A História da Dualidade Brasileira

Ignácio Rangel

Outubro/Dezembro de 1981


Primeira publicação: Revista de Economia Política, Rio de Janeiro, v. 1, n. 4, p. 5-34, out./dez. 1981.

Transcrição: João Henrique Zoehler Lemos.

HTML: Fernando Araújo.


Ao ser descoberta a América, o modo de produção característico da Europa era uma dualidade\ no seio de uma sociedade feudal, haviam-se desenvolvido fulcros de capitalismo. Era este, mesmo em seu estágio inicial de desenvolvimento – o capitalismo mercantil –, que imprimia ao sistema o prodigioso dinamismo, sua virtual ferocidade, tão bem retratados em Os Lusíadas, mas era o feudalismo que entrava com a carapaça externa, o enquadramento jurídico externo ao mesmo sistema, pelo lado através do qual ele entraria em contato com uma humanidade, não apenas em regime pré-capitalista como, pelo menos, no caso brasileiro, ainda pré-escravista.

Era uma dualidade diferente da que, depois, surgiria aqui:

  1. porque era temporária, visto que esse capitalismo nascente forcejava por romper a carapaça medieval, o que faria depois com as revoluções burguesas inglesa e francesa;
  2. porque o seu “polo” interno era o mais avançado e o externo o mais atrasado, contrariamente ao que seria traço marcante da nossa própria dualidade.

Ao entrar em contato com o vasto universo subdesenvolvido – ou melhor, pré-desenvolvido – a Europa o fez pelo seu lado externo, comunicando-lhe sua natureza feudal, tanto pelo seu aspecto econômico, como pelo jurídico. Por outras palavras, a Europa tudo fez para enquadrar a América numa carapaça feudal e o marco mais em vista desse esforço seria o Tratado de Tordesilhas, o qual, ao mesmo tempo que dividia o continente americano entre as Coroas de Espanha e Portugal, estatuía que todas as nossas terras pertenciam ao rei – um ou outro, pouco importava, do nosso ponto de vista. E, mesmo quando outros soberanos europeus – como Francisco I da França, que queria ver a cláusula do testamento de Adão, legando o mundo à Espanha e a Portugal – puseram em dúvida a validade de Tordesilhas, foi para reclamar sua parte no espólio, não para discutir a validade do instituto que fazia de nossas terras, ainda por descobrir, propriedade de um soberano europeu qualquer e que, para nós, significava que se firmava um dos princípios sobre os quais se ergue o edifício do direito feudal: all land is king’s land, isto é, toda terra pertence ao rei.

Essa propriedade que, de passagem, fundava o nosso direito, não era uma propriedade plena, inseparável da posse, tal como a conheceu o direito romano clássico, mas uma propriedade divisível entre propriedade direta ou “nua” e o domínio útil, tal como esse instituto resultou das profundas transformações ocorridas no Baixo Império e que, com numerosas, mas não essenciais variantes, ser-nos-ia trazido através de toda a Idade Média europeia.

E não se creia que, por ser apenas direta ou “nua”, essa propriedade fosse uma vazia ficção jurídica, sem maior significação prática, até porque, para impô-la, correram rios de sangue – sangue europeu, africano, mas, principalmente, ameríndio. E, como já ficou dito, essa seria a base incomovível sobre a qual se ergueria o edifício da nossa sociedade – desde sua economia ao seu direito – pelos séculos afora, até muito recentemente, e, de certo ponto de vista, até nossos dias.

Um Direito Apenas Meio Feudal

Todo o direito feudal constrói-se sobre dois dispositivos gêmeos, ambos relativos à propriedade ou domínio sobre a terra – o fator de produção que, a certa altura do desenvolvimento da sociedade, emerge como o estratégico, isto é, aquele cujo comando confere o domínio sobre todo o processo produtivo, substituindo, nessa condição, o “fator trabalho” (o escravo) e antecedendo o “fator capital” (riqueza reproduzível comprometida no processo produtivo). Refiro-me aos dispositivos que, por um lado, conferem ao Estado, isto é, ao rei, a propriedade (direta ou nua) de toda a terra sobre a qual se estenda sua soberania e, por outro, exigem que toda terra tenha um titular do seu domínio útil, integrado na classe dominante, inclusive o próprio rei. All land is king’s land e nulle terre sans seigneur.

Historicamente, a construção do feudalismo começou pela vigência do segundo princípio, dado que, no Baixo Império, a plena propriedade do direito romano clássico havia-se estendido, de fato, a todas as terras agricultáveis, o que quer dizer que, numa população trabalhadora já filha, neta ou bisneta de escravos, incapaz de produzir a própria vida senão trabalhando a terra, a classe que tivesse o monopólio da terra teria também o domínio sobre o trabalhador e sobre o que este acaso possuísse (as humildes sementes do capital dos séculos futuros). Os imperadores consolidaram, legislativamente, essa situação de fato, prendendo ao solo os trabalhadores e, por extensão, congelando em seus ofícios os artesãos, os pequenos servidores do Estado etc. Mais tarde, quando esse processo estava virtualmente concluído e todos os trabalhadores, mutatis mutandis, haviam sido transformados em servos de gleba, reduzindo à mesma denominação os escravos, os libertos e os ingênuos empobrecidos, o Estado investiu-se do poder de dispor de todas as terras, independentemente de quem fosse o detentor do domínio útil.

