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Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
Naquela tarde de Janeiro, quando apareceu na tribuna, as ovações, os gritos, os sorrisos que saudaram a sua presença no grande anfiteatro natural do Por do Sol, em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial, transmitiram melhor do que as imagens de um filme a complexidade e a profundidade da relação que no Brasil se estabeleceu entre ele e a maioria dos 53 milhões de cidadãos que o levaram à Presidência.
Não foi o lado afectivo, emocional, que mais me impressionou, mas a esperança infinita que os brasileiros ali concentrados mostruário de um pais continente transmitiam em clamores e gestos que expressavam confiança naquele homem.
E esse sentimento, por excessivo, deixou-me apreensivo. Na América Latina o líder assume no desenvolvimento da história um papel mais importante do que na Europa. Mas Lula é um líder atípico. O poder não o fascina, nunca o perseguiu. O seu carisma nasce da esperança de transformação social que milhões de pessoas, sobretudo a enorme massa dos que vegetam na pobreza ou na indigência, esperam dele.
Essa atmosfera quase messiânica não o favorece. O Brasil não arrancará para o futuro magicamente catapultado por um salvador providencial. Aquilo que pode ali mudar o rumo da historia é uma política democrática e progressista, apoiada pelo povo, que consiga desmantelar a pesada herança de séculos de opressão o desafio que enfrenta o ex-torneiro mecânico do Nordeste guindado pelo voto popular, após três fracassos, ao Palácio da Alvorada.
Poderá Lula, submetido a formidáveis pressões externas e internas, levar adiante a anunciada e desejada mudança? Terá condições, concretamente, como líder de uma coligação de forças extremamente heterogénea de viabilizar um modelo de desenvolvimento que rompa com a estratégia da dependência aplicada pela administração de Fernando Henrique, que invocando uma falsa modernização, foi, nos seus dois mandatos, um executor de um projecto neoliberal concebido em beneficio do imperialismo e das elites responsáveis pelo dramática situação do país?
Em primeiro lugar a resposta não dependerá do homem, mas do povo brasileiro. Alguns lideres, sobretudo em momentos críticos da historia, influem, por vezes decisivamente no seu caminhar, mas são basicamente os povos o sujeito da mudança.
Aliás, Lula não ignora que a sua imensa popularidade não faz dele um Fidel ou um de Gaulle, para citar dois estadistas de dimensão excepcional, um como revolucionário, o outro como reformador burguês.
Amo o Brasil como segunda pátria. Por muitos anos fiz minhas as lutas do seu povo, delas participando activamente como militante revolucionário. E é por sentir, como se brasileiro fora, os seus êxitos e fracassos que vejo na reflexão critica, por dura que seja, sobre o projecto e a praxis do novo governo a mais útil e fraterna forma de solidariedade a meu alcance.
A euforia desencadeada pela vitoria, tamanha a sua dimensão, gerou, naturalmente, muitas ilusões românticas. A esmagadora votação obtida por Lula foi expressão de um descontentamento muito generalizado. O eleitorado, na escolha do ex-torneiro mecânico, do corajoso e tenaz líder sindical das greves contra a ditadura, condenou as políticas das elites que levaram à beira do abismo um dos países mais ricos do mundo. Mas a amplitude da vitoria transmitiu também um recado. A coligação que apoiou a candidatura de Lula representa um conjunto de partidos e forças políticas reunidas em torno de um programa mínimo de campanha. Não cabe aqui discutir se a amplitude do leque foi excessiva. As derrotas da esquerda nas três eleições anteriores demonstraram, porem que, para ser eleito, Lula teria de receber o apoio de sectores sociais que, antes, haviam combatido o mesmo candidato. Contradições importantes que opunham os interesses de uma parcela da burguesia industrial à política neoliberal de FHC, nomeadamente a sua completa submissão às transnacionais e às imposições do Consenso de Washington, facilitaram apoios inesperados a Lula. Era previsível, entretanto, que uma vez eleito, muitos dos que haviam aceitado passivamente o programa de governo de Lula passariam a sabotar, ou pelo menos travar a sua execução, não obstante o projecto de mudança ser muito moderado.
