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Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
Conheci Henri Alleg em 1986, durante um Congresso de Jornalistas, em Sófia. Tínhamos ambos ultrapassado os 60 anos.
"É muito raro ouvi dele recentemente em Serpa que amizades tão fortes como a nossa se estabeleçam em idades avançadas". Recordei essas palavras ao findar a leitura de Mémoire Algérienne, o seu último livro.(1)
Henri Alleg integra a galeria daqueles seres excepcionais que fizeram nascer em mim o sentimento da amizade antes da primeira troca de palavras. Isso aconteceu quando li La Question, o mais belo e terrível libelo contra a tortura, escrito numa prisão da Argélia há quase meio século, depois de resistir estoicamente à barbárie dos pára-quedistas de Massu.
Com excepção do olhar e da cabeleira ruiva, nada na aparência daquele homem pequeno e de voz suave chama a atenção. Faz lembrar aquilo a que os italianos chamam o uomo qualunque. Impossivel ao olhar para ele imaginar a sua coragem espartana, a inteligência fulgurante, a capacidade de suportar o sofrimento ate à ultima fronteira e de enfrentar desafios inesperados, a lucidez da mundividência histórica, a firmeza ideológica, o talento do escritor, e a solidariedade com os explorados e oprimidos erigida em razão de existência.
Não há revolucionários perfeitos. Mas entre todos os que conheci pessoalmente ao longo de uma existência que me levou a correr pelo mundo, Henri Alleg, é talvez, na sua modéstia, aquele que mais se aproxima da imagem do comunista ideal, tal como o concebi na juventude a partir de clássicos da literatura e do marxismo.
Porquê?
Em primeiro lugar pelo humanismo e ausência de contaminação. Lenine advertiu que a vida em qualquer sociedade é decisivamente marcada pela ideologia da classe dominante. Os que nos formamos no mundo capitalista e lutamos pela destruição da engrenagem do sistema somos em maior ou menor grau condicionados pelos seus mecanismos, embora nem sempre essa realidade suba ao nível da consciência. Em Henri Alleg identifico uma imunidade aparente ao contágio no quotidiano pelos vírus que nos envolvem permanentemente. Habituei-me a ver nele o revolucionário puro.
No final do ano passado, quando terminava Memoire Algerienne, disse-me pelo telefone que não seria "um bom livro".
Como sempre era sincero. Mas, conhecedor da extraordinária riqueza do tema, da sua exigência e da modéstia que a acompanha não acreditei.
O livro é uma obra comovente, uma lição de humanismo revolucionário. A vida de Henri, durante duas décadas, surge-nos indissoluvelmente ligada à história da Argélia. Daí o titulo.
Em La guerre d'Algérie, a obra monumental em três tomos que concebeu e dirigiu, está ausente como personagem. Agora, num texto de memórias ele evoca a sua participação em acontecimentos que emergem já como capítulos da história da África, da França e da humanidade.
O jovem que nas vésperas da segunda guerra mundial teve o primeiro contacto com a Argélia e pressentiu na sua amizade com um menino engraxador que descobria uma realidade social monstruosa e portanto condenada a desaparecer não podia então imaginar que um grande ideal e a luta pela libertação de um povo colonizado e humilhado fariam dele um dos primeiros franceses a ser torturado pelo Exército da sua pátria.
Foram as exigências desse combate e a fome de uma autêntica fraternidade que o transformaram em jornalista e em comunista.
Que caminhada a sua no tempo de horrores em que dirigiu Alger Republican, o diário que na sua breve existência expressou o sentir e a esperança dos oprimidos na Argélia martirizada.
Em colaboração com A. Benzine e B. Khalfa, companheiros de redacção e de ideal, Henri escreveu muitos anos depois um livro maravilhoso, La Grande Aventure d'Alger republicain. Nesta época de perversão mediática, essa obra, hoje quase esquecida, deveria ser estudada em todas as faculdades de jornalismo. Ela é um documento comovedor sobre o sonho utópico de um punhado de franceses e argelinos que acreditavam numa Argélia da fraternidade entre todos os que nela haviam nascido, independentemente da origem racial e da religião. A equipa de Alger republicain bateu-se por esse sonho com bravura e tenacidade até ao fim. O compromisso com a verdade, sem medos, nem concessões, foi levado tão longe pelo colectivo que não conheço precedente similar na história da imprensa mundial. Daí a grande lição que a historia do pequeno-grande diário argelino transmite a sucessivas gerações de jornalistas.
A clandestinidade, após o encerramento do jornal, depois a prisão, a tortura, e os anos de cárcere, não abaterem o animo de Henri Alleg. Reforçaram-lhe a combatividade e a fidelidade ao ideal comunista. Um dia um director de presídio disse-lhe que ele nunca seria o mesmo ao recuperar a liberdade. Enunciou uma realidade. Mas o porta-voz da repressão não podia compreender que o sofrimento e a solidariedade com os companheiros das prisões e campos de concentração argelinos haviam transformado Henri Alleg num sentido oposto ao imaginado pelos seus carcereiros. Os anos na prisão --como ele sublinha -- "tornaram-me mais atento e aberto aos outros, menos absoluto nos meus juízos, ainda mais convicto da necessidade de fazer "tábua rasa" de uma sociedade de opressão e de desprezo para criar novas relações de fraternidade e de solidariedade entre os homens e, com maior firmeza do que nunca, decidido a consagrar todas as minhas energias a essa esperança".