Mas a história registra, também, o caso inverso, no qual o domínio útil surgiria subsequentemente à afirmação da nua propriedade. Nos reinos godos e, em geral, onde o feudalismo se impôs pela via da conquista militar, foi este o caminho seguido: investindo-se, por direito de conquista, no domínio direto das terras conquistadas, o chefe militar as dividia entre seus capitães, convertendo-os, eo ipso, em vassalos seus, obrigados, em troca dessa concessão, a certos serviços e prestações.

Esse domínio, sem prejuízo das obrigações de vassalagem para com o soberano, podia ser novamente desdobrado, retendo o senhor uma espécie de nua propriedade de segundo grau e investindo, num senhor de menor hierarquia, ou, finalmente, nos servos de gleba, o domínio útil, também em troca de certas obrigações. Constituía-se, assim, o chamado “anfiteatro enfitêutico”. (Enfiteuse é o instituto jurídico que, havendo surgido no Baixo Império Romano, chegou, muito modificado – para compatibilizar-se com o moderno direito contratual –, aos nossos dias.)

Ora, o edifício do nosso feudalismo começou a construir-se, a exemplo dos reinos godos da Europa medieval, pela afirmação da nua propriedade, mas, diferentemente do acontecido com aqueles reinos, os andares inferiores do anfiteatro enfitêutico, cristalizadores do princípio nulle terre sans seigneur, tardaram muito em levantar-se, sendo substituídos por institutos representativos de outros modos de produção. Daí resulta que o feudalismo surgido no Brasil, a partir do Tratado de Tordesilhas, passou a ter, e não em caráter temporário, um conteúdo não feudal.

Em suma, entre os donatários (e não apenas os titulares das capitanias hereditárias) e o rei, estabeleciam-se relações de caráter insofismavelmente feudal – relações de suserania e vassalagem –, ao passo que entre o donatário-vassalo e a população do feudo, a ele subordinada, estabeleciam-se relações típicas de outros modos – mais primitivos – de produção, refletindo o estágio aí alcançado de desenvolvimento das forças produtivas.

Estrutura-se o "Polo Interno" da Dualidade"

Assim como, visto pelo seu lado interno, o feudo europeu, ao tempo da nossa descoberta, já não mais era feudal, mas uma economia capitalista – o que fazia da Europa uma dualidade –, também o emergente feudo brasileiro não era internamente feudal, isto é, ainda não era feudal. O Brasil nascia, pois, como uma formação feudal, que associava, em união dialética, um lado feudal com outro pré-feudal.

Este lado interno distava muito de ser homogêneo, visto que comportava elementos importantes de várias formações sociais pré-feudais: desde a comunidade primitiva (dos índios, dos quilombos negros) até a escravidão, para a qual tendia todo o sistema, passando, como na história clássica, por formas transientes de patriarcalismo e de teocracia (dos Ramalhos, dos Caramurus e dos jesuítas, respectivamente). O período colonial comportaria a evolução e a convergência de todas essas formas, para a escravidão desenvolvida ou greco-romana, como formação dominante do lado interno da formação dual. As outras formações – de patriarcalismo pré-escravista, da própria comunidade primitiva, da teocracia, também pré-escravista, e alguns prenúncios de feudalismo, no seio das fazendas de escravos e nalgumas regiões do imenso país – não comprometiam o caráter inequivocamente escravista do sistema, visto pelo seu lado interno. Um direito cada vez mais inspirado no direito romano tendia a dividir a sociedade em apenas duas classes: os senhores e os escravos.

Faltavam, no lado interno, as condições mínimas para um verdadeiro feudalismo, baseado na servidão de gleba. Em primeiro lugar, inexistia uma população somente afeita a produzir a própria vida nas condições da agricultura sedentária enquadrada na pequena exploração agrícola. Ordinariamente, tal população resulta do longo e violento trabalho da escravidão, embora a história registre também casos em que aparece diretamente como fruto da desagregação da comunidade primitiva, hipótese que devíamos excluir a priori, no caso brasileiro, à vista do imenso atraso da população ameríndia.

Por outro lado, a ocupação efetiva do território, pela classe dos senhores de escravos, estava apenas começada, de modo que ela não estava em condições de impedir o aparecimento de pequenas explorações agrícolas independentes, nos possíveis mas excepcionais casos em que já houvesse condições econômicas para isso, nem, como era o caso geral, o retorno às condições préescravistas de vida – a exemplo do nomadismo selvagem dos índios ou os quilombos dos negros. Nessas condições, a fazenda de escravos, assente na coerção direta do trabalhador, era a forma mais dinâmica e progressista de organização do trabalho social.

