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Fonte: https://www.resistir.info/mur/colombia_28set02.html
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O pedido de extradição dos comandantes das FARC, apresentado por George Bush a Álvaro Uribe durante visita aos EUA do presidente da Colômbia, surpreendeu os aliados mais dóceis de Washington.
O espanto é legitimo. Mais do que iniciativa política parece episódio de uma farsa.
Um chefe de estado estrangeiro pedir a um colega a extradição, para serem submetidos à justiça do seu pais, dos comandantes da mais legendaria guerrilha da América Latina é atitude sem precedentes. Não menos surpreendente foi a prontidão da resposta. O sim foi imediato. Veio do presidente visitante, do seu superministro Londoño, das Forças Armadas Colombianas. O poder judicial no momento em que escrevo, ainda não se tinha pronunciado. O que não tem a menor importância.
Faltou somente o agradecimento de Uribe a Bush.
As facetas sensacionalistas desta estória ocultam mal os entendimentos que precederam a esdrúxula iniciativa bushiana. Na realidade tudo fora discutido em pormenor entre as partes, com muita antecedência e em atmosfera de fraternidade. Aliás, Bush pediu aquilo que Uribe lhe implorara que pedisse...
Voltemos um pouco atrás.
Uribe teve um início de mandato muito ruidoso. No momento em que tomava posse do cargo, em Agosto, quando cingia a faixa, rodeado de chefes de Estado e primeiro ministros, protegido por um dispositivo de segurança de 20 mil homens, o palácio presidencial foi bombardeado assim como outros edifícios públicos de Bogotá.
As suas primeiras medidas esburacaram mais a desconjuntada fachada institucional do Estado colombiano. Na pratica o país vive desde então sob estado de sítio (o nome é outro) e os decretos fascistizantes, atentatórios das liberdades e direitos constitucionais, sucederam-se. Um corpo especial de bufos passou a colaborar com as Forças Armadas e a policia política. São centenas de milhares de informadores remunerados e armados pelo governo. Nem na Alemanha de Hitler a delação foi organizada e financiada com tamanha minúcia e amplitude.
O discurso oficial que prometia rápidas e decisivas vitórias contra a insurgência, esse, não foi, porem, confirmado pelos factos.
O Exército — o mais numeroso e bem armado da América Latina — não conseguiu alcançar os êxitos anunciados pelos novos generais nomeados por Uribe. Os comunicados oficiais anunciam todas as semanas grandes vitorias. Mas o próprio «El Tiempo», o grande diário da oligarquia, mostra-se céptico quanto a esses triunfos imaginários. As FARC-EP estão activíssimas na maioria das 70 frentes de combate que em três Blocos agrupam aproximadamente 18 mil guerrilheiros.
Uribe deu continuidade a uma iniciativa de Pastraña. A cabeça dos principais comandantes guerrilheiros, posta a prémio, vale agora mais dinheiro. No conjunto são muitos milhões de dólares. Por Manuel Marulanda, «el Tiro Fijo» — um herói da América Latina — o governo pagaria uma fortuna.
O resultado pratico dessa iniciativa e do trabalho dos "sapos" (bufos) foi nulo: nem um só dirigente das FARC caiu nas mãos de Uribe.
Enquanto a ofensiva militar contra as guerrilhas prosseguia com muito estrondo e nenhum proveito, uma manobra ambiciosa desenvolvia-se paralelamente nos bastidores.
O protagonista foi, inicialmente, Carlos Castaño, o fundador das Autodefesas Unidas da Colômbia, eufemismo pelo qual se designam os bandos paramilitares, responsáveis pelo assassínio de dezenas de milhares de pessoas, sobretudo camponeses. No âmbito da disputa do poder dentro do paramilitarismo, Castaño, cuja carreira se fez no bojo do narcotráfico, voltara às manchetes por acusar publicamente alguns dos seus cumpinchas de envolvimento em negócios da droga.
Quando esse estranho processo de purificação começou a desencadear manifestações de solidariedade vindas das grandes famílias, o Procurador Geral da Justiça dos EUA, John Ashcroft, dirigiu-se ao governo de Bogotá.
Produziu-se então o golpe de teatro. Castaño longe de expressar indignação, declarou-se disponível para se entregar à Justiça dos EUA e responder ali às acusações que o visam.
Uribe aplaudiu. Significativamente, nem o Procurador da Republica nem o Supremo Tribunal levantaram objecções, ao contrário do que acontecera em oportunidades similares quando exigiram que narcotraficantes cujas extradições haviam sido solicitadas fossem julgados, primeiro, pela Justiça colombiana.
Castaño, aliás, nunca foi incomodado pelo Exército. Aparecia em público com frequência, viajava para o Panamá, recebia elogios de deputados e senadores, e um ex-candidato à Presidência da Republica, o general Bedoya expressou o seu apreço pessoal por ele.
