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Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
Talvez em dia não distante um escritor com o génio de Shakespeare se inspire na guerra de agressão contra o Iraque desencadeada a 20 de março de 2003 para escrever uma moderna tragédia. Nela poderiam desfilar pela cena muitos vilões e alguns farsantes, mas o herói seria um só e colectivo: o povo, filho de lentas e dolorosas sínteses de grandes civilizações.
Há mais de dois anos que, no Fórum Social Mundial, venho denunciando o perigo da ascensão de um fascismo de novo tipo nos EUA, gerado por um sistema de poder monstruoso cuja dinâmica e objectivos configuram uma ameaça à própria continuidade da vida na Terra.
O presidente do Movimento dos Não Alinhados definiu há dias a Administração dos EUA como mais agressiva do que a do III Reich nazi. Não exagerou. Mas os paralelos entre Bush e Hitler dificultam, por descabidos, a compreensão do perigosíssimo momento que estamos vivendo.
Bush é na escalada de horrores que nos empurra para o abismo uma figura insignificante que ostenta as insígnias de um poder que é exercido por uma engrenagem que o controla e utiliza. Falta-lhe a força de um Otelo, a coragem de um Henrique V, a dúvida angustiante de um Hamlet. A ambição arrogante, sem poder real, não faz o líder. No IV Reich que desafia a humanidade não há um Fuhrer. Um grupo de personagens que representa o sistema toma nos bastidores decisões que a expressão é de Chomsky podem «muito possivelmente levar à extinção da espécie, o que não é uma especulação ociosa».
Dois grandes escritores britânicos, Aldous Huxley e Orwell, um aristocrata liberal e um antifascista, esboçaram em livros fascinantes, nos anos 30, situações que prenunciavam a grande crise de que neste inicio do Século XXI somos simultaneamente espectadores e vitimas. Nas suas utopias iluminaram um planeta Terra, culturalmente destruído, no qual forças e grupos instalados no poder haviam robotizado o homem, transformado em instrumento dócil de estratégias alucinatórias.
Na base da cuidadosa preparação desta guerra iraquiana encontramos a mesma insanidade, o mesmo cinismo frio que pode ser identificado no assalto à razão que acompanhou desde o inicio o avanço do nazismo na Alemanha de Weimar.
Inicialmente a equipa mais íntima do Presidente, de Cheeney a Wolfowitz e Perle, passando pela sinuosa Condoleeza, ainda demonstrava preocupação mínima com as aparências. Quando a metralha começou a explodir nas cidades do Eufrates e do Tigre o discurso mudou. Agora, quando Rumsfeld acusa o Iraque de violar a Convenção de Genebra por mostrar na TV prisioneiros norte-americanos faz lembrar a lógica e a ignorância dos epígonos de Goebbels e Goering. Bush não lhe fica atrás. Chama ao telefone Putin e repreende-o, acusa a Rússia de ter vendido ao Iraque equipamento que lhe permitiria neutralizar a capacidade das tropas dos EUA para o combate na escuridão. A acusação não tinha fundamento. Mas dela se conclui que para Washington o exército do Iraque comete um crime ao defender-se.
Nos Estados Unidos as trombetas da guerra continuam a anunciar vitorias, advertindo, porem, que «iraquianos fanáticos» resistem, pelo que a guerra não será, afinal, tão rápida e cómoda. Foram derrubados aviões e helicópteros; mas as imagens das carcaças não aparecem na televisão. Morreram em combate oficiais e soldados estadunidenses, e, contudo, não lhes mostram os corpos. Há prisioneiros; o mundo teve a oportunidade de os ver e ouvir. Mas não o povo norte-americano. Nem as suas famílias têm o direito de se fazer ouvir. Uma vaga de autocensura implantou-se nos mass media da grande republica em acordo tácito entre a Casa Branca, o Pentágono e os proprietários dos grandes oragos de comunicação social.
Teimosamente, todos insistem em citar a coligação de 30 países que estaria empenhada na grande cruzada contra Sadam-Satã, lutando ombro a ombro com os EUA. É outra mentira. As forças invasoras, nesta guerra de agressão, são dos EUA e da Grã-Bretanha, apoiadas por um pequeno contingente australiano. Os aliados são ficcionais.
