Novos desafios da Revolução Bolivariana

Miguel Urbano Rodrigues

1 a 5 de dezembro de 2004


Primeira Edição: Encontro mundial de intelectuais e artistas "Em Defesa da Humanidade" (Caracas, 1-5/Dez/2004)

Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Caracas foi durante a primeira semana de Dezembro sede de um acontecimento com características inéditas a nível planetário. Mais de 340 intelectuais e artistas vindos de 52 países reuniram-se na capital venezuelana para debater problemas e ameaças inseparáveis da própria sobrevivência da humanidade.

O Apelo de Caracas traduz bem o espírito desse Encontro Mundial de representantes da intelligentsia em Defesa da Humanidade. Nele, homens e mulheres de culturas muito diferentes coincidiram no tocante «à necessidade de construir um muro de resistência frente ao projecto de dominação mundial que hoje se pretende impor».

Mais expressivo do significado do evento que as decisões tomadas foi a atmosfera de permanente combatividade do Encontro, marcada pela solidariedade entusiástica com a Revolução Bolivariana.

Não será exagero afirmar que a iniciativa ficará a assinalar uma radicalização do processo de transformações profundas em curso que faz da Venezuela a vitrina de uma luta de classes como o mundo não conhecia desde as Revoluções Russas de 1917.

«Amanhã pode ser demasiado tarde!»

Esta frase de Fidel, repetida por Hugo Chavez no discurso de encerramento do Encontro, deu força a duas ideias centrais que percorreram os discursos pronunciados pelo Presidente naqueles dias.

O líder da Revolução ao anunciar repetidamente a radicalização da Revolução, deixou muito claro que o seu povo vai enfrentar gigantescos desafios e que somente avançando e não recuando poderá defender e aprofundar as conquistas já realizadas. Chavez está consciente de que o choque frontal com o imperialismo é inevitável .

A ruptura com o sistema de dominação — afirmou com clareza essa evidencia — exigirá do povo enormes sacrifícios e uma grande firmeza.

No diálogo que manteve com as delegações estrangeiras no Teatro Tereza Carreño — um anfiteatro com 2500 lugares — utilizou as perguntas formuladas para iluminar o seu discurso inicial sobre o binómio antagónico revolução e golpe com respostas que gradualmente deram cor e forma a outro discurso, complementar, no qual a informação, os projectos e o recurso constante a exemplos se inseriram num comovedor painel da Revolução.

Tudo foi transmitido de uma forma espontânea, directa. Chavez é um comunicador excepcional. Mas a sua oratória torrencial não pode ser confundida com a dos líderes populistas tradicionais em cujas arengas a retórica oculta a ausência de conteúdo.

As palavras dirigidas pelo líder venezuelano aos intelectuais presentes no Encontro foram não apenas muito pensadas como carregadas de mensagens ideológicas.

Ele avaliou os riscos da sua opção ao insistir repetidamente em que a Revolução Bolivariana não é mais apenas uma revolução nacional porque, hostilizada pelo imperialismo, somente poderá sobreviver se romper o isolamento, assumindo, os contornos de uma revolução defendida pela humanidade progressista. Por outras palavras, a solidariedade internacionalista passou a ser não somente imprescindível, mas factor de sobrevivência.

A complexidade do desafio lançado por Chavez no Encontro de Caracas transparece de algumas das «sugestões» por ele formuladas. Ao defender a criação de um Banco Central Latino-americano e de um Fundo Monetário Latino-americano e insistir pela fundação da Petrosul — uma empresa que agruparia a PDVSA venezuelana, a PEMEX mexicana, a Petrobrás brasileira e a empresa petrolífera estatal argentina — Chavez não se limita a reafirmar a sua recusa da dominação imperial sobre o pais. Vai muito mais longe porque as suas propostas deixam transparecer a decisão de internacionalizar a Revolução Bolivariana.

Obviamente a concretização dessas propostas não é, por ora, possível. Qualquer delas esbarraria com obstáculos intransponíveis. Mas o seu significado não deve ser subestimado.

El Nacional e El Universal, os dois grandes diários da oligarquia, não dedicaram uma só linha ao Encontro Mundial de Intelectuais – o que é esclarecedor do seu conceito de democracia e informação – mas as declarações do Presidente foram imediatamente interpretadas em Washington como um gesto intolerável, de conteúdo subversivo.

Chavez não mastigou palavras. Disse da ALCA o que pensa dela como projecto recolonizador e imperial e defendeu um conceito de integração latino-americana que o faz aparecer aos olhos da Casa Branca como um revolucionário satânico, um segundo Fidel Castro.

A solidariedade irrestrita com Cuba seria suficiente para alarmar Washington, mas o aprofundamento da colaboração entre os dois países em múltiplas áreas é assumido com orgulho. Chavez não esconde que caminha ombro a ombro com «a republica irmã».

Escritores e cientistas políticos que visitavam a Venezuela pela primeira vez ficaram impressionados pela utilização constante da historia no discurso chavista. As citações de Bolívar, as referências ao herói tutelar ajudam a compreender o que é e significa ser hoje bolivariano. A modernidade de Bolívar como revolucionário transpareceu em paralelos oportunos entre situações do passado e as opções de hoje face à Revolução.

Chavez inspira-se no Libertador ao enfrentar dificuldades que na aparência se apresentam como insuperáveis. Contemplando o futuro imediato adverte: «o que fizemos foi muito pouco; o principal está por fazer».

