Ânsia de Liberdade

Francisco Martins Rodrigues

Novembro/Dezembro de 1987


Primeira Edição: Política Operária nº 12, Nov/Dez 1987

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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capa

“O FUTURO RADIOSO”, de Alexandre Zinoviev. D. Quixote 1987.

“Desde que Soljenitsine conseguiu ser uma celebridade mundial, um intelectual em cada três pôs-se a escrever coisas anti-soviéticas ou está a preparar-se para isso”. Com este desabafo que põe na boca do seu personagem, A. Zinoviev resume o seu próprio caso. Viajou para o Ocidente para poder contar ao mundo como é execrável o modo de vida soviético. Mas, embora se dedique a explorar o filão, ainda não conseguiu tornar-se uma celebridade como Soljenitsine. Talvez por falta de talento literário, talvez pelas indigestas tiradas ideológicas com que recheia os seus livros.

O futuro radioso pretende ser uma sátira demolidora ao meio dos funcionários-intelectuais de Moscovo nos anos 70, em pleno brejnevismo. Fala-nos de gente da classe média, embrutecida, cínica e mesquinha, agachada perante o poder. Ninguém vale nada, impera um carreirismo desbragado, “existe uma luta geral e violenta pela obtenção de privilégios”.

Desta morna baixeza extrai Zinoviev a sua filosofia, repisada ao longo do livro até à exaustão: o comunismo já existe, é este nojo; o futuro radioso da humanidade não passa dum engano gigantesco; o marxismo não fornece explicação racional para nada, é uma construção ideológica criada pela parte mais medíocre da sociedade para seu proveito próprio; etc., etc.

A isto se reduz a bagagem ideológica de Zinoviev que, como todos os bons dissidentes, não se esquece de achincalhar de passagem a revolução de 1917, admirar as “liberdades” do Ocidente e fazer o seu namoro à religião — a miséria do costume.

O que não significa que o livro não tenha interesse para quem quer compreender a sociedade soviética actual. Pelo contrário. Aquilo que Zinoviev desvenda involuntariamente é a raiz da atracção pelo Ocidente que domina as camadas médias soviéticas, a sua ânsia de imitação, o seu sentimento de inferioridade perante as “luzes” do mundo capitalista.

Inveja dos bens de consumo a que não têm acesso, das maiores oportunidades de “subir na vida”, da maior liberdade cultural? Sem dúvida. Mas tudo isto são parcelas duma reivindicação mais profunda — o direito à emancipação política.

Forçados a condenar a propriedade privada (com que sonham), obrigados a celebrar a mentira gigantesca da “sociedade sem classes” e da “construção do homem novo”, os novos burgueses soviéticos sentem-se asfixiar. Já não aguentam ter de renegar diariamente os seus próprios valores. Anseiam pelo dia em que possam afirmar o seu direito a existir como classe.

Essa obrigação intolerável de continuar a declarar fidelidade ao que já não existe, como quem fica o resto da vida a velar um morto, é a origem da náusea em que se debatem os personagens de Zinoviev. A descrença de que algum dia possam viver numa sociedade burguesa normal é a fonte da sua amargura rancorosa.

E isso consegue o livro retratar. Vale a pena ler o episódio grotesco da redacção dum novo manual sobre a “metodologia do comunismo científico”, que serve de pano de fundo à história.

Manejos e intrigas entre académicos em busca de promoção resultaram na decisão de redigir uma nova cartilha oficial. Durante meses a fio, batalhões de “especialistas em ideologia marxista-leninista” consomem-se num esforço épico, correndo para as reuniões de secções, comités e sub­grupos, escrevinhando relatórios, notas e observações, revendo e polindo sem fim as fórmulas “científicas”, não vá escapar alguma ideia original, até o texto ficar pronto para publicação: seis meses para elaborar o plano geral da obra, mais seis meses de redacção parcelada em subcapítulos (é a tarefa dos escribas de serviço, pagos à hora), ainda seis meses para juntar e refundir tudo de novo; apreciação pelos órgãos competentes do Comité Central; nova refundição geral… E toda esta sórdida mastigação, pomposamente alcunhada de “trabalho colectivo”, para disfarçar o abismo entre a vida real e os elevados princípios proclamados.

Compreende-se que Zinoviev não suportasse mais tanta hipocrisia e tenha buscado refúgio num mundo em que pode finalmente ser franco. De qualquer modo, se tivesse sido mais esperto e menos impulsivo estaria hoje a gozar em Moscovo as primeiras alegrias da transparência – ainda só um primeiro passo, é certo, mas já um passo no caminho que levará a nova burguesia soviética a desenvencilhar-se do colete de forças “marxista” em que sufoca.


Inclusão 10/06/2018