O vulcão venezuelano

Miguel Urbano Rodrigues

17 de dezembro de 2002


Fonte: http://resistir.info

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A situação criada na Venezuela faz pensar num vulcão que apresenta indícios de erupção e de cuja cratera podem começar a jorrar pelas encostas massas de lava incandescente.

Mas o futuro próximo na pátria de Bolívar é ainda incerto, como as tragédias telúricas antes de se consumarem.

A conspiração que tem por objectivo o afastamento de Chavez e a restauração do poder oligárquico que, através de ditaduras militares ou de governos de fachada democrática, impôs sempre a sua vontade discricionária ao longo dos 170 anos transcorridos desde afastamento do Libertador apresenta características inéditas.

As forças e personalidades que a promovem, derrotadas após um golpe fracassado, não responderam por actos, ostensivamente criminosos, que, por um período de 48 horas, implantaram o caos e a repressão fascista no pais, desmantelando a ordem constitucional e jurídica. Os civis e militares golpistas continuam em liberdade. O Supremo Tribunal de Justiça isentou-os de responsabilidades. Retomaram as actividades conspirativas e lançam quase diariamente inflamados apelos tendentes à deposição de Hugo Chavez.

Não há precedente na historia do Hemisfério para um desafio impune tão longo orientado para a destruição de instituições democráticas.

A paralisação organizada e convocada pelos conjurados com o apoio total de um sistema mediático que exerce um controle praticamente hegemónico sobre a televisão, os jornais e a radio, apresenta sinais de esgotamento. Após duas semanas de um lock-out com figurino de greve imposto mediante pressões e ameaças, a maioria dos estabelecimentos que haviam fechado reabriu as suas portas. Milhares de comerciantes, incluindo muitos ligados à Fedecamaras (motor, com a Confederação sindical amarela, da chamada Coordenadora Democrática) estão cansados de serem instrumentos de uma política que não responde aos seus interesses e os opõe à esmagadora maioria da população trabalhadora.

A grande cartada da paralisação do sector petrolífero também falhou. Segundo o vice presidente Rangel, a manobra de sabotagem, que contou com o apoio dos principais administradores e de muitos quadros técnicos da Petroleos de Venezuela, não atingiu os seus objectivos. O abastecimento de gasolina e gasóleo nas grandes cidades está melhorando, a situação nas refinarias tende para a normalização. A intervenção da Marinha num navio cujo comandante se havia rebelado, obstruindo a saída do Lago de Maracaibo, foi declarada inconstitucional por um Poder Judicial que actua como instrumento da extrema-direita. Chavez, em gesto inédito, ignorou a decisão do Tribunal e recorreu ao Exército para intervir nos barcos que estão obstruindo a exportação de petróleo.

O povo trabalhador da Venezuela tem sido o herói na confrontação de forças sociais que se enfrentam no contexto de uma intensa luta de classes. Sem a coragem, a tenacidade, o espirito de luta e a consciência de classe dos milhões de moradores dos bairros pobres de Caracas e de outras grandes cidades a defesa da democracia venezuelana e do projecto progressista dela inseparável não seria possível.

A cúpula golpista deixa transparecer, pela própria natureza dos seus desafios, sintomas de nervosismo. Mas não deve subestimar-se a extrema gravidade da situação existente.

Na aparência as Forças Armadas permanecem firmes na sustentação da legalidade institucional. Mas o simples facto de quase diariamente oficiais que participaram no golpe de Abril se apresentarem uniformizados na Praça Altamira, no coração da Caracas oligárquica e juntamente com outros (alguns no activa) lançarem de ali apelos à rebelião militar e à deposição do presidente sem que nada lhes aconteça é esclarecedor da complexidade da relação de forças existente no pais. A decisão do comandante chefe do Exército, general Julio Garcia Montoya, de condenar a paralisação golpista como acto de sabotagem e de fazer intervir a instituição militar na defesa da legalidade constitucional, mobilizando tropas para o restabelecimento da normalidade no sector petrolófero e na área do abastecimento foi, entretanto, muito importante.

O ENVOLVIMENTO DOS EUA

A cumplicidade de Washington na conspiração em marcha é inocultável, tal como foi o seu envolvimento na preparação do putsch da Primavera passada.

O general Colin Powell durante a sua recente visita a Bogotá manteve reuniões secretas com os generais fascistas colombianos Enrique Medina, um homem dos paramilitares, e Mora Rangel, ex-comandante do Exercito, ambos seus antigos colegas na famosa Escola das Américas. Pedro Carmona — o golpista que se auto — proclamou presidente da Venezuela no 11 de Abril e durante dia e meio desencadeou uma repressão selvagem no pais, movimenta-se sem limitações pela Colômbia, conspirando.

Entretanto, no auge da crise, a Casa Branca emitiu a surpreendente nota em que sugeria a Chavez como solução para os problemas do país a convocação de eleições antecipadas. A iniciativa, como alguns jornais dos EUA reconheceram, configura uma flagrante violação das normas internacionais que regem as relações entre Estados soberanos. Na prática, Bush pede a Chavez que viole uma Constituição aprovada pela esmagadora maioria dos venezuelanos.

