prévio abandono pelos portugueses de todos os direitos, prerrogativas, privilégios e propriedades adquiridos por ocupação militar e esbulho, e a reparação aos povos vítimas de escravização secular. Com a fórmula aparentemente progressista da “aliança”, a direcção do PCP dava a entender à burguesia anti-salazarista que não viria a lutar pelo desmantelamento do Império e estava, pelo contrário, disposta a colaborar na sua actualização, necessária após a derrota do campo nazi-fascista na guerra mundial.
Estes são os factos. Perante eles, lamentar “o atraso por parte do PCP em escrever a sua própria história”, como faz Cunhal no livro referido, é pura hipocrisia. O PCP é incapaz de escrever a sua história porque está confrontado com inúmeros factos que não pode negar nem se atreve a reconhecer. O que só comprova o que vimos afirmando: o PCP nada tem de um partido comunista e é, de há muito, um partido especializado em veicular os pontos de vista e os interesses da pequena burguesia para o seio do movimento operário.
Notas de rodapé:
(1) O Caminho para o Derrubamento do Fascismo. Informe Político do CC ao IV Congresso do PCP, Álvaro Cunhal. Cadernos para a História do PCP, nº 6. Edições Avante, Lisboa, 1997. (retornar ao texto)
Inclusão | 10/06/2018 |