Lições da insurreição popular

Miguel Urbano Rodrigues

28 de junho de 2002


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


—"Por que os paralelepípedos foram retirados do centro de Arequipa?" perguntou o jornalista ao comandante da Terceira Região Militar, general de Divisão Óscar Gómez de la Torre Ovalle.

—"Esses paralelepípedos eram utilizados como projécteis e por isso decidimos retirá-los, informando a municipalidade", respondeu o general.

Em Junho, uma insurreição popular insólita alarmou o governo peruano e durante algumas noites tirou o sono aos generais que no Pentágono são responsáveis pelo controle daquela área da América do Sul.

A crise foi de curta duração, mas o presidente Alejandro Toledo, cuja popularidade já vinha descendo em queda livre, saiu dela totalmente desprestigiado. Segundo a última sondagem divulgada, somente conta agora com o apoio de 25% dos eleitores.

No Peru acontecimentos mais espantosos do que os forjados pela imaginação de Gabriel Garcia Marquez são comuns. Essa é uma herança do sincretismo histórico resultante da fusão inacabada de duas culturas antagónicas: a espanhola e a do incário. Mas desta vez ninguém julgava possível que o Sul do país se levantasse maciçamente contra o Poder Central, desafiando-o como não ocorria desde a grande sublevação dos índios, em 1780, liderada por Tupac Amaru.

NEGOCIATA ESCURÍSSIMA

Tudo começou com a decisão do governo de privatizar duas empresas responsáveis pelo abastecimento de energia eléctrica a Arequipa e outras cidades da Região.

No dia 12 de Junho o alcaide de Arequipa - a segunda cidade do país - e outros sete de municípios do Departamento entraram em greve da fome depois de terem esgotado todos os recursos legais no combate à lei que privatizava a Egasa e a Egesur, as empresas em causa. O povo apoiou-os com firmeza. Os arequipenhos já tinham levado o caso à Justiça, que na primeira instancia lhes dera toda a razão.

Actuando nos bastidores, Toledo montara, através de gente sua, uma negociata mediante o qual as citadas empresas passavam a ser propriedade da Tractebel, uma firma belga de péssimos antecedentes, filial da poderosa transnacional francesa Suez.

O escândalo já chegara à Europa, onde a Tractebel responde perante tribunais da Bélgica e da Suíça por acções de corrupção e suborno de governantes de países do Terceiro Mundo. No Peru muitos milhões de dólares tinham corrido por canais invisíveis. E em Arequipa sabia-se que os gestores da Tractebel já tinham preparada uma lista grande de despedimentos. Em nome, claro, da modernidade e da racionalidade da política do governo.

O povo saiu às ruas em apoio dos autarcas.

Toledo – o presidente mais bushiano de quantos existem na América Latina – não apreciou o gesto do alcaide de Arequipa e dos que o acompanharam. Acusou-os de terroristas, de simpatizantes do comunismo, etc, e deu instruções ao exército para restabelecer a ordem, tratando a populaça como ela, no seu entender, merecia.

O general comandante da região instalou na praça principal armas pesadas apontadas contra o povo. Foi declarado o estado de emergência no Departamento e imposto o toque de recolher. Mas a intimidação não funcionou. Os protestos aumentaram; a maré da solidariedade subiu, caudalosa.

Em Arequipa formou-se um Frente Amplio Cívico de solidariedade aos autarcas e de resistência à privatização da energia eléctrica.

Washington sentiu que chegara o momento de dar uma ajuda ao aliado fidelíssimo.

O embaixador dos EUA, cumprindo instruções do Departamento de Estado, achou oportuno opinar que a privatização era uma «medida correcta», acrescentando que identifica no presidente Toledo «um excelente governante».

A intervenção belicosa do representante de Bush caiu muito mal no Sul do país. A solidariedade com os arequipenhos ampliou-se. As autarquias dos Departamentos de Tacna, Moquegua, Juliaca, Ayacucho e Cuzco expressaram o seu apoio ao movimento de resistência popular.

Toledo assustou-se quando o protesto alastrou ao Departamento de Loreto, na Amazónia, o maior do país.

Uma comissão negociadora, que incluía um arcebispo, foi recebida à pedrada em Arequipa.