O intervencionismo estadunidense manifesta-se simultaneamente nas atitudes arrogantes assumidas pelo embaixador norte-americano no Conselho da OEA que, sob a presidência do ex-presidente colombiano César Gaviria, pretende cumprir o papel de mediador.

Basta acompanhar os noticiários da CNN para se perceber que um autentico frenesi anti-Chavez é hoje identificável na Casa Branca, no Pentágono e no Departamento de Estado.

Num oportuno artigo, o influente jornalista latino-americano Carlos Fazio acaba de evocar a histeria anti-chilena e as iniciativa que a traduziram em Washington quando Salvador Allende foi eleito presidente do Chile.

A Venezuela Bolivariana não defende um projecto similar ao condensado nas 100 Medidas da Unidade Popular. Mas a simples defesa da soberania nacional e as cautelosas reformas propostas por Chavez são inaceitáveis para a Administração Bush.

Fazio recorda que antes mesmo de Allende tomar posse já se havia reunido em Washington o Comité dos 40 com o objectivo de criar o caos no Chile e desencadear ali acções terroristas. Na época a CIA destinou ao financiamento dos partidos da oposição 8 milhões de dólares e uma verba especial ao diário El Mercúrio, o principal jornal da direita.

Kissinger teve então um desabafo memorável: «Não vemos motivo para permanecer de braços cruzados, contemplando a transformação em comunista de um pais devido à irresponsabilidade do seu povo».

QUE DESFECHO?

Chavez ao dirigir-se ao povo no seu Programa «Alô Presidente», mostrou-se confiante na evolução da crise, valorizando a contribuição decisiva dos trabalhadores da industria petrolífera para a derrota da ambicioso plano que visava paralisar esse sector nevrálgico da economia.

Mas ao promover novas manifestações, a oposição contra-revolucionária consegue manter, sobretudo na capital, uma atmosfera de tensão permanente que contribui para o agravamento da difícil situação económica e financeira do país e permite aos media nacionais e internacionais esboçar o quadro de uma sociedade à beira da desagregação.

Carlos Ortega, o dirigente sindical da CTV, a central controlada pela direita e financiada por empresas transnacionais, anuncia aliás que estão em preparação iniciativas de combate ao governo que vão exceder tudo o que no género se viu ate agora.

Ortega é um aventureiro que recorre aos métodos mais sujos. A contratação por elementos da oposição de pistoleiros estrangeiros para provocações concebidas com o fim de atribuir ao governo crimes ideados pela direita é, aliás, reveladora do nível a que desceram os inimigos de Chavez.

O refluxo da paralisação assinala a dificuldade da oligarquia em atingir os objectivos fixados dentro do calendário previsto. A oposição não demonstrou nestas semanas angustiantes força suficiente para impor nem a renuncia do presidente nem as eleições antecipadas. Mas o governo não se sente também em condições de punir adversários que tripudiam sobre a Constituição. As fragilidades do processo transparecem da própria decisão do Governo de não aplicar o regulamento de disciplina militar aos oficiais que na Praça Altamira lançam apelos à insurreição, ovacionados pelas damas da grande burguesia.

Chavez afirma ter força suficiente para esmagar no berço qualquer nova tentativa de golpe militar. Mas na pratica gerou-se uma situação que no dia a dia apresenta a fisionomia de uma dualidade de poderes.

Nos três dias posteriores à derrota do putsch fascizante de Abril, o Presidente poderia, com apoio maciço da maioria dos venezuelanos, ter desmantelado a oposição, tomando as providencias adequadas. Não o fez. Espartilhado por um conceito rígido de legalidade institucional, optou por um diálogo com inimigos que o recusam e que aos apelos à discussão dos grandes problemas nacionais respondem com novas conjuras, actos de violência e iniciativas que lançam o caos na economia.

Esta dualidade atípica de poderes não poderá manter-se por muito tempo. A prova de força terminará com a vitoria das forças democráticas que apoiam Chavez ou com a derrota do projecto dito bolivariano, segundo o qual será possível transformar a sociedade venezuelana no quadro institucional sem recurso a métodos e iniciativas que o transcendam.

Como seria de esperar, no Brasil e no Equador, as organizações, partidos e personalidades progressistas que contribuíram decisivamente para as vitorias eleitorais de Lula e Lúcio Gutierrez acompanham com apreensão crescente o desenvolvimento dos acontecimentos na Venezuela. Em vésperas do Foro Social Mundial, que será cenário de um intenso e fascinante debate sobre grandes problemas da humanidade — debate político, económico e ideológico — aquilo que nestes dias está em causa na Venezuela assume um enorme significado não somente para a América Latina mas para todos quantos estão empenhados na luta contra a globalização e contra o projecto de dominação planetária do novo Imperialismo.


Inclusão: 01/08/2021