Essa fazenda era, naturalmente, uma grande propriedade fundiária, um latifúndio, mas não no sentido que depois assumiria esse termo, isto é, um grande domínio, capaz de organizar a produção à base da pequena exploração agrícola, de forma compatível com a típica divisibilidade da propriedade, surgida no direito romano, mas somente no Baixo Império, como transição para a Idade Média. O latifúndio escravista dos tempos coloniais e dos primeiros tempos da monarquia independente (com exceções, especialmente neste último caso, notadamente no pampa gaúcho e em certas faixas do sertão árido do Nordeste) não aspirava sequer ao monopólio da terra pela classe dos senhores (nulle terre sans seigneur). Por tudo isso, seu feudalismo limitava-se a “relações externas”, que eram inquestionavelmente feudais (relações de suserania-vassalagem), para o que existiam condições econômicas e (desde Tordesilhas) jurídicas.

O fato de haver permanecido devoluta – isto é, sob o domínio ainda indiviso e nu da Coroa – grande parte das terras é fácil de explicar. Com efeito, não havendo ainda condições econômicas para a pequena exploração agrícola, o monopólio eficaz da terra pela classe dos senhores de escravos não era indispensável à operação da unidade produtiva típica (a fazenda de escravos), apoiada na coerção direta do trabalhador. Por outro lado, a Coroa propendia a transmitir o domínio útil sobre suas terras, somente na medida mínima necessária à operação econômica das unidades produtivas a implantar. Assim, com o título de domínio, ela investia, não raro, o direito de “prear índio”, mas não o monopólio da terra, o qual, de resto, não fazia falta aos vassalos-fazendeiros de escravos.

Constitui-se o "Polo Externo" da Dualidade

Esta formação dual relacionava-se com o mercado capitalista europeu principalmente por interposta pessoa, em todo o período colonial, a saber: a Coroa, diretamente, ou por intermediação de um “estanco” ou concessão de serviço público, vendia nos mercados europeus os produtos recebidos da Colônia, em sua parte decisiva, como tributos cobrados aos seus vassalos. Por outras palavras, o aparelho de intermediação comercial – para não falar no mercado ao qual os produtos se destinavam – era algo de estranho à sociedade e à economia coloniais, embora, com o correr do tempo, tendesse a aumentar, no intercâmbio, a parcela correspondente a um verdadeiro comércio e não a um expediente mais cômodo de percepção dos tributos devidos pelos vassalos ao suserano.

Com a Abertura dos Portos (1808) e o consequente aparecimento, dentro do país, de um aparelho de intermediação mercantil distinto do antigo serviço público concedido a uma empresa pela Coroa de Portugal (Companhia das Índias Ocidentais), surge um elemento novo a integrar a economia e a sociedade brasileiras. Esse aparelho ligava-se, no exterior, ao capitalismo industrial nascente. Configurava-se, assim, uma segunda dualidade – uma espécie de ponte, tendo como cabeceiras: dentro do país, o nascente aparelho de comercialização e, lá fora, principalmente na Inglaterra, o mercado presidido pelo capitalismo industrial, também nascente. Essa formação passava a fazer sistema com a dualidade preexistente, que passava a ser o “polo interno”, com os seus dois “lados”, o escravista e o feudal, como já ficou dito. Essa segunda dualidade – capitalismo mercantil aqui e capitalismo industrial lá fora – passava a constituir o “polo externo” da dualidade básica da economia brasileira.

Essa estrutura (uma formação agrupando quatro modos elementares de produção, distribuídos dois a dois, para formar os “polos” interno e externo, respectivamente) manter-se-ia até nossos dias, embora mudando seus elementos constitutivos (seus “lados”) e a maneira como estes se combinam para formar os dois “polos”.

Embora a economia e a sociedade coloniais fossem duais – como duais eram as formações matrizes metropolitanas da Europa Ocidental –, foi somente com a Abertura dos Portos (e a Independência, seu corolário político) que surgiu propriamente o edifício da dualidade brasileira, tal como, mutatis mutandis, ele chegaria aos nossos dias, a saber:

Dualidade básica da economia brasileira

Como muda a Dualidade Brasileira

Os elementos que, agrupados dois a dois (isto é, quatro, ao todo, inclusive o lado externo do polo externo, que não se encontra dentro do país, mas no centro dinâmico em torno do qual gravitamos, no momento), compõem a dualidade brasileira não são outros senão os modos fundamentais de produção de que cogita o materialismo histórico marxista (ou estágios de desenvolvimento desses modos fundamentais de produção), cinco ao todo, como é sabido: a comunidade primitiva, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo.

Este quadro, aparentemente muito simples, na verdade comporta notável complexidade, se considerarmos que, embora toda a história da humanidade nele esteja contida – inclusive a história ainda imersa nas brumas de um futuro altamente problemático –, entre o primeiro e o último estágios vários caminhos são praticáveis e, em verdade, o têm sido.

Em primeiro lugar, com a possível exceção do feudalismo, os outros modos de produção intermédios (escravismo e capitalismo) podem ser contornados em maior ou menor medida, o mesmo se aplicando, com maior razão ainda, aos estágios de desenvolvimento de cada um dos modos fundamentais de produção. Para o assunto que nos ocupa, a saber, a história da dualidade brasileira, não nos poderemos contentar com o estudo dos cinco modos fundamentais de produção, sendo mister descer a muito maior detalhe, na consideração dos estágios de desenvolvimento comportados por cada modo e das formas de transição, entre um e outro.