Percebendo, finalmente, que o movimento liderado pelo Frente Amplio Cívico assumira em poucos dias os contornos de uma insurreição local, o presidente Toledo recuou. Fez promessas e garantiu pessoalmente ao alcaide do Cuzco — a capital turística do Peru — que não privatizaria a empresa eléctrica da cidade. Simultaneamente cancelou à ultima hora uma viagem aos EUA, programada com antecedência, durante a qual deveria manter conversações delicadas com a senhorita Condolezza Rice, a fogosa assessora de Segurança de George W. Bush.

As ameaças cederam lugar a apelos públicos ao diálogo e à concórdia. O estado de emergência foi revogado, o toque de recolher também.

A chamada Declaração de Arequipa expressou um acordo provisório. O governo comprometeu-se a suspender a privatização das empresas até que a Justiça se pronuncie sobre a legalidade do contrato e as acusações de suborno que atingem a transnacional belga.

O documento é ambíguo como o discurso populista do presidente. Mas qualquer que seja a evolução dos acontecimentos, as populações do Sul do Peru tomaram consciência de que a sua firmeza na luta travada em defesa de uma posição comum foi decisiva para a vitória alcançada contra o governo central.

O saldo da repressão não será esquecido: um jovem morto, dezenas de feridos, espancamentos, uma centena de prisões, sindicalistas torturados.

A insurreição do povo de Arequipa repercutiu intensamente nos países vizinhos do Peru, sobretudo no Equador, na Bolívia e na Colômbia. Tendo no início um caracter espontâneo, aquilo que era um movimento de forças elementares constituiu-se numa ameaça ao Poder quando assumiu um caracter organizado através de uma Frente unitária em que participaram diferentes partidos e personalidades políticas de diferentes quadrantes ideológicos.

VELASCO NÃO FOI ESQUECIDO

Alguns analistas recordaram que todo o processo revolucionário deixa sementes que podem germinar quando surgem condições favoráveis.

O Peru — convém lembrar — foi cenário de transformações de caracter revolucionário entre os anos 68 e 75 durante a Presidência do general Velasco Alvarado. Nesse breve período desenvolveu-se a mais avançada Reforma Agraria que a América continental conheceu até hoje e foram estatizados os sectores estratégicos da economia. Uma medida radical e única na América do Sul foi a expropriação dos grandes jornais entregues a sectores sociais, como os Sindicatos, a Juventude, a Reforma Agraria, os Jornalistas, etc.

Um dos grandes erros do processo foi o seu verticalismo paternalista. Velasco e um grupo de generais e coronéis progressistas tentaram, no fundamental, impor medidas revolucionarias que destruíam estruturas capitalistas de uma sociedade oligárquica, sem promover a participação popular. O SINAMOS, Sistema Nacional de Apoio à Mobilização Social não funcionou; a sua prática foi também, desde o inicio, paternalista. O povo peruano — sobretudo as massas indígenas — nunca se sentiu sujeito de um processo transformador que o libertava de formas de servidão quase medievais, mas não soube mobilizá-lo para defender aquilo que obtinha quase sem esforço, vindo de um Poder diferente do que se conhecia na América Latina.

Muitos intelectuais, recorde-se, cumpriram, então, um papel negativo. Distantes, desconfiados, os brilhantes sociólogos, historiadores e cientistas políticos do Instituto de Estudos Peruanos e da Universidade de São Marcos, incapazes de compreender o significado das medidas de Velasco Alvarado que golpeavam o imperialismo e o poder económico da oligarquia crioula preferiram elaborar teses fantasistas sobre a impossibilidade de um governo de militares levar adiante um projecto de significado revolucionário. Uns definiram o governo de Velasco como uma ditadura militar, repetindo, afinal, o que a direita e Washington proclamavam; outros, mais sofisticados, elaboraram teses sobre a natureza do regime, qualificando-o de bonapartista ou neo-bismarkiano. Fervilhou então o disparate teórico entre a talentosa intelligentsia académica peruana...

O desfecho foi o que se podia esperar. Sem o apoio organizado de um partido de esquerda forte e de sindicatos bem implantados entre a classe operária e as massas indígenas — as grandes transformações revolucionárias foram rapidamente anuladas quando Morales Bermudez, um general reaccionário (que se mascarara de progressista como ministro de Velasco ) assumiu a Presidência através de um golpe palaciano, que a URSS saudou como positivo. O corpo de oficiais acompanhou passivamente a marcha para a direita como antes acompanhara, também passivamente, a política progressista de Velasco.

A insurreição do povo de Arequipa traz à memória lições importantes da história recente. Os que no Peru combatem pela democracia autentica e pelo progresso não as esqueceram.


Inclusão: 01/08/2021