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Primeira Edição: Política Operária nº 46, Set-Out 1994
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
O carácter “ diferente” da operação Haiti parece indiscutível ao cidadão comum: desta vez trata-se de afastar um ditador sanguinário para repor no poder um democrata livremente eleito. Mas as aparências iludem…
O desembarque dos marines para expulsar a junta de militares-gorilas que há três anos aterroriza o Haiti aparece a muitos como uma louvável autocrítica da administração Clinton em relação ao passado apoio dado aos golpistas. Se há um reparo a fazer, dizem, seria à demora de Clinton em passar das palavras aos actos.
Ora, o Departamento de Estado só promoveu o regresso do padre Jean-Bertrand Aristide depois de se assegurar da sua obediência incondicional. Personagem fraco e irresoluto, Aristide já “aprendeu a lição” e sabe que não está autorizado a discursos que incendeiem o “ódio de classe”. Segundo e isto é o principal —, os trabalhadores que tentaram através da candidatura de Aristide, instaurar as liberdades democráticas no país já foram convenientemente “desbastados” pela repressão dos militares (três a cinco mil mortos nos últimos três anos). Se, apesar de tudo, a população tentar aproveitar a invasão para aniquilar os reaccionários, os marines lá estão para impedir os “excessos”. Foi o que comunicou desde logo, com cínica crueza, o secretário norte-americano da Defesa, W. Perry: se houver distúrbios civis e motins, os marines serão forçados a reprimi-los a fim de evitar a desordem. A operação visa pois mais o povo do que o ditador Cédras.
Só mesmo nesta época há quem acredite que a democracia se pode restabelecer através de uma invasão. Se os EUA tivessem algum interesse na consolidação da democracia no Haiti, ajudariam, do ponto de vista político, financeiro, militar, a resistência do próprio povo haitiano hipótese tão absurda que só enuncia-la equivale a pô-la de lado. A verdade é que o fim do embargo e o retorno a uma “democracia moderada e responsável” é agora vantajoso para os negócios ianques, tal como no Chile depois de Pinochet ter cumprido a sua tarefa de carniceiro.
Mas a “normalização” do Haiti visa um outro alvo muito mais importante: Cuba. Desde que a Rússia capitulou e deixou de sustentar a ilha “socialista”, a “recuperação” de Cuba tornou-se para os estrategos norte-americanos uma tarefa na ordem do dia. Segundo um estudo do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais dos EUA, divulgado em 22 de Dezembro último, Washington deveria enveredar por «uma diplomacia mais activa, utilizando a cenoura e o cacete», a fim de forçar o regime de Fidel Castro a aceitar eleições com participação dos exilados em Miami, numa mascarada “democrática” semelhante à que levou à liquidação do regime sandinista na Nicarágua.
Com este objectivo, acelerou-se o estrangulamento económico da ilha com o agravamento do embargo (lei «Torricelli»), o qual já levou à paralisação de 80% da capacidade industrial do país por falta de combustível. A vida torna-se insuportável devido ao racionamento de produtos essenciais. As tentativas de Fidel Castro para conseguir apoios externos, inclusive à custa de cedências de toda a ordem, se lhe granjearam algumas divisas, custaram-lhe a perda de apoio popular e novos passos na decomposição do regime.
E se havia esperanças de conseguir simpatias no exterior que forçassem ao levantamento do cerco ianque, a prova está feita. Com raras excepções, governos, parlamentos, intelectuais, acompanham com frieza a agonia do regime. O feroz consenso internacional é: “Fidel está a mais”. Castro é culpado por “teimar em continuar no socialismo, sem querer saber das privações económicas a que sujeita o seu povo”; ou seja, por desobedecer aos EUA.
A esta hora, Fidel já deve ter percebido que a vaga de “balseros”, em vez de encostar Clinton à parede e forçá-lo a negociar e a fazer algumas concessões, funcionou ao contrário. O saldo da crise foi a concentração em Guantánamo, no próprio território de Cuba, de dezenas de milhares de cubanos desafectos ao regime. Existem agora todas as condições para a CIA organizar uma provocação, dando lugar a incidentes sangrentos que lhe forneçam o pretexto para mais uma intervenção “humanitária.
A “solução final do problema cubano” poderá arrastar-se ainda por algum tempo e tomar uma ou outra forma. Mas o desenlace será o estabelecimento dum regime antipopular de capitalismo selvagem, aberto ao investimento americano. É esse o único “ideal” americano em jogo.
Inclusão | 06/09/2018 |