Assim é que a transição da comunidade primitiva para o escravismo tanto pode fazer-se diretamente, como quando o selvagem é caçado como um animal e domesticado pela mais aberta violência, como por outros modos. A sociedade tribal pode evoluir até as formas baseadas no clã, a exemplo dos bárbaros germânicos entrados em conflito com o Império Romano, em princípios de nossa era, ou passar por formas incipientes de escravidão, como o patriarcado e a teocracia, multiplicando as probabilidades de contorno das formas escravistas desenvolvidas, do estilo greco-romano, ou brasileiro, da fase final do regime colonial.

(No Brasil, esta última hipótese merece a maior atenção, por exemplo, no estudo da evolução da sociedade gaúcha que parece ter chegado a um feudalismo muito desenvolvido e precoce, contornando a fase escravista propriamente dita, mas não as incipientes, a exemplo das missões jesuíticas.)

Tampouco no polo externo, pelo qual tivemos acesso ao capitalismo, a passagem para este visou diretamente ao capitalismo desenvolvido ou “industrial”. Ao contrário, tendo o Brasil nascido sob a égide do primeiro estágio do capitalismo – o capitalismo mercantil –, este permaneceu, por muito tempo, como algo externo à nossa formação social nacional. Esta, a certa altura, reagindo a provocações partidas do centro dinâmico – como o faz sempre –, criou seu próprio capitalismo mercantil e, ao mesmo tempo, rompeu com o capitalismo mercantil europeu, passando a orientar-se para a formação mais avançada e dinâmica do mundo àquele tempo, a saber, o capitalismo industrial inglês. (Essa tendência, de buscar, em cada momento, o centro mais avançado e dinâmico do mundo, para em torno dele gravitar, parece ser uma constante.)

Em suma, a sociedade dual brasileira, respondendo, como qualquer outra formação, ao crescimento de suas próprias forças produtivas, muda de modo de produção e o faz no mesmo sentido geral no qual muda a sociedade humana, passando a um modo de produção superior, mas tem um modo peculiar de mudar, isto é, o faz em obediência a certas “leis” específicas – as leis da dualidade brasileira –, a saber:

A 5ª lei e o ciclo longo

O Brasil é uma economia extremamente sensível aos acontecimentos internacionais, inclusive os econômicos, particularmente os que se manifestam por impulsos partidos do centro dinâmico, em torno do qual gravita, juntamente com todo o mundo capitalista, sem excluir a vasta periferia subdesenvolvida. Ora, o centro dinâmico engendra movimentos periódicos ou cíclicos que, do nosso ponto de vista, assumem a forma de fluxos e refluxos, que de perto nos interessam, porque condicionam e regulam a amplitude e as condições do nosso comércio exterior.

Dentre essas flutuações econômicas merece especialíssima atenção o chamado “ciclo longo” ou “onda longa” e que Joseph Schumpeter batizou com o nome do economista russo que o estudou com maior atenção e consequência: Nikolai Kondratiev.

Os ciclos mais curtos – de Juglar e de Kitchin – têm menor interesse para nós, no momento, em primeiro lugar porque nem sempre afetam o centro dinâmico como um todo (o conjunto dos países desenvolvidos, capazes de participar do processo de criação de novas técnicas, sintetizando nova tecnologia). Assim não se deve excluir a hipótese de que, vivendo os países componentes do centro dinâmico conjunturas desencontradas, enviem para a periferia impulsos contraditórios, que se anulem mutuamente. Em segundo lugar, porque, sendo de curta duração (o mais longo, o de Juglar, dura de oito a 11 anos), não dão tempo a que nossa economia e nossa sociedade promovam mudanças institucionais e outras, de ajustamento à conjuntura. Ora, os ciclos de Kondratiev são de longa duração – cerca de meio século, com um quartel de século de fase A, ou ascendente, e outro quartel de fase B ou descendente.

Dentre os vários indicadores através dos quais se manifestam os ciclos longos, merecem especial atenção, da nossa perspectiva periférica, por felicidade, os relativamente mais bem documentados, a saber: os que interessam ao volume físico ou quantum do comércio exterior e aos preços relativos – de exportação versus de importação – vigentes nesse comércio, isto é, os “termos do intercâmbio”. É por essa via que nossas economias periféricas são, alternadamente, atraídas e repelidas pelo centro dinâmico, isto é, chamadas a participar mais intensamente da divisão internacional do trabalho ou, ao contrário, compelidas a buscar, com seus próprios meios, maior medida de autossuficiência ou autarcia, segundo o centro atravesse uma fase A ou uma fase B da onda longa.

A usual expressão de centro dinâmico, para identificar o grupo de países mais desenvolvidos, capazes de sintetizar nova tecnologia, por oposição à periferia subdesenvolvida, pode induzir ao erro de supor que essa periferia é uniformemente passiva, privada de dinamismo. Ora, se é verdade que há economias periféricas que, uma vez diminuída a pressão sobre elas exercida pelo centro dinâmico, via comércio exterior, tendem a se ajustar passivamente à situação ou a restaurar hábitos de consumo e técnicas de produção arcaicos, este não é seguramente o caso brasileiro. O Brasil costuma reagir às flutuações econômicas de longo prazo – as fases do ciclo de Kondratiev – de forma muito ativa ou dinâmica, quer quando se aplica a produzir excedentes exportáveis, nas fases A, quer quando se aplica a substituir importações, nas fases B dos ciclos. E pode muito bem acontecer que a absorção da técnica de vanguarda – e, em geral, da cultura de vanguarda ou civilização – seja mais intensa nas fases recessivas do ciclo do que nas expansivas, tudo dependendo do “modo” como levamos a cabo o esforço de substituição de importações.