Nem sequer há tropas combatentes da Espanha, porque Aznar, que se move nos bastidores do espectáculo sangrento como um pequeno Iago, tem medo da reacção do seu povo se enviar militares para o deserto iraquiano.
A guerra principiou há uma semana e assume já facetas de tragédia. As imagens de Bagdade em chamas, atingida por armas «inteligentes e limpas», que matam centenas de civis, trazem à memória cenas do Inferno de Dante. Bassorá, uma cidade com dois milhões de habitantes, está sem água potável há dias.
Em Washington o porta-voz da Casa Branca manifesta satisfação pela marcha da operação «Libertação do Iraque». O IV Reich sente orgulho pela sua obra.
O sistema é muito mais frágil do que parece. Está doente. A força militar mais poderosa da história é o instrumento de agressão de um capitalismo que entrou em decadência e não tem soluções para sair da crise pantanosa em que se atola.
Mas que fazer, então ?
Nas últimas semanas a vulnerabilidade do sistema ficou transparente.
A derrota sofrida pelos EUA no Conselho de Segurança apresenta um significado muito maior do que os analistas da grande imprensa lhe atribuem. Ao demonstrar o isolamento de Washington e a condenação da guerra anunciada, aquilo que se passou assinala o fim do grande medo que durante anos paralisou o combate à irracionalidade estadunidense.
A ONU não foi capaz de deter o funcionamento da máquina de guerra de um pais cujo sistema de poder pretende transformar o mundo num protectorado. Afirma-se com razão que essa impotência é desprestigiante. Mas não se valoriza suficientemente a resposta dos povos tomando em todo o planeta as ruas para protestar contra o genocídio iraquiano e proclamar que a humanidade rejeita a tutela de um IV Reich.
A cada dia que passa, a mobilização contra a guerra cresce. Milhões de pessoas que nunca haviam participado de iniciativas similares desfilam em protestos gigantescos, concentram-se junto das embaixadas e bases dos EUA, dizem NÃO ao monstruoso crime cujas imagens contemplam nos televisores.
Estão a verificar-se convergências difíceis. Partidos, movimentos sociais, intelectuais, sindicatos, estudantes, camponeses, gente de todos os continentes, de correntes de pensamento muito diferenciadas somam esforços e vozes num combate que em defesa da humanidade assume um caracter global, planetário.
Repito, o inimigo, um sistema de contornos neofascistas, é muito mais vulnerável do que parece. As gigantescas manifestações de protesto nos EUA constituem a melhor demonstração disso.
A firmeza dos governos da França e da Alemanha, resultante sobretudo da formidável pressão dos respectivos povos, representa na actual conjuntura um factor importantíssimo, reforçado pelo apoio recebido da Rússia e da China.
Há dias, falando no México com um amigo inglês, combatente de muitas lutas pela humanidade, ele previa que, a prolongar-se a guerra por algumas semanas, Blair não poderia manter-se.
O povo britânico, herdeiro de uma grande cultura, não assume hoje a mentalidade imperial das gerações da época vitoriana. A sua consciência social é muito mais profunda do que a possível numa sociedade como a estadunidense, mal sedimentada.
«Oxalá tenhas razão», respondi-lhe.
Uma ruptura do eixo Washington-Londres seria, pelo seu significado, um golpe devastador para o sistema de poder que ameaça a humanidade.
Os EUA dispõem de força para ganhar militarmente a guerra abjecta que impuseram; mas já a perderam politicamente, embora disso ainda não haja consciência na Casa Branca e no Pentágono.
Enquanto a tragédia prossegue, a luta dos povos tende a intensificar-se. É dela da transformação em avalancha da grande maré de protestos que depende em grande parte o desfecho da tragédia em desenvolvimento.
Uma certeza: o povo do Iraque emerge, pela sua resistência, como herói colectivo num capítulo inesperado da história da humanidade. Surge para quantos neste angustiado planeta amam a liberdade como digno do maravilhoso cenário dos seus antepassados em que se bate por toda a humanidade contra os novos bárbaros do século XXI.