Foi atrás das grades que o director de Alger Republicain, burlando a vigilância dos guardas, escreveu La Question, a denúncia da tortura que motivou o protesto solidário de Jean Paul Sartre, Roger Martin du Gard e François Mauriac. A ressonância mundial do livro de Alleg contribuiu para apressar o fim da guerra da Argélia e colocou o autor na galeria dos maiores jornalistas do século XX.
A simples notícia da publicação do livro (logo apreendido) em França provocou alias nos presídios argelinos uma explosão de alegria. Foi recebida como uma vitória colectiva.
Por si só as paginas em que o militante revolucionário evoca a vida e a luta na prisão e a sua fuga do presídio de Rennes, em França, para onde fora transferido após a campanha mundial pela sua libertação, constituem um livro dentro do livro. Para o leitor fazer uma ideia do funcionamento dos mecanismos repressivos do Estado Francês naquela época, julgo útil informar que L'Humanité e Liberation foram apreendidos quando publicaram a carta dirigida por Alleg ao Procurador da Republica, relatando as torturas a que fora submetido no centro de terror de El Biar pelos pára-quedistas da 10 Divisão. Nada resultou alias do inquérito instaurado. Nem um só dos torcionários foi punido e alguns acumularam promoções e condecorações por serviços prestados à Pátria.
O objectivo do jornalista sequestrado e torturado era outro. Pretendia e conseguiu iluminar "o verdadeiro rosto da guerra travada na Argélia e acusar publicamente os carrascos e torcionários".
No capitulo dedicado à evasão, que recorda com pormenores emocionantes e o fino sentido de humor que lhe marca a personalidade, Henri Alleg coloca os leitores perante um quadro de toques folhetinescos. Parecia impossível fugir; mas ele conseguiu, assombrando o director do presídio e os guardas. A solidariedade do Partido Comunista Francês e a imaginação e dinamismo da sua companheira, Gilberte, uma revolucionária de fibra, foram decisivos para o êxito de um plano tido à partida como inviável.
Os últimos capítulos do livro são talvez aqueles em que melhor transparece a acumulação de cultura profunda do comunista que, pela estrada do sofrimento, ampliou na prisão a sua mundividência de revolucionário.
La Question, rapidamente editada em dez línguas, catapultou Henri Alleg para os pináculos da fama. Foi recebido como um herói na URSS, na Checoslováquia, em Cuba. Mas o êxito fortaleceu nele a modéstia e o sentido da responsabilidade.
Novos combate, muito diferentes, do anterior, o esperavam no regresso à Argélia para retomar a publicação de Alger republicain.
A nova Argélia, que durante uma luta épica se anunciava como revolucionária e socialista começou logo após a independência a distanciar-se do projecto.
Henri acreditava que o primeiro número seria recebido com tamanho carinho que seria impossível a poder algum não levar isso em conta e assumir publicamente a responsabilidade de uma futura proibição.
Mas tal esperança não foi confirmada pela história. A volta do jornal foi saudada com entusiasmo pelo povo e ele logo se tornou o primeiro e mais querido diário do pais. Por isso mesmo a sua linha revolucionária e humanista incomodou personalidades proeminentes na estrutura de poder que ia tomando forma, num contexto de lutas fratricidas entre companheiros da véspera.
No editorial, ao reaparecer, Alger republicain definia assim o país que deveria emergir da guerra de libertação: "Uma Argélia que destrua as sequelas do colonialismo, que ofereça a todos, qualquer que seja a sua origem, os mesmos deveres e direitos, que avance com audácia pela estrada da democracia, justiça e progresso. Uma Argélia na qual a terra pertença aos felás, aos operários agrícolas, na qual as riquezas essências sejam propriedade de todo o povo".
Não foi o que aconteceu.
Os retornados franceses, ao abandonar o país trataram de destruir ou desmantelar o que não puderam levar, desde infra-estruturas básicas, ao mobiliário das casas, aos automóveis a serviços de interesse público. Dissipada a euforia da independência, o povo argelino compreendeu que teria de partir quase do zero, no que se refere a equipamentos, para construir o futuro.
Henri recorda o espectáculo desolador que então ofereciam "dirigentes ainda na véspera tidos por heróis e guias e que, logo que regressaram ao pais independente, mas ainda ensanguentado, a braços com mil problemas dramáticos, passaram a lutar pelo poder, destruindo com as próprias mãos o mito de uma FNL inquebrantavelmente solidária ao serviço dos interêsses e aspirações de uma nova Argélia".
"Durante semanas -- transcrevo -- o pais, fustigado como navio sem leme e sem rumo, onde a autoridade do executivo provisório era nula, ficou à beira da guerra civil e os choques armados resultantes dessa desordem fizeram centenas de mortos dos quais não se falou".