Somente partidos e grupelhos esquerdistas e neoanarquistas podiam acreditar na existência de condições para uma política do novo governo orientada para transformações económicas e sociais imediatas.
A grande questão que rapidamente abriu clivagens no grande bloco dos apoiantes de Lula é inseparável da resposta a uma pergunta: quais os limites desejáveis do possível?
A opção de Lula ou mais exactamente do punhado de personalidades que juntamente com o Presidente toma as decisões definidoras da estratégia do Executivo distanciou o governo do programa, já de si muito prudente, da Campanha.
Não é de estranhar que intelectuais que haviam participado activamente nesta tenham formulado as primeiras críticas logo que foi conhecida a composição do Ministério (com a peculiaridade de Lula, em gesto infeliz, haver revelado nomes importantes em Washington, durante a sua visita aos EUA).
Escolhas como a de Palocci para a Fazenda e a de Meirelles para o Banco Central dois casos muitos significativos chocaram a esquerda do PT e, obviamente, aliados como o Partido Comunista do Brasil.
Foram espelho de uma tendência para uma cascata de concessões a Washington e a forças políticas que internamente tudo farão para sabotar, na altura própria, as metas sociais anunciadas por Lula.
Que tipo de lealdade se pode esperar de um neoliberal como Meirelles que transita da presidência do Bank of Boston para a presidência do Banco Central? A sua decisão de manter em funções todos os directores nomeados pela antiga administração e os elogios que dirigiu a Armínio Fraga, o seu antecessor, ex-funcionário do especulador George Soros, são esclarecedoras do tipo de política monetária que se propõe a desenvolver. A autonomia real, embora não oficial, que, por iniciativa do ministro da Fazenda foi atribuída ao Banco Central, configura um rude golpe na soberania nacional. Como recorda Celso Furtado, «não é possível ser independente e ao mesmo tempo formar parte do sistema financeiro internacional».
O ministro da Fazenda um ex trotsquista arrependido fez repetidamente o elogio de Malan, o estratego financeiro de Fernando Henrique. Tal atitude retracta-o ideologicamente melhor do que o cartão de militante do PT.
O ministro do Desenvolvimento e da Industria, Luís Furlan é um empresário bem sucedido, mas seria uma ingenuidade não ver nele um homem do grande capital, um habitué de Davos cujos objectivos são incompatíveis com a mudança social pela qual Lula se bate desde a juventude.
A correlação de forças existente na Região exigia uma transição muito cautelosa. Seria uma irresponsabilidade desafiar Washington com medidas que logo no início do mandato alarmassem o governo Bush e o Congresso. Ninguém nos sectores mais conscientes da esquerda exigia isso de Lula. Mas o que aconteceu decepcionou.
A equipa económica não se limitou a tranquilizar a direita norte-americana. Tratou de conquistar a confiança do grande capital internacional mediante uma política de puro continuísmo.
Três semanas depois de tomar posse o Banco Central elevou a taxa de juro de 25% para 25,5%. Quase simultaneamente Palocci informou que a taxa do superavit primário seria elevada de 3,75% para 4,2%. Ora o superavit é tudo que o Executivo, através de cortes no Orçamento federal, economiza para pagar os juros da divida publica interna (900 mil milhões de dólares). Ambas as decisões foram festejadas em Washington e duramente criticadas no país pelas forças progressistas. Não faltou quem lembrasse que Palocci ultrapassava os compromissos assumidos com o FMI, salientando que os cortes no orçamento iriam afectar, directa ou indirectamente, as áreas sociais.
O mal estar que a política económica estava provocando na ala esquerda do próprio PT acentuou-se a 19 de Fevereiro, quando o Banco Central, com a aprovação do ministro da Fazenda, decidiu elevar pela segunda vez em poucas semanas, a taxa de juro, de 25,5% para 26,5% ao ano. Passou a ser uma das mais altas do mundo. Este novo aperto monetário, muito aplaudido em Washington, foi acompanhado de um acréscimo do recolhimento compulsório sobre depósitos à vista, que passou de 45% para 60%.
