Um Guerrilheiro em Apuros

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 1987


Primeira Edição: Política Operária nº 10, Mai-Jun 1987

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Se querem divertir-se a valer, leiam as aventuras e desventuras deste infeliz chefe da segurança do PS, vítima da sua dedicação às instituições (O Processo das Armas, Edmundo Pedro, Editorial Inquérito, 1987).

 Edmundo Pedro é aquele operacional desastrado que esteve preso em 1978 por ter sido apanhado com um lote de espingardas que lhe tinham sido distribuídas por Eanes no 25 de Novembro, e que foi na altura acusado de toda a espécie de falcatruas.

Amargurado com a injustiça de que foi vítima, resolveu-se finalmente a quebrar o silêncio e a pôr a história em pratos limpos. Uma história que vem na altura própria porque é o contraponto mais instrutivo aos 500 anos de cadeia aplicados aos presos do caso FUP/FP-25. A farsa vem completar o drama.

Eis os factos, como Edmundo Pedro os relata: no Verão quente, quando os seus camaradas fugiam como coelhos, apavorados com os desmandos da vanguarda revolucionária, ele meteu-se em brios e quis mostrar que ainda havia socialistas capazes de arriscar a pele na defesa da ordem. Foi a reuniões secretas com Eanes e Garcia dos Santos; recebeu das mãos de Eanes um plano de operações de sabotagem e guerrilha urbana; recebeu material roubado ao Exército — emissores-receptores, fornecidos por Garcia dos Santos (na altura secretário de Estado do VI Governo provisório) e, na própria noite do 25 de Novembro, em Cascais, 150 espingardas mandadas entregar por Eanes: formou grupos de civis, distribuiu-lhes as armas e ficou à espera das ordens para entrar em acção.

A contraguerrilha do comandante Edmundo Pedro não chegou a actuar, pela simples razão de que não havia guerrilha a combater. De toda a maneira, consolidadas as instituições, o nosso homem sentia-se de bem com a sua consciência e não achava nada de mais terem-no promovido a dirigente do partido, deputado e presidente da RTP.

Eis senão quando, a direita, interessada em desestabilizar o PS e desalojá-lo do poder (acabara justamente de cair o governo de Mário Soares), lançou-se na pista das armas desviadas e conseguiu que o atarantado Edmundo Pedro fosse caçado pela Guarda Fiscal com a boca na botija, quando tentava transferir umas tantas espingardas para um esconderijo mais seguro.

Preso, alvo de uma campanha desenfreada de acusações por parte do Jornal Novo e do Expresso, Edmundo Pedro sentia-se naturalmente abatido, mas sem medir ainda todo o aperto da alhada em que estava metido. As armas, declarou ao juiz, tinham-lhe sido entregues no 25 de Novembro por oficiais que não desejava nomear e destinavam-se a ser devolvidas, como de resto já fizera anteriormente com dois outros lotes. O assunto era delicado e melindroso e não devia ter publicidade.

O pior foi quando aqueles que tinham obrigação de o defender trataram de sacudir a água do capote. Eanes, então Presidente da República, emitiu um comunicado sorna, reconhecendo que as armas tinham sido distribuídas durante o estado de sítio, mas não esclarecia que estavam em curso encontros regulares entre Edmundo Pedro e o general Galvão de Figueiredo para a devolução do material, nem confirmava que os números de registo das armas tinham sido raspados por ordem sua; em vez disso, para se cobrir perante a direita, dava a entender que Edmundo Pedro fugia a devolvê-las, apesar de intimado a fazê-lo!

E o PS? O PS, que promovera o negócio e que mandara Manuel Alegre a negociações secretas com Eanes, já desde antes do 11 de Março; o PS, que recebera as armas nas suas sedes na noite fatídica e as distribuíra por duvidosos capangas da segurança, como um tal Centeio Maria — o PS teve o arrojo de reprovar em comunicado “um comportamento de que não tinha conhecimento e a que é em absoluto alheio”!

Calculem agora as angústias do infeliz Edmundo, tendo de se haver sozinho com um juiz, simplesmente casmurro ou feito com a direita, que teima em que “foi apanhado com armas de guerra, tem que levar pena maior ”!

Quando Edmundo Pedro está à beira de um colapso nervoso, Mário Soares, visita-o à socapa na cadeia e pede-lhe que não conte os pormenores, porque se há-de arranjar uma saída. Por fim, após seis meses de negociações e cambalachos, um juiz da Relação, mais compreensivo do que o outro,convence-se a abafar o caso e a libertá-lo.

