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Primeira Edição: Política Operária nº 24, Mar-Abril 1990
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A passagem do 15.° aniversário do 11 de Março deu lugar a um espectáculo que só não chocou ninguém porque já faz parte dos hábitos políticos nacionais: a gente de direita, que durante todo este tempo tinha protestado indignada que não houvera nessa data nenhuma tentativa de golpe e que fora tudo uma montagem ou um exagero dos comunistas para assaltarem o poder, veio agora confirmar, com tranquila insolência e até vangloriando-se, todos os pormenores da conspiração, o papel de Spínola, os planos de guerra civil, a intervenção dos serviços secretos estrangeiros — tudo! Tudo aquilo que a esquerda tinha proclamado em vão durante anos e anos é agora posto a nu, com a maior desfaçatez, pelos visados.
É possível que esta tardia reposição da verdade encha de orgulho melancólico Cunhal, Otelo ou Vasco Gonçalves: finalmente, a História terá que reconhecer que foram democratas fiéis ao povo e vítimas das calúnias da reacção. Só que essa desforra moral não adianta nada ao nosso destino colectivo, traçado para longos anos naquele episódio; por isso mesmo a burguesia já não se dá ao trabalho de esconder a verdade.
A História incomodar-se-á pouco a saber no futuro se em 75 Cunhal foi mais honesto do que Spínola. O que a História perguntará (está já perguntando) é: o que fez no 11 de Março a esquerda? Aproveitou o passo em falso da direita, a vacilação, incompetência e cobardia de que os conspiradores deram provas, para lhes aplicar um golpe demolidor? Ou, pelo contrário, a esquerda teve medo de derrotar a direita?
A pergunta pode parecer mal-intencionada. Existe até hoje a opinião generalizada de que a esquerda militar, o PCP e as franjas “esquerdistas” tiraram amplo partido do fiasco direitista do 11 de Março, avançando de maneira fulminante com as nacionalizações, as Assembleias do MFA, a Reforma Agrária, o “poder popular” — o extremismo gonçalvista. Mas esta ideia só se mantêm devido à tacanhez reformista com que a luta de classes ainda hoje é vista entre nós. Se as forças que conduziam o processo quisessem ripostar ao golpe taco-a-taco teriam metido os golpistas na prisão, desarticulado as suas organizações, desmascarado as cumplicidades de Mário Soares e Sá Carneiro, mandado retirar o embaixador Carlucci, armado as comissões de trabalhadores — numa palavra, teriam aprofundado a revolução em actos e não apenas em decretos ou discursos.
Seria um desafio arriscado, pois que dúvida? Mas todo o jogo que se estava jogando desde a queda do fascismo era arriscado e só tinha hipóteses de vitória se avançasse audaciosamente de etapa em etapa. E, a seguir ao 11 de Março, havia condições para um salto em frente com o apoio dos trabalhadores. Ora, não foi nada disso que se fez. Tomaram-se contra os conspiradores apenas as medidas estritamente obrigatórias para aquietar o povo. E manteve-se, com lisura cavalheiresca, o calendário eleitoral que fora acordado, quando todos os indícios mostravam que a esquerda correria um risco mortal em submeter-se a eleições quando o controlo do poder não estava definido e a direita, longamente enraizada em meio século de fascismo, se entrincheirava nos novos partidos “democráticos” para voltar ao contra-ataque.
Só por debilidade mental (ou não seria por manhoso cálculo capitulacionista?) podiam os chefes oficiais da esquerda considerar-se obrigados á “cumprir a palavra” e submeter-se ao escrutínio popular, apenas mês e meio após a tentativa golpista. Uma esquerda digna desse nome, disposta a conduzir os trabalhadores a uma vitória real, teria assumido o adiamento das eleições como o seu direito indiscutível até ter levado a cabo as transformações económicas e sociais urgentes para decidir a batalha.
Mas os nossos mentecaptos líderes “revolucionários” acharam mais nobre jogar os destinos do movimento popular nessa eleição. Se esperavam que o povo reconhecido votasse massivamente no PCP, no MDP ou no MES, tiveram um desgosto. A grande maioria inclinou-se para os partidos “moderados” e mesmo para os “defensores da ordem”, ou seja, os pontas de lança legais da contra-revolução. Mas que outra coisa seria de esperar quando a pequena burguesia vivia no receio pela segurança da propriedade e quando a frouxidão da esquerda não permitia a formação dum pólo revolucionário decidido?
Com a previsível vitória eleitoral do PS e do PSD em 25 de Abril de 75 agravou-se em vez de se clarificar o quadro da luta de classes. A situação entrou em derrapagem à direita, oculta durante alguns meses pelas leis radicais, pelas manifestações para meter medo e pelos discursos inflamados, mas só para cobrir uma impotência irremediável. De facto, a direita jogava com a força moral que resultava da vitória eleitoral e exigia o direito a formar governo. A posição dos “esquerdistas” tornou-se insustentável: com que autoridade se mantinham como detentores do poder, se tinham feito as eleições e reconhecido os seus resultados? E é claro que um número crescente de oficiais do MFA achava esta lógica irrespondível.
Assim, depois de Vasco Gonçalves ter esgrimido com as suas leis “revolucionárias”, destinadas, na sua débil cabeça, a funcionar como uma “muralha de aço” contra a reacção, teve que se retirar, apeado vergonhosamente por intimação dos seus camaradas oficiais no pronunciamento de Tancos e abandonado por Cunhal, esse estratego das batalhas adiadas. O que veio depois até ao 25 de Novembro não foi mais do que o epílogo desta triste comédia “revolucionária”.
Inclusão | 02/10/2018 |