O credito tornou-se mais difícil, o que suscitou descontentamento em amplos sectores do comercio e da indústria.
Palocci e Meirelles invocam a necessidade de conter a inflação o índice de preços ao consumidor aumentou 11,99% para justificar as medidas.
Mas o discurso da ala liberal do governo não convence. O argumento de que a política de austera defesa da economia aplicada por Palocci é absolutamente necessária para, ultrapassada a fase da transição e consolidação, o governo promover a sua política social é refutado por uma percentagem crescente de apoiantes de Lula, sobretudo pelos sindicatos e pelos intelectuais.
Segundo alguns economistas, essa política traz à memória o caminho chileno. Alias, mais do que aos interesses da burguesia nacional onde um importante segmento a desaprova responde à preocupação quase obsessiva de agradar ao sistema de poder dos EUA.
Algumas das reformas que o governo vai submeter à aprovação do Congresso já provocaram debates apaixonados antes mesmo de o seu conteúdo exacto ser conhecido. Tal é o caso das reformas da Previdência e Fiscal que vão encontrar forte oposição; para muitos elas ferem direitos e regalias conquistadas há décadas pelos trabalhadores. Quanto ao «Contrato Social» que Lula se propõe a construir em Davos voltou ao tema não passa por enquanto de uma figura de retórica, mas a simples ideia de uma ampla aliança de classes em torno do projecto do Presidente suscita perguntas sem resposta. Em Davos, o Presidente não clarificou dúvidas ao aludir a «pontes a serem ajeitadas entre os dois Fóruns». Os abraços que ali recebeu de gente como Soros, Bill Gates e o presidente do FMI foram abraços florentinos, de inimigos de classe. Quando Lula afirma que eles também pretendem eliminar da terra a fome, a miséria, a ignorância, não toma em conta que a elite representada na cidade milionária da Suíça repete esse discurso há anos, mas na prática tudo faz para aumentar a desigualdade no planeta. Lula convidou a mafia do capital a «olhar o mundo com outros olhos». Que terá pensado essa gente ?
A repetida afirmação de que não há outra política possível no momento é refutada por destacados quadros do PT e de outros partidos da coligação.
Em Havana, durante a Conferencia sobre a Globalização, o prof. Nildo Henriques, da Universidade de Santa Catarina, afirmou que, mantendo a sua confiança em Lula, lhe parece urgente corrigir o rumo, porque outra política económica é não só possível como necessária.
O Brasil não é o Equador, onde o medo do gigante do Norte fez Lúcio Gutierrez capitular antes mesmo de tomar posse.
No Brasil, a direita, desacreditada pelos efeitos calamitosos da sua política, não teria condições mínimas para imitar a sua irmã venezuelana e responder com uma paralisação de grandes dimensões a uma estratégia prudente mas atenta aos sofrimentos do povo e orientada para a defesa dos interesses nacionais e da soberania nacional.
Ora a transição não está a responder minimamente às mais modestas aspirações populares e à imensa esperança que a eleição de Lula simboliza.
O discurso humanista do Presidente não se traduziu, transcorridos 50 dias, em iniciativas concretas que expressem uma vontade firme de transformar a sociedade.
A política exterior diz-se difere profundamente da anterior e dela transparece a decisão do governo de assumir a defesa da soberania nacional. Na afirmação há muito exagero.
Pouco se viu até agora nesse campo. A posição do governo perante o desafio-chave da ALCA não é clara. O Itamaraty pretende evitar a negociação bilateral com os EUA, o que é correcto. A decisão de se apresentar perante Washington em bloco com os países do Mercosul evitará possivelmente cedências muito graves. Mas não deixa de ser um mal menor. Porque a negociação, mesmo item por item, implica a aceitação do projecto imperial. Ora a ALCA, se for adiante, será para a América Latina uma catástrofe irreparável, envolvendo a perda da soberania. Significará a recolonização política, económica, cultural.