Não cabe aqui entrar em maior detalhe na discussão da complicada e ainda pouco conhecida mecânica do ciclo longo, mas não resta dúvida de que esses movimentos têm muito que ver com o modo como se engendram e as condições com que se propagam as novas técnicas de produção ou, como se diz, as inovações tecnológicas. Com efeito, a economia desenvolvese através de um processo de substituição de técnicas consagradas pela experiência e representativas de um estágio já vencido do conhecimento científico, por novas técnicas em via de definição, isto é, pela introdução de inovações tecnológicas.

Mas não se creia ser este um processo simples e linear. O caso é que, ao se introduzir uma inovação tecnológica, esta deve cristalizar-se num capital fixo (inclusive humano) mais ou menos importante que, não raro, terá que ser sucateado, se pretendermos introduzir uma tecnologia ainda mais nova e avançada. Por isso mesmo, a tecnologia nova, ou recém-implantada, tende a causar resistência à introdução de uma tecnologia novíssima, surgida, não raro, como fruto do esforço de implementação da primeira.

Enquanto a produção à base da tecnologia nova não encontra os limites do mercado, o conflito entre ela e a tecnologia novíssima é apenas potencial, dado que as novas instalações, em processo de implantação, ou se destinarão a atender a uma demanda ainda insatisfeita ou estarão deslocando a produção de instalações cristalizadoras de uma tecnologia nem nova, nem novíssima, porque velha e arcaica. Entretanto, uma vez encontrados os limites da demanda efetiva, o custo social da implantação da tecnologia novíssima pode revelar-se proibitivo, dado que deverá incluir um novo e pesado elemento de custo, a saber: o valor não amortizado ainda das instalações baseadas na tecnologia nova, condenadas ao sucateamento. Impõe-se, pois, um compasso de espera, marcado pela concorrência de dois fatores:

  1. a depreciação ou o perecimento, com ou sem uso, das instalações já criadas, reduzindo-se assim o peso daquele elemento extraordinário de custo;
  2. o refinamento ulterior da técnica, aumentando a distância, em termos de produtividade, entre a “antiga tecnologia nova”, em processo de envelhecimento, e a “nova tecnologia novíssima”, em processo de definição e melhoramento sempre maior. A certa altura, romper-se-á de novo o equilíbrio, e uma vaga de investimentos destinados a implantar esta última tecnologia abrirá nova fase A do ciclo longo.

Ora, da perspectiva de uma economia periférica subdesenvolvida, esse compasso de espera não tem razão de ser. A própria crise a resultar da interrupção do esforço de formação de capital no centro dinâmico, ao reduzir neste a demanda de importação de produtos supridos pelas economias periféricas, reduz a capacidade para importar destas e, por isso mesmo, põe em evidência uma demanda insatisfeita, ou seja, abre oportunidades de inversão independentes dos fatores que, no centro, impõem o compasso de espera.

A fase B dos ciclos longos, portanto, abre, nos países periféricos, oportunidades de inversão, ao tempo em que submete a dura prova as instituições historicamente formadas, sob a influência de um comércio exterior em expansão. Em princípio, uma forma qualquer de substituição de importações torna-se necessária e possível, mas, para isso, faz-se mister certa medida de mudanças das instituições preexistentes.

Não é, pois, de espantar que os grandes marcos políticos de nossa história nacional (a Independência, a Abolição-República e a Revolução de 1930) tenham ocorrido nas fases B dos ciclos longos (primeiro, segundo e terceiro, respectivamente).

Entramos agora na fase B do quarto Kondratiev.

A Estrutura Política da Sociedade Dual

Vimos que na estrutura econômica da dualidade brasileira acham-se presentes quatro modos elementares de produção, compondo um modo de produção complexo único – nos quatro lados que, dois a dois, compõem os polos do sistema. Ora, simetricamente, poderiamos supor que na sociedade política acham-se representadas quatro classes dirigentes, uma para cada lado. Entretanto, o Estado brasileiro resulta da aliança de apenas duas classes dirigentes, associadas num pacto de poder implícito, que só muda com a dualidade, sejam quais forem os estamentos pelos quais as duas classes dirigentes se façam representar.

Com efeito, há que considerar, para começar, que o lado externo do polo externo da dualidade, sem cuja consideração não poderemos compreender o funcionamento da economia nacional, com a qual faz sistema, encontra-se no estrangeiro, isto é, fora da sociedade nacional e, embora exerça influência, não raro preponderante, sobre os negócios do Estado, o faz por intermédio de uma ou ambas as classes dirigentes, não como integrante do mesmo. Restam-nos, pois, apenas três “lados” com direito a aspirar a uma posição dirigente, no mesmo Estado (o qual, normalmente, e não apenas nos períodos de exceção, é uma coalizão), a saber: ambos os lados do polo interno e o lado interno do polo externo.

