Não há Milagres

Francisco Martins Rodrigues

5 de Janeiro de 1983


Primeira Edição: Em Marcha, 5 de Janeiro de 1983

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


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Parece que uma epidemia atacou a AD. Balsemão, Freitas, Basílio, Marcelo, Meneres... Uns atrás dos outros somem-se pelo alçapão os chefes grandes da direita. Ainda ontem cheios de basófia. Inabaláveis no cumprimento do seu programa, agora zangam-se, batem com a porta... e demitem-se!

O pais estonteado toma contacto com o sorriso alvar do prof. Crespo, novo aspirante a estadista. O homem está encantado com os solavancos da História que o projectaram para os cabeçalhos dos jornais. Pudera! Desde reitor colonial-fascista em Lourenço Marques a primeiro-ministro, que caminho! Só que ninguém percebe como se abriu na AD este vazio tão grande que até lá cabem os Crespos.

Segundo alguns, a coisa começou por um colapso psicológico de Balsemão, o qual, abatido pelas perdas eleitorais do seu partido, resolveu delegar temporariamente num homem fiel e de fracos voos, que não lhe fizesse sombra. Ai, o Freitas que estava com os azeites, teria posto os pés à parede, casmurro: “O Crespo, essa besta, nunca!”. O Basílio, então, sentiu-se obrigado a acompanhar o chefe na retirada. Mas, com isso. abriu a vaga para o Lucas Pires, mal visto pela maioria dos chefes do CDS... E assim sucessivamente, como na história da cobra que se engole a si mesma, até desaparecer.

Decididamente, este pais tem que ser original em tudo. Já tínhamos uma revolução feita com cravos, uma contra-revolução sem tiros, só nos faltava este fenómeno esplêndido: o auto-saneamento da direita, descontente consigo própria. Quem disse que ia ser precisa muita luta para correr com a AD? Ela ai está agonizante, num harakiri maciço.

Este é pelo menos o entendimento do dr. Álvaro Cunhal, a festejar, alvissareiro, mais esta grandiosa vitória da Democracia. "O Diário” já promete, com lágrimas de alegria, “o regresso à estrada de Abril” para este ano. Basta que o Presidente da República diga o "abre-te, Sésamo", ou seja, convoque eleições antecipadas...

A AD não caiu derrubada pelo povo. Seria bom que assim fosse, mas não foi. A AD caiu pela disputa entre duas tácticas de ataque ao povo: mão dura com CDS/PSD, ou sorriso democrático com PSD/PS. Com eleições ou sem elas, vamos ter pela frente o programa comum da burguesia: leis anti-laborais, inflação, bases para a NATO, polícia de choque, tropas para o Líbano ou Angola...

Vejam lá se os preços não aumentaram, mesmo sem governo!

Não há milagres. É cedo para cantar vitória. .Vamos mas é fazer-nos à vida.


Inclusão 22/08/2019