Com frequência a evocação de episódios vividos no decurso do processo serviram-lhe para iluminar o heroísmo popular. Emocionou o auditório quando, descrevendo os dias do lock out petrolífero, com o país quase paralisado, sem gasolina, e privado de abastecimentos, contou o seu encontro com uma família muito pobre num bairro degradado. Uma mulher, pegando-lhe no braço, arrastou-o para o casebre onde vivia. Chavez percebeu que cozinhavam alguma coisa numa panela. Tirou a tampa e viu que era um pedaço de madeira. A mulher comentou: «estamos a comer o que resta da minha cama». E acrescentou: «Fica tranquilo, vamos aguentar. Resiste, Chavez!»

A história contemporânea da América Latina, da Europa, do Médio Oriente agredido pelo imperialismo, foi tempero do discurso ideológico.

Não foi sem surpresa que muitos dos participantes estrangeiros acompanharam a sua apologia da aliança operario-camponesa no país e na América Latina. Surpresa ainda maior quando, recordando os encontros que manteve com dirigentes de países islâmicos, exortou os povos da América Latina a levantarem-se, solidários com e iranianos e sírios, se estes forem alvo de novas agressões imperialistas.

No dia seguinte, falando no encerramento do Encontro, Chavez proferiu um discurso menos elaborado, ainda mais radical. Retomando a ideia do aprofundamento da Revolução, foi enfático na afirmação de que ela vai entrar numa nova fase. E foi mais longe. Apresentou o socialismo como única alternativa ao neoliberalismo, ao sistema de dominação imperial que ameaça a humanidade.

A alternativa socialismo ou barbárie, formulada por Rosa Luxemburgo há um século, aparece hoje como actualíssima, reactualizada pelo desenvolvimento da história.

Mas terá sido adequado o momento escolhido por Chavez para deixar transparecer pela primeira vez a sua opção socialista?

INCOGNITAS E DEBILIDADES

Ao longo dos último meio século acompanhei revoluções e contra-revoluções que marcaram o rumo da América Latina. Com excepção de Cuba, não recordo uma relação similar à existente hoje na Venezuela entre um governante e o povo que o apoia. A confiança das massas no líder é total, ilimitada. Impressionou os intelectuais estrangeiros tanto nas aclamações por ele recebidas no Encontro como nos contactos que eles mantiveram com moradores pobres em visitas a comunidades da capital e dos Estados.

Mas a dependência do líder é também uma fragilidade da revolução. Porque toda revolução é um processo molecular, que se desenvolve numa atmosfera de luta de classes, um processo cuja duração não é previsível, que exige uma organização revolucionaria preparada para uma luta prolongada. Ora tal organização não existe ainda na Venezuela. A participação maciça do povo, assumindo-se como sujeito da historia, permitiu, em momentos decisivos, que as forças, unidas, da direita caseira e do imperialismo fossem derrotadas. Mas, num momento em que se anuncia uma nova fase, em que o dirigente radicaliza a sua posição e relaciona a sobrevivência do processo com a ruptura do isolamento, admitindo que a revolução bolivariana assume a dimensão de um desafio continental ao imperialismo — a ausência de uma organicidade revolucionaria é inocultável. Nem o Movimento V Republica, nem os Círculos Bolivarianos, nem as actuais Patrulhas puderam desempenhar o papel mobilizador e estruturador da organização revolucionaria exigida pela situação histórica.

A grande incógnita persiste. Até onde será possível transformar radicalmente a sociedade venezuelana num quadro institucional em que segmentos importantes do Estado não são controlados pelo Governo?

Nesse contexto a atitude das Forças Armadas assume uma importância fundamental. Chavez enuncia uma realidade ao afirmar que a revolução bolivariana não é, contrariamente à chilena, uma revolução desarmada.

A grande maioria do corpo de oficiais apoia o processo de mudança. Isso não significa que o Exército corresponda ao ideal definido por Bolívar: «o Povo em armas».

Um oficial revolucionário, com altas responsabilidades, disse-me, confiante: «Após a derrota do golpe, o desfile pela Praça de França (Altamira)(1) de oficiais ligados à oposição foi uma presente do céu, porque permitiu eliminar do Exército o que nele restava de podre».

A opinião deixa transparecer alguma ingenuidade. A história demonstra que as sementes da contra-revolução germinam nas revoluções pela própria dinâmica destas.

Mais de uma centena de oficiais superiores, incluindo muitos generais e almirantes, foram saneados após o golpe de 11 de Abril. Mas um número não quantificável de oficiais que não inspiravam confiança — de algum modo cúmplices passivos da intentona fascista — permaneceu nas fileiras. Muitos foram transferidos para guarnições distantes de Caracas, sobretudo na explosiva fronteira com a Colômbia. Não terá sido uma opção feliz. Essa fronteira é um autentico paiol. Ali se concentram ganaderos e terratenientes reaccionários, narcotraficantes, contrabandistas e aventureiros estrangeiros. Os paramilitares colombianos tudo fazem, com cobertura do governo neofascista de álvaro Uribe, para criar na região uma atmosfera de permanente tensão. Alguns dos incidentes ali ocorridos valem como advertência. é inegável que o vírus transmitido pela escoria humana daquela zona é contaminante.

Estamos perante um problema entre muitos. Mas não subestimável.

A nova fase da Revolução, anunciada por Chavez, exige que a participação do povo seja elevada a um nível superior. A disponibilidade para a luta em situações de angústia, não basta para uma resposta revolucionária permanente, lúcida, adequada à ambição transformadora e desafiadora esboçada pelo Presidente.

Tudo indica que a radicalização do processo bolivariano, anunciada por Hugo Chavez no Encontro Mundial de Caracas, e reafirmada no Congresso Bolivariano dos Povos, vai fazer de 2005 um ano decisivo para o destino da revolução em curso na pátria de Simón Bolívar.


Notas de rodapé:

(1) Altamira, em Caracas, é o bairro onde a classe dominante promoveu durante meses concentrações, com a presença de militares, em que o governo era alvo de constantes provocações. (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2021