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Fonte: https://www.resistir.info/mur/henri_1921_2013.html
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Esperava a notícia da morte de Henri Alleg.
Faleceu ontem, quarta-feira, mas saíra praticamente da vida no ano passado quando, em férias numa ilha grega, sofreu um AVC. O seu cérebro foi tão atingido que a recuperação era impossível.
Ficou semi-hemiplégico e passou os últimos meses numa clínica, caminhando para o fim numa existência quase vegetativa. Reconhecia os filhos, dizia algumas palavras, mas o seu discurso tornara-se caótico.
Ligou-me a esse homem uma amizade tão profunda que sinto dificuldade em a definir.
Aos 90 anos passou uma semana em V.N de Gaia, comigo e a minha companheira, e pronunciou então na Universidade Popular do Porto uma conferência sobre a Argélia e os acontecimentos que abalavam o Islão africano. Pelo saber histórico e lucidez impressionou quantos então o ouviram.
Admirava-o há muito quando o conheci na Bulgária, em 1986, durante um Congresso Internacional. A empatia foi imediata, abrindo a porta a uma amizade que se reforçou a cada ano.
Henri, após o 25 de Abril, foi correspondente de L' Humanité em Lisboa. Não tive então oportunidade de o encontrar. Mas no último quarto de século visitou Portugal muitas vezes. A Editorial Caminho publicou três livros seus (SOS América, O Grande Salto Atrás e O Seculo do Dragão) e a Editora Mareantes lançou a tradução portuguesa de La Question (A Tortura), o livro que o tornou famoso e contribuiu para apressar o fim da guerra da Argélia.
Amava Portugal, especialmente o Alentejo da Margem Esquerda do Guadiana, e admirava muito o Partido Comunista Português.
Participou em Portugal de diferentes Encontros Internacionais e, numa das suas visitas a Lisboa, foi recebido pela Comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia da Republica, debateu ali com deputados de todos os partidos grandes problemas do nosso tempo, e foi depois aplaudido pelo plenário.
Recordo também o interesse excecional suscitado pela sua passagem pelo Brasil e Cuba, onde o acompanhei nas suas visitas àqueles países.
A complexidade do sentimento de admiração que Henri Alleg me inspirava levou-me a escrever sobre ele e os seus livros mais páginas do que ao longo da vida dediquei a qualquer outro escritor. Elas aparecem em livros meus e em artigos publicados em jornais e revistas de muitos países. Evito portanto repetições.
Recordo que ao ler La Grande Aventure d'Alger Republicain o choque – é a palavra – foi tão forte que sugeri numa conferência que o estudo desse livro deveria figurar no programa de todas as Faculdades de Jornalismo do mundo.
O que encontrei de diferente em Henri Alleg?
Refletindo sobre o fascínio que aquele homem exercia sobre mim, conclui que a admiração nascia da firmeza das suas opções ideológicas, de uma coragem espartana e de um eticismo raríssimo.
Mais de uma vez lhe disse que via nele o modelo dos bolcheviques do ano 17.
Henri apareceu-me como o comunista integral, puro, quase perfeito. Não conheci outro com quem me identificasse tão harmoniosamente no debate de ideias.
É de lamentar que Mémoire Algérienne não tenha sido traduzido para o português. Nesse livro de memórias, que é muito mais do que isso, Henri, nos capítulos finais, permite ao leitor imaginar o sofrimento do comunista que acompanha o rápido afastamento, após a independência, dos dirigentes da FLN dos princípios e valores que tinham conduzido os revolucionários argelinos à vitória sobre o colonialismo francês. Pagou um alto preço pela autenticidade com que se distanciou do poder em Alger Republicain, o seu diário, fechado por Houari Boumedienne, herói da luta pela independência.
Pesado foi também o preço que pagou em França, onde, após o regresso à Europa, foi secretário de redação de L' Humanité, então órgão do CC do Partido Comunista Francês.
Henri Alleg denunciou desde o início a vaga do euro comunismo que atingiu os partidos francês, italiano e espanhol, entre outros.
Criticou com frontalidade a estratégia que levou o PCF a participar em governos do Partido Socialista que praticaram políticas neoliberais.
No belo livro que escreveu sobre a destruição da URSS e a reimplantação do capitalismo na Rússia fustigou os intelectuais que, renunciando ao marxismo, passaram em rápida metamorfose a defensores do capitalismo e a posições anti-soviéticas. Não hesitou mesmo em criticar o próprio secretário-geral do PCF, Robert Hue, considerando a orientação imprimida ao PCF como incompatível com as suas tradições revolucionárias de organização marxista-leninista.
Mas, contrariamente a outros camaradas, travou o seu combate de comunista dentro do Partido como militante.
Tive a oportunidade em França, de registar, em assembleias comunistas a que assisti, o enorme respeito que Henri Alleg inspirava quando tomava a palavra. Verifiquei que mesmo dirigentes por ele criticados admiravam a clareza, o fundamento e a dignidade do seu discurso crítico.
Nos últimos anos, apesar de uma saúde frágil, compareceu em programas de televisão, voltou a Portugal e revisitou a Argélia onde foi recebido com entusiasmo e emoção. Nos EUA as suas conferências suscitaram debates ideológicos de uma profundidade incomum, com a participação de comunistas e académicos progressistas. E quase até ao AVC que o abateu, percorreu a França, respondendo a convites de Federações Comunistas e outras organizações. A juventude, sobretudo, aclamava-o com ternura e admiração.
A morte da companheira, Gilberte Serfaty, em 2010, foi para ele um golpe demolidor.
"Não mais posso sentir a alegria de viver…" – respondeu-me quando o interroguei sobre o peso da solidão. Ela, argelina, era também uma comunista excecional. Contribuiu muito para organizar com o Partido a sua fuga rocambolesca da prisão francesa de Rennes, para onde fora transferido da Argélia.
Muitas vezes, quando ia a França, instalava-me na sua casa de Palaiseau, nos subúrbios de Paris. Henri, que era um gourmet e um grande cozinheiro, recebia-me com autênticos banquetes e preparava um maravilhoso couscous, acompanhado de vinhos argelinos.
Na última visita a Palaiseau antes da sua doença, minha companheira e eu participamos de um jantar inesquecível. Éramos cinco: nós, Henri, Gilberte e o filho, Jean Salem, já então um filósofo marxista de prestígio internacional.
Recordo que nessa noite passamos o mundo em revista. Henri irradiava energia; amargurado com o presente cinzento da humanidade, falou do futuro com a esperança de um jovem bolchevique.
Repito: Henri Alleg foi um revolucionário e um comunista exemplar.
Vila Nova de Gaia,18 de julho de 2013