Uribe no trapézio — o fascismo mascarado

Miguel Urbano Rodrigues

24 de julho de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Na América Latina, o fascismo raramente cabe nos moldes tradicionais.

Desde o fascismo boliviano de Unzaga de la Vega, nos anos 30, ao fascismo castrense de Pinochet todos se caracterizaram, na teoria e na prática, por uma atipicidade que não facilita o trabalho dos cientistas políticos e dos historiadores.

No actual presidente da Colômbia pode ser identificado um dos exemplos mais interessantes desse estranho fenómeno.

álvaro Uribe Vélez é, pela vocação, sentir, estilo de governo e opção ideológica, um adepto do fascismo. Se houvesse vivido na década que precedeu a II Guerra Mundial, Hitler seria para ele um modelo. O Fuhrer alemão tê-lo-ia fascinado.

Como a época é outra, toma por referência, adaptando-o à Colômbia, o neofascismo que inspira o sistema de poder dos EUA.

Por outras palavras, mantendo intactas as estruturas institucionais do Estado, trata de as esvaziar do seu conteúdo formalmente democrático. A fachada persiste, mas a hipertrofia do Executivo impede na pratica o Legislativo e o Judiciário de desempenharem o papel que lhes cabe. Resultado: o sistema não pode funcionar; de dinâmico que deveria ser torna-se estático.

Com a Constituição reduzida a papel quase sem valor, Uribe desenvolve um projecto totalitário cuja praxis é fascista.

É um projecto complexo, extremamente ambicioso, cujo avanço exige uma ruidosa orquestração publicitaria. Para destruir a democracia o Presidente repete exaustivamente que o seu objectivo supremo é defendê-la e aperfeiçoá-la. Por isso mesmo a apologia da democracia torna-se constante no seu discurso político.

Neste contexto, a mais recente manobra de álvaro Uribe é a ofensiva desencadeada para a sua reeleição.

Um obstáculo a remover é a Constituição que limita a quatro anos a permanência no Poder do Presidente da Republica.

Uribe acha insuficiente. Nos discursos repete com frequência que o cumprimento do seu programa, pela ambição e grandeza, exige pelo menos oito anos, talvez doze...

A senadora liberal Piedad Cordoba concluiu que, pelo estilo, a campanha para a reeleição traz à memória a que Fujimori desenvolveu no Peru.

Mas, não obstante contar com fortes apoios no Congresso, a tarefa de Uribe não será fácil. Serão necessárias oito votações para que o projecto de emenda constitucional que visa a reeleição atinja o seu objectivo.

UM DEMAGOGO HÁBIL

Uribe Vélez não se assemelha pelo estilo aos ditadores tradicionais. Presentemente não existe na América Latina um presidente responsável por um conjunto de crimes comparável. O seu curriculum define o homem e o político. Como governador do Departamento de Antióquia foi ele quem deu ao paramilitarismo o impulso que permitiu posteriormente aos bandos de Carlos Castaño transformar-se na mais importante organização terrorista do continente. A lista dos crimes comprovados que promoveu ou incentivou seria, noutro país, suficiente para justificar uma condenação à prisão perpetua. Mas na Colômbia a máquina da Justiça, corrompida até á medula, tornou-se cúmplice de Uribe.

Contrariamente a presidentes com a mesma concepção totalitária do poder, Uribe Vélez não tem um discurso truculento. Cultiva uma oratória caracterizada pela apologia permanente da democracia representativa e do humanismo. é inegavelmente um comunicador. Seria um erro subestimar a sua capacidade de impressionar os interlocutores que lhe desconhecem o passado e os métodos. O seu discurso é a antítese da sua pratica política.

Nenhum dos presidentes que o precederam na Casa de Nariño conseguiu como ele unificar a direita oligárquica e tornar aceitável para a pequena e media burguesia um programa tão restritivo das liberdades e direitos constitucionais.

Gradualmente, sem que milhões de colombianos disso tomassem consciência, um neofascismo mascarado implantou-se no país através de medidas e práticas que, permitindo a sobrevivência da fachada institucional, abriram a porta a uma ditadura de facto.

Bush, obviamente, identifica no colega colombiano uma alma gémea, com a qual sente «grande empatia». Mas álvaro Uribe não somente obteve algum êxito no relacionamento pessoal com alguns presidentes democráticos da América Latina como ampliou os contactos, antes difíceis, com os grandes da União Europeia. Contou para isso com a ajuda do seu amigo Aznar.

Voltou de mãos vazias no que se refere a ajuda material para o combate à insurreição armada, mas conseguiu que os governos da UE alterassem a sua política tradicional perante as guerrilhas. Os membros das FARC-EP e do ELN encontram-se desde o ano passado na clandestinidade em toda a Europa, onde são perseguidos pela Interpol como «terroristas».