Essa atitude é compreensível. O chefe do paramilitarismo foi, em determinado momento, segundo Juan Escobar, da Agencia de Notícias Nova Colômbia , «a invenção perfeita do Estado Colombiano, que o construiu e apresentou como um símbolo da luta contrainsurreccional».
O paramilitarismo nasceu nos quartéis. É um filho espúrio do Exército e parte da política de Estado colombiana.
O segundo acto desta farsa dramática principiou quando Castaño, em declarações a uma grande cadeia de televisão, a RCN, apresentou três condições para se entregar à Justiça dos EUA. Uma delas, a única relevante, surpreendeu um povo habituado receber com serenidade as atitudes mais absurdas: o criador das AUC exigiu que Washington solicitasse oficialmente a extradição dos comandantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo, FARC-EP.
Caso contrário, nada feito. Sem a contrapartida por ele exigida, considerar-se-ia «vendido». Assim falou. E a sugestão foi apoiada pelo Governo.
A cena seguinte foi dominada pela voz poderosa de Bush. O presidente norte-americano, lépido, deu instruções ao Procurador Ashcroft, que logo reclamou de Bogotá a extradição dos comandantes das FARC-EP.
A esse nível desceu o exercício da Presidência na Casa por onde passaram Jefferson e Lincoln.
Segundo a ANNCOL, o próximo capítulo seria de previsão fácil: «o Sr Castaño viajará, apresentar-se-á directamente perante um tribunal norte-americano se bem que nenhuma autoridade colombiana o verá sair de qualquer aeroporto do pais, fará uma «negociação» supremamente rápida com as autoridades gringas, delatando certamente alguns dos seus sócios no narcotráfico para dar melhor apresentação à coisa. Obviamente não será obrigado a pagar nem um só dia de cárcere naquele pais e ficará livre, gozando, além disso, ele e a sua família da protecção do FBI, desfrutando a sua volumosa fortuna».
O acordo prévio entre os actores que montaram todo este espectáculo é tão transparente e chocante que até o conspícuo «El Tiempo», instituição centenária da oligarquia, achou indispensável dedicar ao assunto um labiríntico editorial (25 de Set. pp) do qual transcrevo algumas perguntas:
«Por que decidem os EUA pedir a extradição da cúpula paramilitar e por que escolheram a viagem de Uribe para anunciar o pedido? O facto de o ministro de Estado, Fernando Londoño, ter sido o primeiro a comunicar a decisão de Washington indicaria acordo prévio entre ambos os governos? Pretende o chefe paramilitar salvar a pele delatando os capos dos novos cartéis, ou é parte de uma jogada de alta política a três bandas, que combina a narcotizada visão estadunidense do problema colombiano com os motivos que possa ter o governo de Uribe para se couraçar contra as acusações que lhe fizeram — até agora sem provas — das suas relações com o paramilitarismo».
Enquanto Castaño, contra o qual foram emitidos 23 mandados de captura, se dirigia, tranquilo, pela televisão, a 44 milhões de colombianos, o povo de El Charco, no Departamento de Nariño, pegou em armas (machados, revolveres e caçadeiras) e expulsou da pequena cidade um bando de 200 paramilitares que, ante a passividade do Governo, ali se mantinha há mais de um ano aterrorizando os moradores. O alcaide, para salvar a cabeça, teve de fugir.
Que faziam ali?
Segundo um morador «entravam e saiam do município quando queriam. Não pagavam a renda das casas onde se alojavam, comiam o que queriam e onde queriam e abusavam sexualmente das moças da cidade».
Consumada a expulsão dos paramilitares, o general comandante da Região, informado dos acontecimentos, decidiu enviar para El Charco um pelotão de fuzileiros navais para «restabelecer a ordem na zona».
Assim corre a vida nos «pueblos» onde os paramilitares de Castaño irrompem para «defender as populações» das guerrilhas
Ocupando-se desse e de outros temas, Álvaro Uribe pediu em Washington mais umas centenas de milhões de dólares ao seu colega dos EUA, mais armamento e, sobretudo a extradição dos comandantes das FARC.
Bush fez promessas, muitas, e em comentário amplamente divulgado sintetizou a magnífica impressão que lhe deixara o visitante:
«É necessário ajudar este bom homem».
Em poucas linhas os grandes jornais norte-americanos chamaram a atenção para um pormenor que não ficou claro: como se concretizará a extradição dos comandantes das FARC-EP? Eles encontram-se nas montanhas e selvas da Colômbia lutando pela liberdade e pela independência do seu povo. Aquilo que pelas armas não conseguiram em 37 anos os governantes de Bogotá com a ajuda de Washington não é obviamente concretizável através de um mandato judicial norte-americano. Ousará o presidente Bush levar a guerra também à Colômbia?