O Brasil não está em situação de afirmar secamente que recusa a ALCA, que se nega a negociar a sua entrada. Mas aceitar as regras do jogo, submeter-se ao calendário imposto pelos EUA e sentar-se na mesa das negociações a discutir, submisso, as suas exigências, será capitular.
A Venezuela tem assumido uma atitude muito mais inteligente. Chavez acaba de propor o adiamento da ALCA para 2015 e propõe como alternativa a ALBA, uma aliança bolivariana. Claro que Washington não concordará. Mas o caminho certo é recorrer a todos os artifícios possíveis para protelar o diálogo sobre o ultimato estadunidense.
O secretário geral do Itamaraty, o embaixador Samuel Guimarães é autor de lúcidos ensaios sobre o perigo mortal que a ALCA carrega para o Brasil e a América Latina como totalidade. Mas qual será a sua margem de manobra, diante das pressões a que certamente se acha submetido? Ignora-se.
Também no tocante à ameaça de guerra a posição brasileira tem sido insuficiente. Evoluiu positivamente nas ultimas semanas. Mas continua marcada por hesitações e excesso de timidez. O temor de ferir a arrogância norte-americana é transparente. Ora a estratégia de Washington configura uma ameaça à humanidade. Foi a compreensão dessa realidade que mobilizou os povos da França e da Alemanha contra a guerra, forçando Chirac e Schroeder a assumir nas Nações Unidas uma atitude que contribuiu decisivamente para as gigantescas manifestações do 15 de Fevereiro. Obviamente que no Brasil não estavam reunidas condições para que as ruas das grandes cidades fossem ocupadas por centenas de milhares de pessoas. Mas certamente as manifestações de São Paulo e do Rio teriam tido outra dimensão de grandeza se o Governo de Lula vencido o medo da repreensão americana e de represálias do FMI houvesse posto outro empenho e veemência na condenação de uma guerra monstruosa que pode comprometer a própria sobrevivência da humanidade. A resposta do povo brasileiro teria fortalecido a sua imagem e a sua posição de interlocutor perante o império norte-americano.
Lula recebeu as insígnias do Poder, mas a Presidência não significa o controle do Poder.
Ele tem consciência disso. A frente de partidos que apoiou a sua candidatura e as adesões de última hora não lhe asseguraram maioria no Congresso.
Era inevitável que para governar, para não entrar num conflito suicida com o Legislativo, o PT teria de negociar não somente com a oposição, como também com aliados recentes que meses antes se opunham a Lula.
Acompanhei de São Paulo, durante cinco semanas, a marcha dessas negociações que transcorreram, conforme os casos, com maior ou menor transparência.
Não foram os resultados que me chocaram. O pior foi o estilo, aquele que vem dos tempos anteriores à ditadura militar. Tudo correu à moda antiga.
Lula vai certamente empenhar-se no combate à corrupção, que é, com a violência, um flagelo endémico no país.
Mas será difícil o combate a praticas e atitudes que, irrelevantes economicamente, são importantes numa perspectiva ética da política, por serem geradoras de sementes da corrupção.
Cito um exemplo. A acumulação de vencimentos de ministros, tradicional em governos anteriores, persiste como incidente de rotina. Com raras e honrosas excepções, influentes ministros recebem, o que não deviam por funções de responsabilidade em empresas publicas. O chefe da casa Civil cargo correspondente a Primeiro Ministro ex-presidente do PT, embolsa cerca de 18 mil reais por somar ao seu vencimento subsídios relativos à sua condição de membro dos conselhos de administração da Petrobrás e da Bio-Itaipu. Poderá alegar-se que essa quantia, correspondente a 5 000 euros, não impressiona na Europa. Mas num país onde o salário mínimo é de 200 reais menos de sessenta euros e o aumento previsto não excederá 33 reais, o povo tem motivos para sentir frustração quando o primeiro ministro de um governo de esquerda ganha noventa vezes o mínimo nacional.
