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Primeira Edição: Política Operária nº 6, Set-Out 1986. Texto assinado com o pseudónimo de Mário Fontes.
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
VERDADEIRA ONDA de choque nacional causaram os fuzilamentos de oposicionistas na Guiné-Bissau em Junho. A Assembleia da República aprovou por unanimidade um voto de “profundo pesar”. O presidente da República, indignado, recusou-se a receber um emissário de Nino Vieira. O governo reprovou. Ramalho Eanes declarou a sua “repugnância” A CGTP condenou. A Fundação Gulbenkian cortou o auxílio humanitário. O que só prova que somos um país de bons sentimentos.
Mas não é estranho que esses sentimentos não se manifestem de cada vez que há fuzilamentos em Angola ou Moçambique, no lémene ou no Paquistão? ou que são enforcados comunistas na Turquia ou no Irão?
Não é estranho que o humanismo dos nossos políticos não se sobressalte com o massacre diário dos negros da África do Sul, com as atrocidades dos “contras” na Nicarágua, os bombardeamentos israelitas no Líbano, os esquadrões da morte no Chile e em Salvador?
Talvez eu esteja a ser injusto. Possivelmente, o presidente da República, a Assembleia e o governo sofrem em silêncio, consternados com estas barbaridades, e só não protestam porque se arriscavam a não ter tempo para mais nada. Mas, nesse caso, porquê precisamente os fuzilamentos na Guiné-Bissau alvoroçaram tanto a sua sensibilidade?
Só vejo duas hipóteses. Ou eles estavam convencidos de que a Guiné-Bissau tinha assimilado a moral cristã e o famoso espírito da tolerância portuguesa que nos esforçámos por lhe incutir em 500 anos de pura convivência racial, e foi por isso que não puderam calar o seu desapontamento.
Ou têm algum fundamento os rumores que dizem que a conspiração de Paulo Correia era animada por certos meios aqui em Portugal, e então o desapontamento é outro.
Entendamo-nos. Nino Vieira é um ditador que ajusta contas com os opositores à maneira fascista. Adoece-os ou fuzila-os. O poder na Guiné-Bissau não tem qualquer espécie de legitimidade popular.
Mas a sua brutalidade só tem equivalente na hipocrisia podre dos nossos homens públicos. O regime democrático novembrista português adopta em relação às antigas colónias uma política repugnante de alcoviteiro do imperialismo americano e europeu. Usa as pressões económicas, a ingerência política e mesmo a cumplicidade na agressão militar (Unita, Renamo) para levar esses países à rendição incondicional perante as multinacionais e o FMI.
A grande comoção nacional contra os fuzilamentos na Guiné-Bissau não foi mais do que um episódio nessa campanha. Os crimes do colonialismo português não terminaram com o 25 de Abril. Têm continuidade nos dias de hoje através de uma actividade subterrânea de subversão A grande redenção das “faltas do passado” foi uma farsa. O chauvinismo da burguesia portuguesa é incurável. Moral da história: quando virem o presidente da República, o governo ou a Assembleia a chorar pelas vítimas da repressão em qualquer ponto do mundo, ponham-se em guarda. Eles só choram por interesse. São lágrimas de crocodilo.
Inclusão | 06/09/2018 |