O pior estava passado. Mas ao fim de todos estes anos, o nosso homem ainda não se conformou com a partida que lhe pregaram. Primeiro, ninguém cuidou de reabilitar o seu nome de patriota e ficaram no ar suspeitas de traficâncias várias (que ele tenta rebater no livro com explicações minuciosas mas não muito convincentes). Segundo, depois dos suores que lhe fez passar, o general Eanes teve o desplante (ou a estupidez caserneira, apenas?) de lhe mandar perguntar se queria encarregar-se de recuperar o resto das armas em falta! Por último e para cúmulo, a Direcção de Combate ao Banditismo da PJ começou agora a ameaçá-lo com novos processos pendentes se não desencantar as G3 ainda tresmalhadas.

Compreende-se assim que Edmundo Pedro, farto de fazer o papel do mexilhão para salvar a honra das instituições, tenha perdido a paciência e se tenha decidido a passar a batata quente. Conta tudo. ou quase tudo, sobre o negócio das armas, ajudando a perceber melhor porque é que Eanes e Soares se tornaram como cão e gato. Lá vem a fotocópia do plano manuscrito que lhe foi entregue pelo estratego amador Ramalho Eanes, ordenando “golpes de mão ” contra quartéis, esquadras da polícia e emissoras de rádio e nem sequer se esquecendo de recomendar que “se explorem os sentimentos religiosos do povo” para criar ambiente favorável ao golpe. Lá vêm as implicações de Manuel Alegre na conspirata, como chefe do sector de segurança do PS. Lá vem a proposta, ao que parece muito recente, dum inspector da Judiciária para a devolução clandestina das armas no parque de Monsanto. E nem sequer lhe falta, para tornar a história ainda mais apimentada, a tola designação do plano golpista como “projecto global”, cinco anos antes daquele que levou Otelo a amargar a pena de 15 anos de cadeia…

O verdadeiro golpe do 25 de Novembro, o da social-democracia aliada à direita, que na altura só a UDP e poucos mais se atreveram a denunciar, já não é hoje segredo para ninguém. Teve já mesmo honras de um relato oficial pelo jornalista Freire Antunes. O mérito do livro de Edmundo Pedro está contudo em lhe pôr a descoberto com crueza involuntária os lados mais sórdidos. Edmundo Pedro ainda não percebeu que há coisas que se fazem mas que não se dizem. E interroga-se, com ingénua perplexidade, ao longo das 300 páginas do seu testemunho: porque é que os militares e o PS, em vez de se orgulharem pelo episódio das armas roubadas, teimam em querer descartar-se de responsabilidades, mesmo já passados tantos anos e consolidada a vitória democrática? Então não foi uma acção legítima e patriótica, para salvar Portugal das garras da anarquia comunista?

O desgraçado não percebe que esteve metido num golpe sem tiros, num golpe de intriga que triunfou sobretudo pela cadeia ininterrupta de compromissos que ligou, duma maneira ou de outra, todos os que queriam acabar com a desordem: de Morais da Silva a Eanes, de Pires Veloso a Soares, de Melo Antunes a Cunhal, de Costa Gomes a Otelo – sim, ao próprio Otelo sem estatura para chefe da esquerda e hoje vítima dos seus eternos ziguezagues.

Num golpe destes, incapaz de assumir a sua própria legitimidade e obrigado a cobrir-se com a “defesa da legalidade democrática”, não convém que se venha agora falar em roubos de armas e em planos de assaltos a quartéis. E os patetas que o não compreendam terão de pagar por isso.

A história de Edmundo Pedro é pois, para a generalidade das forças políticas, um documento “perturbante”, difícil de digerir na campanha eleitoral que agora se inicia.

Para o PRD, por razões óbvias, a figura do general Eanes sai deste relato ainda mais tacanha e ridícula do que já era. Isto poderia ser uma vantagem para o PS se os seus telhados também não fossem de vidro; a história do 25 de Novembro põe sobretudo a nu o papel contra-revolucionário da social-democracia, sob a batuta dos EUA e de Carlucci. Para a direita, seria útil desacreditar Eanes e o PS mas não é tacticamente conveniente queimar o prestável Mário Soares. E o PCP pode rir-se para dentro mas, como de costume, não irá fazer uso de um escândalo que afecta sobretudo o regime, a que está preso pelo nariz; em todo o decorrer da história das armas, é o próprio Edmundo Pedro que o reconhece, o PCP manifestou grande reserva e sentido das responsabilidades, para “não dar argumentos à direita”.

É para nós, para a esquerda, que as pacóvias revelações de Edmundo Pedro são sobretudo úteis; porque traçam um retrato devastador desta piolheira a que se costuma chamar o novo Portugal democrático e ajudam involuntariamente a reabilitar a ideia da necessidade da revolução que não se chegou a fazer.


Inclusão 30/05/2018