No Congresso, predomina o mesmo espírito elitista. Os parlamentares, que recebem 15 salários por ano, terão nesta Legislatura os seus vencimentos muito aumentados. Manterão o auxílio moradia e outras prebendas e a choruda verba destinada aos seus escritórios estaduais fonte de emprego para familiares em muitos casos será aumentada em 70%.
A permanência do velho estilo na defesa de privilégios inadmissíveis num governo que se propõe a mudar a sociedade, num lento processo de transição, trouxe-me à memória a advertência de um pensador cubano do século XIX, José de la Luz y Caballero. Dizia ele que revolução alguma pode cumprir-se e durar se não respeitar a ética na política.
É inevitável que, findo o período de graça dos 100 dias, se intensifiquem as criticas ao governo de Lula vindas de diferentes quadrantes que o apoiaram. E, a não ser alterada a política desenvolvida pela sua equipa económica, tudo indica que continuará a receber elogios de amplos sectores de uma oposição que até agora não tem assumido esse papel. Essa contradição aparece com nitidez na atitude de «O Estado de S. Paulo», porta voz tradicional das forças mais conservadoras da sociedade brasileira. O grande diário família Mesquita é um dos poucos entre os principais jornais do pais que se tem abstido de críticas de fundo à política económica do governo.
A actual situação de expectativa não vai durar muito.
O efeito de choque do Programa Fome Zero já se esgotou. Nem as visitas do presidente ao Piauí e a outros Estados onde a pobreza atinge níveis alarmantes, nem o andamento do projecto, que suscita muitos reparos, contribuíram para persuadir a opinião publica de que essa campanha seja um elemento fundamental na estratégia global do novo governo.
À medida que as semanas passam, alastra o receio de que quanto mais prolongada for a política de inspiração neoliberal conduzida por Palocci e o Banco Central mais difícil será impor a sua substituição por outra que abra as grandes alamedas da esperança, orientada para a luta contra desigualdades afrontosas da condição humana.
Subestimar o inimigo é sempre perigoso. São envenenados os elogios que sobre Lula chovem de Washington. A actual política implica o risco de o seu governo se tornar refém das classes dominantes.
Não sem surpresa, a defesa teórica da estratégia que implica por tempo indeterminado o continuísmo ou seja as receitas de FHC sem FHC é assumida por ministros com um passado de esquerda. Tarso Genro, o ex-prefeito de Porto Alegre, um dos mais prestigiados dirigentes do PT, invocou Marx em artigo publicado na «Folha de S. Paulo» (30/Jan/03) para desenvolver uma abstrusa tese. Segundo ele, como o capitalismo não se desenvolveu normalmente no Brasil somente uma política económica equilibrada no âmbito do sistema permitirá a acumulação de riqueza sem a qual não será possível superar o atraso e arrancar para uma fase superior e a criação de condições para a humanização da sociedade. Não o afirma expressamente mas fica implícito que a receita será a neoliberal e que a sua duração não tem prazo. Mostra-se céptico quanto à possibilidade de «um outro socialismo».
O sociólogo português Boaventura Sousa Santos, com outro discurso em artigo mais académico, «A utopia realista», também publicado pela«Folha» (02/Fev/03) afina pelo mesmo diapasão. «O que mais distingue o presidente petista opina é a substituição da ideologia pela ética, enquanto registo de confrontação política». Elogiando o seu respeito pelos compromissos com o FMI, assalta-o, contudo, uma dúvida: em que medida «conseguirá o governo de Lula transformar as estruturas de poder social que transformaram o Brasil num dos mais injustos países do mundo?»
Afigura-se-lhe lúcida a opção de Lula ao escolher, como Mandela, para as áreas económicas «gente credível ante os mercados». Omite, porém, que as políticas desenvolvidas pelo dirigente africano impediram o cumprimento mínimo do programa de reformas que o levara à Presidência.
