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Primeira Edição: Diário de Lisboa
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Arrolado por Alfredo Margarido na lista das vítimas do PCP («DL» de 26 de Março), acho necessária uma rectificação e, já agora, se me for permitido, um desabafo.
Saiu efectivamente num «Avante» de 1965 uma noticia denunciatória contra elementos da FAP na clandestinidade, mas a minha prisão e as dos meus camaradas em 1965/66 não podem ser atribuídas a esse facto. Não vejo, pois, razão para me incluírem numa qualquer lista de vítimas do PCP.
Digo mais: não vejo como se possa fazer essa lista. Se é certo que algumas injustiças foram cometidas e que um membro da direcção do PCP foi morto em 1952 por suspeita de que fosse informador da PIDE, o quadro que A.M. pinta, dos «carrascos» do PCP abatendo «nos caminhos dos pinheirais» os próprios camaradas, em «festins antropofágicos», é um mau folhetim.
Se Alfredo Margarido não se tivesse contagiado pela emulação anti-PC que por aí vai, teria notado que as suas acusações só revelam involuntariamente a má consciência dos democratas deste País, que ainda não conseguiram explicar por que não se organizaram em partidos clandestinos para lutar contra o fascismo, como fez, melhor ou pior, o PCP.
Porque a verdade é que os partidos democráticos se mantiveram em hibernação durante a «longa noite fascista» e foi preciso o medo ao «populismo» de 75 para se estruturarem. Aquilo que não tinham sabido fazer em meio-século de ditadura de direita aprenderam-no em meia dúzia de semanas de agitação dos trabalhadores. Não nasceram contra a direita, nasceram contra a esquerda. Talvez por isso a nossa jovem democracia tenha saído tão sifilítica.
Eu não tenho dúvida de que se o PCP alguma vez tivesse chegado ao Poder procederia como os seus camaradas do Leste, por muito que o dr. Álvaro Cunhal jure que não. E isto, não porque os partidos impropriamente chamados de «comunistas» tenham diabólicos projectos ditatoriais, mas porque teimaram em levar à prática uma pretensa descoberta sua, a revolução «democrático popular», comum aos operários e à pequena burguesia: com esta correcção a Lenine (e com as sucessivas inovações com que foram retocando a obra ao longo dos últimos trinta anos) julgavam poder fintar a luta de classes e caminhar mais depressa para o socialismo. O resultado é conhecido: passados os primeiros entusiasmos, essa meia revolução não satisfaz ninguém; impede o estabelecimento do poder dos operários como o da burguesia e é obrigada, para se sustentar, a reprimir à esquerda e à direita, a meter na ordem a burguesia e o proletariado, a governar contra todos. Até cair de podre.
Costumava dizer-se que o marxismo se vinga dos seus deturpadores, imbecilizando-os. Com a possibilidade que estes tiveram de subir ao Poder, podemos completar a fórmula: ao «humanismo» evangélico, untuoso e sacristão que exibem antes de chegar ao Poder, sucede a vocação policial-burocrática quando se apanham no Poder. E, tanto antes como depois, a senilidade ideológica, disfarçada sob uma paródia de marxismo-leninismo.
O PCP é um destes híbridos, um partido que julgou dispor de todas as vantagens se soubesse situar-se a meio caminho entre o comunismo e a social-democracia, agradar aos operários e aos engenheiros. Saiu-lhe mal a esperteza porque se tornou imprestável, tanto para a revolução como para a gestão reformista do regime. E agora vai ter que se reciclar como partido do sistema. Mas, com toda a franqueza, preocupa-me muito mais o revanchismo dos democratas que estão no Poder do que as malfeitorias que poderiam ter sido cometidas pelos falsos comunistas portugueses se por acaso tivessem chegado ao Poder.
Soa-me muito mal este despique de acusações purificadoras, este ambiente de «vale tudo» que alastra com o colapso dos regimes de Leste. Os mortos de Timisoara foram oitenta? Publique-se que foram 80 mil! A fome na Hungria, Polónia, Roménia começou com os empréstimos da banca ocidental? Diga-se que é fruto da estatização totalitária! O povo da Nicarágua, exausto por dez anos de massacres e boicote económico, convenceu-se a votar bem na candidata patrocinada pelos EUA? Louve-se a sua «livre escolha democrática».
Pergunto: aqueles que exultam com o «fim dos totalitarismos» terão a noção da máquina totalitária em que estamos metidos? Diferente da outra, oh, sim, com partidos e eleições, mas não menos totalitária.
Ainda agora a superpotência de quem somos satélite obediente invadiu um país e fez mil ou dois mil mortos (ainda não tivemos direito a saber ao certo), argumentando tranquilamente que se tratava de prender um traficante de droga, seu antigo agente secreto! E todos se calaram prudentemente, quando não tiveram baixeza de felicitar os invasores!
Na Guatemala, na Colômbia, no Salvador, no Peru, esquadrões da morte treinados, enquadrados, pagos pela CIA, às ordens do presidente Bush, torturam, queimam, estripam sindicalistas, camponeses, professores, padres, para impedir que o povo se liberte. E Bush vai dando os seus pareceres avisados sobre direitos humanos!
É costume as pessoas descartarem-se deste cortejo de horrores, chamando à sua denúncia «opiniões ideológicas», é uma maneira de dizerem que se recusam a tomar conhecimento do que possa pôr em causa a sua lealdade a este sistema. Mas não era exactamente isso que o PCP fazia com o Leste e que agora lhes merece tantas censuras?
Esta ofensiva odienta contra os PCs em desintegração seria incompreensível se não tivesse um objectivo mais sério: a imagem de revolução, de comunismo, de marxismo-leninismo que eles ainda encenavam aos olhos dos trabalhadores. Aí é que se concentra o fogo dos nossos democratas. O verdadeiro mal, avisa Alfredo Margarido, reside no marxismo-leninismo, porque «no interior do ventre marxista-leninista há sempre um paredon que dormita».
Com esta frase bombástica quer ele dizer «Cuidado com a revolução, que só traz desgraças!» Velha mensagem! Só que, mesmo refazendo a História deste século, vai ser difícil culpar o marxismo-leninismo pela 2.ª Guerra Mundial, Hiroxima, Coreia, Argélia, Vietname, Chile, Argentina, a fome de África... e isto para só falar nos principais paredóns do capitalismo.
Mas tudo bem! Aproveite-se a agonia do abortado «socialismo» antioperário para perfumar o cadáver podre do capitalismo. Quanto mais completa e desbragada for a guinada à direita deste fim de século, mais energias serão acumuladas para a próxima guinada à esquerda. Com o marxismo-leninismo, espero bem.
Inclusão | 10/06/2018 |