Ora, o polo interno está subposto a apenas uma classe e não a duas, e seu protótipo foi a classe dos vassalos-senhores de escravos, isto é, feudais em suas relações externas (com a Coroa) e escravistas no campo das relações internas. Simetricamente, a fazenda era um feudo-vila (nos sentidos medieval e romano desses termos, respectivamente). Assim, os interesses correspondentes aos dois modos elementares de produção, dialeticamente unidos no polo interno, manifestam-se como ordens diferentes e contraditórias de interesses (potencialmente inconciliáveis) do mesmo grupo de pessoas, isto é, voltando ao nosso protótipo da classe (híbrida) dos vassalos-senhores de escravos, a mesma classe vê-se sacudida entre os interesses da fazenda, como vila e da fazenda, como feudo.

Também a classe representante do polo externo acha-se solicitada por duas ordens diferentes de interesses, típicas dos modos elementares de produção nesse polo associados, em unidade dialética. Como no caso do polo interno, sua função precípua consiste em conciliar – enquanto for possível – essas ordens de interesses, diferentes, contraditórias e, afinal, antagônicas, quando será mister optar entre elas, e fazê-lo “a quente”, isto é, em condições de crise e sob a pressão de todo o corpo social.

Essa opção, uma vez feita por uma classe (ou por uma dissidência dela, como logo veremos), muda a identidade da classe, muda o polo, muda a dualidade e, afinal, muda o regime.

Considerando que o motor primário de todos esses movimentos é o mesmo que é responsável pelo desenvolvimento de todas as formações sociais, isto é, o crescimento das forças produtivas contidas no sistema, essas opções não se fazem ao acaso, mas num sentido único e previsível, isto é, pela troca de um modo de produção por outro, mais avançado (invariavelmente o presente no lado externo do polo, conforme a terceira lei da dualidade).

Ao amadurecerem as precondições para essa opção entre as duas ordens de interesses representadas no polo, as antigas unidade e coesão da classe dirigente em causa desaparecem. A “classe dual” cinde-se de alto a baixo, entre uma dissidência progressista – isto é, partidária da ordem de interesses correspondente ao lado externo do polo – e uma facção retrógrada ou conservadora, apegada à preservação do vigente estado de coisas. A opção em causa é, portanto, uma operação complicada, difícil e usualmente demorada, na qual todo o corpo social, e não apenas a classe interessada, toma parte, não obstante ser, afinal, uma escolha entre duas ordens diferentes de interesses da mesma classe ou grupo de pessoas.

Nem por isso é irrelevante o fato de que, afinal, tudo deve conduzir a tal opção. Cada membro da classe em causa ver-se-á solicitado entre duas forças opostas, com o resultado já indicado de que a classe se cindirá em duas facções. Mas é fácil ver que os dois grupos guardarão, até o fim, muita coisa de comum, isto é, que uma resistência até as últimas consequências, à entrance, é altamente improvável, tanto mais quanto, dentro do aparelho do Estado, como partícipe da coalizão dirigente, encontra-se a classe representante do outro polo, que, como veremos, não deve estar em crise interna, nem internamente dividida, porque as ordens contraditórias de interesses que representa ainda são conciliáveis. Essa classe está, pois, em condições de arbitrar as contendas internas do seu sócio e não admira que acabe sempre por negociar, com a dissidência progressista deste, novo pacto de poder. Essa dissidência buscará assumir o comando de toda a sua classe, reunificá-la sob seu comando, não excluindo senão os elementos mais retrógrados, e, nessa condição, passará a compor a nova coalizão dirigente. Teremos, assim, nova classe (por mais que ela disso ainda não tenha consciência), novo polo e nova dualidade, isto é, novo regime.

Por força da segunda lei da dualidade (que quer que se renove apenas um polo de cada vez), desde que se constitua nova dualidade, entre si dividirão o poder duas classes, a saber: uma que representa o polo não renovado, passando de uma dualidade para outra; a segunda, que resulta da dissidência da classe representante do polo renovado – mas que é, afinal, outra classe –, é uma formação social nascente. Assim, a primeira é uma classe em plena maturidade, consciente dos seus interesses (uma classe em si e para si), traz consigo preciosa experiência de uso do poder, ao passo que a segunda é politicamente inexperiente (uma classe em si, apenas), não obstante ser portadora de grande dinamismo. Não deve espantar, pois, que em cada dualidade historicamente formada o poder seja exercido hegemonicamente pela primeira, a mais velha, desfrutando a outra de plena liberdade para fazer prova do seu dinamismo, em tudo o que não conflite com os interesses fundamentais da classe hegemônica.

Daí resulta também o corolário de que a classe a renovar-se é sempre a hegemônica, que se aproxima do fim da sua trajetória, quando os seus interesses conflitam com os da outra classe dirigente e os de todo o corpo social e quando, por outro lado, ela se vê internamente dividida, tudo isso em consequência da pressão que sobre as relações de produção do sistema exercem as forças produtivas em expansão.