Não obstante as reiteradas afirmações de Lula (e de Dirceu, o influente chefe da Casa Civil) de que António Palocci conta com a sua plena confiança, afigura-se-me improvável que a política do controverso ministro possa ser mantida por muito tempo sem que isso afecte a coligação e abale a frágil unidade do PT, cujo funcionamento lembra mais o de um movimento do que o de uma organização partidária.
Li alguns discursos de Palocci e acompanhei entrevistas suas à televisão. Fez-me pensar no principio de Peter. Não me parece ter envergadura para o voo que ensaia. Não é obviamente uma águia. O ex-prefeito de Ribeirão Preto projecta a imagem de um político melífluo, sem grande cultura, que disfarça mal o que sente e pretende. Sentindo-se hoje pela mundividência atraído por receitas neoliberais incompatíveis com o projecto nacional do partido onde fez a sua carreira política, não demostra compreender que a política que tenta impor e o discurso que lhe serve de suporte vão suscitar a curto prazo não apenas uma oposição crescente da esquerda, mas fortíssima reacção popular, afectando o prestigio do presidente.
Não sem motivo se dirá que Palocci não é o único responsável por essa política. Mas emerge, com Meirelles, como a cabeça mais visível. Daí a sua maior vulnerabilidade.
Precisamente por ser um partido com uma grande tradição revolucionaria, o PCdoB B é, actualmente, entre as forças que contribuíram para estruturar a coligação que levou Lula à Presidência, aquela a quem a política de concessões à direita da equipa tende a criar problemas mais delicados. A sua lealdade ao Presidente não está em causa. Mas até quando um partido de esquerda, com uma história heróica, que faz da fidelidade aos princípios uma razão de existência, poderá aparecer como co-responsável de uma estratégia incompatível com esses principio, se ela não for alterada?
Menos incómoda é a posição do Movimento dos Trabalhadores sem Terra, definido por Chomsky como uma das forças potencialmente revolucionárias mais importantes do Continente.
Dirigindo-se ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, João Pedro Stedile, o seu destacado dirigente, foi muito claro. O MST permaneceu praticamente silencioso nas primeiras semanas do Governo. Espera. Mas o seu papel será incentivar a organização dos trabalhadores sem terra, e, sempre que necessário, «ocupar os latifúndios assim se expressou não para afrontar Lula, mas para ajudá-lo a fazer a Reforma Agrária».
Não foi uma ameaça, apenas uma advertência amiga. O MST é apenas uma parcela combativa do povo brasileiro. Bom será que o seu espirito de luta seja assumido por muitos milhões de trabalhadores nas grandes megalópolis do pais. Porque em última análise o êxito ou o fracasso do projecto de mudança que Lula simboliza dependerá da atitude que as massas assumirem no processo em curso. A história não avança sem a participação do povo.
Não é fácil a posição do Presidente Luís Inácio Lula da Silva. A transição obriga-o a percorrer um caminho eriçado de muitos obstáculos que não foram previstos nos longos anos de luta que precederam a sua esmagadora vitoria, nem imaginados pelo estratego da campanha, Duda Mendonça um génio perverso do marketing eleitoral.
No momento Lula, olhando em frente, lembra um equilibrista caminhando sobre o gume afiado de uma longa espada. Do outro lado encontra-se o pais humanizado, o sonho de muitas gerações por cuja materialização tem vivido e lutado. Mas o desafio é tamanho que entre a sua própria gente se erguem mãos que, fazendo oscilar a espada, o podem precipitar no solo.
Nunca talvez no povo do Brasil tenha brotado uma esperança tão imensa de que a vida, finalmente, pode ali ser transformada. Se o projecto fracassar o desfecho ser� trágico.
Lula tem certamente consciência de que a decepção é a outra face do entusiasmo messiânico. Não deve, assim, temer a participação do povo, a sua pressão permanente para que caminhe em frente. Quanto mais firme e forte melhor para o resultado das grandes confrontações que se esboçam num horizonte ainda nevoento. Porque o povo é o sujeito da historia.
Havana, 21/Fev/03