Um luar de esperança reapareceu, tímido, quando a situação pareceu estabilizar-se sob o governo de Bem Bella.
Alger republicain saudou em editorial, num número especial, o decreto que regulamentou o destino dos chamados "biens vacants" (sem proprietário), acentuando que doravante não havia mais "bens sem proprietário", mas empresas e explorações de autogestão.
"A experiência de alguns países -- advertiu o jornal -- de independência recente ensina que uma camada social privilegiada pode tomar o poder para seu exclusivo proveito. Agindo assim, priva o povo do fruto da sua luta e afasta-se dele para se aliar ao imperialismo. Em nome da unidade nacional, que explora com oportunismo, a burguesia pretende actuar para o bem do povo pedindo-lhe que a apoie"?
Uma tal linguagem desagradou profundamente a elementos influentes da nova burguesia em formação instalados já em postos chave da FLN e do governo.
O Partido Comunista Argelino foi proibido.
Alger republicain recebia e publicava "muitas cartas de leitores que punham em causa, com provas, os beneficiários de malversações e os funcionários responsáveis que as encobriam. Longe de manifestar reconhecimento por esse trabalho de salubridade pública, os ministros reagiam com furor quando aqueles que eram postos em causa os tocavam de perto". As críticas e ameaças de poderosos começaram a chover na redacção.
O jornal defendia uma imprensa "ao serviço do povo, ao serviço da verdade". E isso era intolerável para grande parte dos detentores do poder.
Após o golpe de estado que derrubou Ben Bella, ficou claro que os dias de Alger republicain estavam contados. O diário revolucionário foi fechado. Henri evoca com pormenores os últimos dias do jornal.
Era o coronel Boumedienne um conservador? Não. Combatente exemplar nos anos da luta muitos analistas identificaram inclusive nele um dirigente progressista. Nunca se declarou anticomunista e manteve o socialismo como objectivo no seu projecto de transformação da sociedade argelina. Mas a referencia ao socialismo não passava de um eufemismo.
Henri Alleg recorda que muitos ideólogos de esquerda, acompanhando Nikita Kruchev que nunca foi uma autoridade em marxismo defendiam a tese segundo a qual os países libertados do jugo colonial e a própria Argélia optariam inevitavelmente por romper com o capitalismo, como já fizera Cuba, porque esse era o sentido da história". Foi porem a História, que desmentiu essa tese. Países do Terceiro Mundo cujos partidos no poder se declaravam marxistas-leninistas não romperam com o capitalismo. Isso aconteceu em algumas das antigas colónias africanas de Portugal e também na Argélia, onde os dirigentes da FNL nunca esconderam, aliás, a sua desconfiança dos comunistas.
Alleg recorda que os novos governantes temiam qualquer forma de contestação operária. Essa recusa de um "movimento social real traduzia o receio de ver consolidada uma organização operária independente do aparelho partidário, que inevitavelmente seria lavada a opor-se aos apetites ambições da nova burguesia".
Reflectindo sobre essa situação e as suas origens, o escritor recorda que na desconfiança inspirada pelos operários aos dirigentes da FLN se identifica a influência de Frantz Fanon. Este numa tese de raiz maoista, logo adaptada por muitos políticos progressistas, sustentava que "nos territórios coloniais o proletariado é o núcleo do povo colonizado mais privilegiado pelo regime colonial", pelo que "somente o campesinato é revolucionário".
O desenvolvimento da História não tardou a demonstrar a falsidade da tese, mas foi muito alto o preço, nomeadamente em África, repito, da desconfiança que a dirigentes progressistas inspirava o proletariado como classe revolucionária, obviamente, os partidos comunistas.
Sentindo fechar-se as portas para lutar pelo povo da Argélia, Henri Alleg não podia permanecer no país como espectador. Voltou à França e prosseguiu ali o seu combate.
Pouco espaço dedica no livro a essa fase da sua vida, quase quarenta anos. Mas em L'Humanité, como secretário da Redacção, como escritor, como simples militante, o seu batalhar de intelectual comunista foi permanente.
Ao revisitar com antigos companheiros, transcorridas décadas, as salas da antiga redacção de Alger republicain, foi dominado por uma grande emoção. Transcrevo as palavras finais de Mèmoire Algerienne, inspiradas por esse momento de reencontro com o passado:
" sabíamos que não poderíamos nunca renunciar àquilo que fora e continuava a ser a nossa primeira e luminosa razão de viver: dar continuidade com milhões de outros à luta secular dos explorados, dos oprimidos, dos "condenados da terra", para que possa nascer, finalmente, outro mundo, um mundo de liberdade, de verdadeira fraternidade".
Nessas palavras está a imagem de Henri Alleg, revolucionário comunista exemplar.
Serpa, Novembro/2005
Notas de rodapé:
(1) Henri Alleg, Memoire algerienne , 407 pags, Ed. Stock, Paris, Setembro de 2005, ISBN: 223405818X. (retornar ao texto)