Em suma, quando, sob o assalto das forças produtivas em expansão, as relações de produção vigentes ameaçam estalar – rompendo-se pelo seu elo mais débil, numa sequência que pouco tem de acidental –, eis que sobrevém um fato exógeno, isto é, a passagem do centro dinâmico à fase B do ciclo longo. Do ponto de vista de nossa formação periférica, isso importa em queda do volume físico de nossas exportações, em piora dos termos de intercâmbio, em contração da capacidade para importar etc. As contradições já em processo de agudização, no interior da economia dual, tornam-se obviamente inconciliáveis, rompendo-se a cadeia pelo seu elo mais débil, isto é, suprimindo-se o lado interno do polo em crise.

Julgo haver suprido os subsídios necessários para que o leitor me possa agora acompanhar pelas etapas já cumpridas da história da dualidade brasileira, que é, afinal, a História do Brasil.

Primeira Dualidade Brasileira

A independência do Brasil foi um incidente da Grande Revolução Francesa (1789), que, fazendo-se na esteira da revolução Inglesa e da Americana (Independência), marcaria, de forma irreversível, o império do capitalismo desenvolvido (industrial) em escala mundial. Sob o impulso deste (Revolução Industrial), o centro dinâmico universal deslanchou uma onda longa (a primeira), a qual, tanto em sua fase expansiva (1790-1815), como na recessiva (1815-1848), obrigou a imensa periferia subdesenvolvida (da qual o Brasil fazia e continua a fazer parte) a ajustar-se, segundo as condições específicas de cada país ou região, aos impulsos partidos do centro.

Desde a Abertura dos Portos (1808) começou energicamente o processo de integrar-se o polo externo da dualidade brasileira, fato este que encontraria sua sanção política na Carta da Lei de 1815, criando o Reino do Brasil, mudanças essas subsequentemente homologadas pelo Sete de Setembro (1822), com a declaração formal da Independência, e pelo Sete de Abril (1831), quando, com a abdicação de Pedro I, a novel sociedade saía dos seus cueiros portugueses. O capital mercantil português – sob cuja hegemonia (em íntima aliança com o capital industrial nascente, na Europa) as peças essenciais de nossa futura sociedade nacional (essencialmente, as fazendas de escravos), subordinadas à Coroa portuguesa por laços de suserania-vassalagem – era alijado, como um aparelho inútil, sendo seu lugar tomado, no interior da nova sociedade, por uma dissidência sua: o novel capitalismo mercantil do Brasil (se bem que não brasileiro ainda). Definia-se, assim, o polo externo da nossa dualidade. Surgia, também, a classe dos comerciantes, que seria uma das classes dirigentes do Estado.

Quanto ao polo interno, havia concluído virtualmente sua longa e laboriosa evolução. Afora as tribos indígenas, ainda por “civilizar”, “prear” ou exterminar, conforme as circunstâncias, a sociedade estruturava-se basicamente em torno das fazendas de escravos, as quais, pelo lado interno, isto é, “de porteira para dentro”, haviam-se formado sob a lógica irretorquível do direito escravista (não por acaso referido diretamente ao direito romano clássico, isto é, anterior às institutas), que tende a tudo reduzir à condição dos escravos, inclusive os trabalhadores livres e semilivres.

Nessas condições, a Independência não podia significar outra coisa senão a hegemonia da classe dos vassalos-senhores de escravos – a classe dual que se empenhava em conciliar os interesses contraditórios oriundos de sua dupla condição de barões e de senhores, nos sentidos medieval e romano, respectivamente. Quanto à novel classe dos comerciantes, poderia desenvolver-se sob o patrocínio do seu sócio hegemônico, até onde seus respectivos interesses não conflitassem. Essa classe, embora oriunda de uma classe hegemônica, era uma força nascente. Esses comerciantes, quase todos estrangeiros, mas cuja presença assinala o que há de novo e característico na sociedade brasileira da época, estavam ainda politicamente despreparados para o exercício do poder.

A primeira dualidade (como as subsequentes, como logo veremos) formava-se nas condições da fase B do ciclo longo – primeiro Kondratiev. Podemos datá-la mesmo daquele fatídico 1815, o ano de Waterloo, da estruturação da Santa Aliança, do início da fase recessiva do primeiro Kondratiev e da Carta da Lei, que fundava o Reino do Brasil. O Sete de Setembro (1822) e o Sete de Abril (1831) foram atos homologatórios de mudanças já de fato efetivadas. A sociedade e o Estado brasileiros estavam estruturados e essa estrutura se manteria até os acontecimentos que culminaram, em 1888-1889, com a Abolição-República. Ou seja, na primeira dualidade brasileira, tínhamos:

primeira dualidade brasileira

Cada um desses modos de produção está dialeticamente unido aos demais, isto é, interfere no funcionamento destes e sofre a influência deles, sem, por isso, perder a própria identidade. Sob a pressão das forças produtivas em expansão, o escravismo tende para o feudalismo, este para o capitalismo mercantil, este para o capitalismo industrial e, num futuro ainda imprevisível, na época da primeira dualidade, o capitalismo industrial daria origem ao capitalismo financeiro, além do qual está o socialismo. Isto, entretanto, não quer dizer que todos esses passos sejam dados, historicamente, ao mesmo tempo. A resistência das relações de produção (que enquadram juridicamente todos os modos de produção presentes em cada dualidade), ao empuxe das forças produtivas (do sistema, como um todo) não é a mesma em todos os patamares dessa sociedade e, rompidas as relações de produção em um ponto, a situação geral se desafoga, consolidando-se as relações de produção vigentes no resto do sistema.