A propaganda de Uribe, entretanto, tem ampliado e manipulado os seus supostos êxitos como negociador. Isso aconteceu após a reunião do Grupo do Rio, no Cuzco, e depois da reunião de Londres sobre a Colômbia.

No primeiro caso, o governo de Bogotá afirmou que o Grupo do Rio tinha decido apoiar a chamada «política de guerra total» de Uribe. Ora não saiu do encontro do Cuzco qualquer declaração nesse sentido. A notícia era falsa; foi inventada.

Quanto à reunião promovida na Inglaterra por iniciativa de Blair e Aznar, El Tiempo e outros medias de Bogotá apresentaram o resultado dos debates, em que participaram os 15 da UE e alguns governantes de outros países, como uma vitoria estrondosa de Uribe, cuja política teria recebido apoio incondicional. El Tiempo, num editorial intitulado «El espaldarazo europeo» festejou a imaginaria vitória do Presidente usando a tradicional expressão de César ao comemorar a conquista das Gálias: « Vini, vidi, vici (vim, vi, venci). Uma mentira deslavada. A grande vitoria foi imaginária.

Omitiram os epígonos de Uribe que qualquer ajuda ao seu governo será condicionada pela execução das 27 recomendações constantes do relatório de James Lemoyne, representante na Colômbia do secretário-geral da ONU. Ora, uma dessas exigências estipula que o governo não poderá «introduzir na ordem jurídica colombiana normas que permitam aos membros das forças armadas exercer funções de polícia judicial nem outras, incompatíveis com a independência da Justiça».

Acontece que essa ingerência do executivo no terreno do poder judicial é precisamente um dos pilares do projecto do chamado «Estatuto Antiterrorista» do governo. Este entende também que pode decidir, sem intervenção da Justiça, se um cidadão deve ou não ser extraditado a pedido de Washington.

Na época Uribe criticou com veemência o representante da ONU (e o próprio secretário-geral) declarando inaceitáveis as suas recomendações.

é oportuno recordar que a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da OEA, exige também que todos os Estados membros da organização se abstenham de «adoptar medidas legislativas manifestamente incompatíveis com os seus objectivos».

URIBE E OS PARAMILITARES

As negociações em andamento para a reintegração dos paramilitares na sociedade configuram um dos maiores escândalos políticos que envolvem a Administração de Uribe.

O paramilitarismo faz parte da política do Estado colombiano. Foi criado pelo exército para executar as tarefas mais sujas. Observadores de organizações internacionais comprovaram no terreno muitos dos incontáveis crimes cometidos pelos bandos assassinos de paramilitares. Sobre o tema existe uma abundantíssima documentação, traduzida em muitos idiomas .

Uribe, cujas íntimas relações com o paramilitarismo motivaram acusações públicas, manifestou desde o início do mandato o desejo de «reintegrar» os paramilitares. Não é segredo que o governo pretende colocar no exército e nas policias alguns dos principais quadros dos bandos de Carlos Castaño, o chefe máximo dessa escória humana. Outros irão engrossar o corpo de centenas de milhares de informadores dos serviços de inteligência, os «sapos», correspondentes aos bufos da PIDE.

Nas negociações, os paramilitares são tratados pelos representantes do governo como patriotas transviados, que recorreram à violência movidos pelo desejo de proteger as populações contra as guerrilhas comunistas. Algumas reportagens publicadas na imprensa de Bogotá apresentam esses rapazes como criaturas ingénuas, quase angelicais. O general Jorge Mora e a ministra da Defesa condecoraram recentemente alguns paramilitares com cadastro pesadíssimo.

Na realidade, o historial de crimes do paramilitarismo é medonho, sem paralelo com o dos piores esquadrões da morte do continente. Castaño divertia-se a cortar com uma serra mecânica os braços a guerrilheiros das FARC, antes de os atirar, moribundos, às aguas do Magdalena, infestadas de jacarés.

Por si só os depoimentos — divulgados por diferentes ONGs — relativos às chacinas recentes de camponeses, torturas, e violações de mulheres praticadas pelos bandos paramilitares na região de Barrancabermeja, no oriente de Antióquia, constituem um libelo esmagador contra uma organização criminosa responsável pelo assassínio de dezenas de milhares de pessoas.

São esses terroristas que álvaro Uribe, na sua campanha anti-terrorista, deseja reintegrar na sociedade.

Parcialmente, cabe sublinhar, pois 6 500 paramilitares pertencem a dois grupos de bandidos que não participam nas negociações. Estas desenvolvem-se com os bandos de Carlos Castaño e Salvatore Mancuso, os dois capos.

