O Fim da Esquerda? Ainda não é desta

Francisco Martins Rodrigues

Junho de 1991


Primeira Edição: Política Operária  nº 30 Maio-Junho 1991

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


[...] para o Expresso e de que foram publicados extractos na edição de 31 de Agosto.

Acho compreensível que haja quem queira enterrar à pressa a esquerda juntamente com o cadáver da União Soviética, mas terão que ter paciência, ainda não vai ser desta. O fantasma do comunismo é teimoso.

Aquilo que se afunda debaixo dos escombros da URSS é a corrente que vivia à sua sombra e com ela veio apodrecendo. Essa sim, acaba. Não é difícil prever que o PCP tem os dias contados. Nem todo o seu passado de luta antifascista, nem toda a obstinada convicção do Dr. Álvaro Cunhal poderão evitá-lo. E ele sabe-o — senão não se teria agarrado com tão patética precipitação à esperança num golpe nado-morto lançado por uma clique agonizante.

A URSS e os seus fiéis há muito que não tinham nada a ver com esquerda, revolução, comunismo, marxismo-leninismo. Mas eram um estorvo (ainda que vacilante, contraditório, decadente) ao domínio universal da grande finança. Daí a sua queda provocar esta obscena explosão de regozijo, com democratas feitos à pressa a darem-nos lições de direitos humanos enquanto celebram os valores eternos da livre exploração do trabalho assalariado.

Eu sei que é duro ver os americanos impor ao mundo a sua “nova ordem” enquanto os russos aplaudem o sinistro Ieltsin e rezam nas missas. Mas a verdade é melhor que todos os enganos. Algum dia os trabalhadores portugueses teriam que descobrir que não havia nenhum campo socialista. Quando se curarem do desgosto, os seus interesses de classe fá-los-ão partir de novo em busca da esquerda.

É claro que não estou a falar da grande maioria dos membros do PCP, “ortodoxos” ou “dissidentes”, envolvidos numa discussão fútil de comadres; uns e outros estão mais do que maduros para se passar garbosamente para o campo da social-democracia. Andam há tantos anos a clamar pela “estabilidade democrática” e pela unidade com o PS que não lhes vai ser muito difícil…

Quer dizer que o PS vai ser o grande beneficiário desta derrocada? Também não creio. Vejo tanto futuro ao projecto de “recomposição da esquerda” sob a égide do Dr. Sampaio como à famigerada “democracia de sucesso” do Prof. Cavaco. E isto por uma razão simples: podem-se manipular trabalhadores desmoralizados mas não se consegue atrelá-los por muito tempo à gestão dos negócios do capitalismo.

Enfim, não há nesta triste história nada que nós, os comunistas revolucionários (fora do PC!), não tivéssemos previsto há dúzias de anos. Dissemos que o chamado “socialismo” era apenas um capitalismo larvar, formado sobre o aborto da revolução e abrigado no seu casulo estatal, mas condenado a agonizar enquanto não saísse à luz do dia. A borboleta aí está, e não é mais bonita do que a larva.

Feitas as contas, a “revolução democrática” na Rússia, que não é revolução nem democrática, tem mesmo assim as suas vantagens: põe termo a uma longa agonia e a um grande mal-entendido. Agora já se vai poder falar de novo em comunismo.

Eu sei que num momento destes isso parece absurdo para o senso comum, alimentado com o medo da América e as lorpas deduções dos ideólogos de serviço. E no entanto é verdade: o comunismo vai voltar a estar na ordem do dia. A linha de continuidade com o marxismo e a revolução russa de 1917, há muito quebrada, já pode ser reatada.

E por favor poupem-nos as risadas (ou as lágrimas de crocodilo) sobre “o fim da utopia colectivista”. Haverá utopia mais absurda do que imaginar que a propriedade privada pode sobreviver à maré do trabalho assalariado com que inundou o mundo?


Inclusão 06/09/2018