Uma extensa entrevista com o último, publicada na edição de 20 de Julho p.p., de El Tiempo , ilumina bem a mundividência do segundo e permite ao leitor formar uma ideia sobre a atmosfera de hipocrisia da vida quotidiana na Colômbia actual.

Julgo útil esclarecer que tanto Castaño como Salvatore Mancuso são riquíssimos. Nunca o exército os incomodou, não obstante se apresentarem com frequência em publico e entrarem e saírem do país sem dificuldade.

Mancuso, ligado a famílias tradicionais, não está preocupado com o pedido de extradição que o visa, apresentado pelos Estados Unidos.

Expressando espanto, Salvatore, lugar tenente do Padrinho, acha que se trata de um equívoco. Garante não ter relações com o narcotráfico (deslavada mentira ) e diz não perceber sequer porque o consideram narcotraficante nos EUA. Mas não duvida de que o equívoco acabará logo que tenha a oportunidade de conversar sobre o tema com os norte-americanos. «Quanto mais clara for a ideia deles — afirmou — sobre quem somos e qual o nosso horizonte, mais claramente perceberão o papel que lhes cabe desempenhar na solução pacifica do conflito armado nacional». Talvez nesse particular não lhe falte razão... As comadres vão entender-se.

O mesmo cinismo transparece da resposta dada ao jornalista sobre os seus planos para o futuro.

Salvatore é quase romântico no seu desabafo. Quando depuserem as armas, os seus paramilitares querem «dedicar-se às famílias e voltar à vida normal que levavam anteriormente». Ele, pessoalmente, poderá, com prazer e alívio pelo dever cumprido, entregar-se à sua «vocação de agricultor, de industrial, de empresário».

Mancuso, como Castaño, é um mafioso. A hipocrisia escorre de cada parágrafo do discurso desses Tartufos. As suas palavras prescindem de comentários. Eticamente pertencem à mesma família de Uribe, seu protector.

As FARC e a ONU

No dia 17 de Julho pp, o Secretariado do Estado Maior Central das FARC-EP tornou pública uma Carta Aberta dirigida das Montanhas da Colômbia ao secretário-geral das Nações Unidas.

No preâmbulo explicam o motivo da iniciativa: o apoio condicionado que a ONU ofereceu à luta do presidente da Colômbia «contra o terrorismo e o narcotráfico».

Registou a organização revolucionaria de Manuel Marulanda que a ONU se absteve de usar a linguagem de Uribe para qualificar as guerrilhas colombianas .

O Estado Maior das FARC esclarece e reivindica:

«As FARC-EP são povo em armas, uma organização revolucionária político militar de oposição ao Estado e ao regime político colombiano, uma força beligerante com opção de poder. Ao tomarem conhecimento pela imprensa dos resultados das entrevistas, fóruns e seminários de emissário dos governo da Colômbia na União Europeia (...) solicitam igual tratamento, espaço e garantias para explicarem a sua proposta de Novo Governo para a Paz, contida na Plataforma Política e transmitir directamente, de viva voz , os argumentos políticos indispensáveis para que o senhor e a organização mundial que representa, no uso do seu bom julgamento, possam analisar e concluir com segurança se realmente convém dar apoio ao senhor Uribe Vélez, ou se, pelo contrário, essa não é a contribuição ao conflito interno da Colômbia».

Acrescenta o Secretariado do Estado Maior que a entrevista solicitada permitiria informar a ONU do propósito das FARC de procurar uma «solução política para o conflito social e armado pela via diplomática».

Para surpresa e preocupação de Uribe Vélez, Koffi Annan, em declarações à comunicação social, manifestou-se aberto ao diálogo com as FARC, que propuseram como seu representante num eventual encontro o comandante Raul Reyes. Como é do domínio público, as FARC exigem negociações directas com o Governo, recusando a mediação das Nações Unidas para solução dos problemas internos, nomeadamente a troca de prisioneiros. Em confronto estão dois conceitos de soberania nacional. Isso não impede que as FARC estejam empenhadas em informar a ONU das suas posições reais, desmontando as calúnias contra elas forjadas.

Entretanto, aprofunda-se a contradição entre o discurso de Uribe, enfeitado com as flores da Paz, e a militarização do pais, e a sua política de Guerra Total. No plano militar, as coisas correm mal, aliás, para o presidente. O general Ospina, o comandante chefe, continua a prometer vitórias decisivas sobre as guerrilhas. Mas nas ultimas semanas as FARC infligiram duras derrotas ao exército e aos paramilitares.

Os factos desmentem a gritaria triunfalista de Uribe exibindo-se nos seus jogos de trapezista.


Inclusão: 04/11/2021