De resto, dado que, como já vimos, essa sociedade se caracteriza pelo domínio de apenas duas classes (duais) – representativas dos dois polos –, o rompimento das relações de produção, como fato político que é, tende a ocorrer no nível dos polos e não no dos lados (vide primeira lei da dualidade). Ora, como os polos não têm ambos a mesma idade (vide segunda lei da dualidade), é natural que o rompimento se dê pelo polo mais antigo.

O polo externo da primeira dualidade (capitalismo mercantil e capitalismo industrial) não se formou por acaso, mas como resultado da dissidência surgida no seio do velho capitalismo mercantil (português) que foi a força hegemônica modeladora da sociedade colonial, politicamente representada pela classe dos comerciantes, a qual, além dos elementos trazidos da antiga classe hegemônica, incluía contingentes representativos de comerciantes de outras procedências, fato que bastava para fazer dela uma “nova” classe, despreparada para o exercício do poder. A única classe capaz de hegemonia, como coroamento, que era, da secular evolução da sociedade colonial, era a classe dos vassalos-senhores de escravos – internamente escravista e externamente feudal. O Estado brasileiro em formação teria, pois, a seguinte estrutura: sócio maior (hegemônico): a classe dos barões-senhores de escravos; sócio menor: a classe dos comerciantes (principalmente exportadores-importadores) em estreita ligação com o capitalismo industrial estrangeiro, que constitui o lado externo do polo externo.

Esse sócio menor era, senão o motor primário, pelo menos a correia de transmissão pela qual o capitalismo industrial do centro dinâmico impulsionava todo o sistema segundo seus interesses, não obstante sua imaturidade, como força política independente. A diplomacia inglesa – não raro apoiada pelos navios da marinha real – sublinhava fortemente sua ação, pressionando, em última instância, para que o escravismo fosse substituído pelo latifúndio feudal. Entrementes, ao longo de todo o curso da primeira dualidade, a função precípua desse sócio menor seria fortalecer-se economicamente, assumir novas posições de comando no sistema e amadurecer politicamente, ganhando coesão, homogeneidade e clara consciência dos seus interesses, o que lhe faltava no princípio. Quanto ao sócio maior, a situação era diversa, porque as contradições fundamentais que deveriam levar à crise final do polo e da primeira dualidade estavam aí, encarnadas no feudo-fazenda de escravos e na classe dos vassalos-fazendeiros de escravos.

Havendo nascido virtualmente com a passagem do primeiro Kondratiev da fase A para a fase B, a primeira dualidade devia provar sua eficácia resolvendo o problema de assegurar o crescimento da economia, não obstante o estancamento prolongado do comércio exterior. Durante muito tempo, tudo esteve subordinado a isso, isto é, a capacidade que provasse ter a economia nacional de promover uma forma qualquer de substituição de importações, sem o que tal crescimento teria sido impossível.

Ora, como bem observa Caio Prado Jr., não obstante a liberdade conferida à colônia, logo após a Abertura dos Portos, para desenvolver sua “indústria” – o que lhe era antes vedado formalmente –, pouco se pôde fazer nesse sentido, diante da vigorosa concorrência da indústria dos países cêntricos, num mercado virtualmente aberto, à vista da ínfima tarifa aduaneira. O país entre 1823 e 1850 mais que duplicou sua população – tanto a livre como a escrava; todas as indicações são de que o período em causa foi de vigoroso crescimento econômico. Não obstante, o giro do comércio exterior (exportações mais importações) apenas passou de (libras ouro) £81.601.000 para £115.679.000.

É certo que esse comércio exterior não era tudo. O Brasil tinha um segundo comércio exterior, expresso pela importação de escravos, a qual no decênio 1841-1850 foi estimada em 50.000 “peças” por ano, num valor comparável ao das importações do comércio exterior regular – o que faz supor um fluxo de mercadorias em sentido contrário ponderável, se bem que menor do que esse. Entretanto, esse “segundo comércio exterior” fazia-se com outras áreas periféricas, não com o centro dinâmico, de modo que deve ser apreciado como parte do esforço periférico geral de substituição de importações, até porque se destinava a suprir um insumo crítico para a atividade que, dentro do Brasil, era responsável pelo esforço principal de substituição de importações: a fazenda de escravos.

Com efeito, escorraçado da economia de mercado, o esforço de substituição de importações, nas condições da fase B do primeiro Kondratiev (18151850), assumiria a forma específica de diversificação da atividade produtiva, no interior da fazenda de escravos, vale dizer, nas condições da economia natural, onde o poder de competição da indústria capitalista do centro dinâmico chegava mais enfraquecido do que se limitado por uma forte tarifa aduaneira. A fazenda de escravos cresceu em escala e se tornou menos agrícola, na medida em que realocava seus recursos internos (inclusive, mas não apenas, mão de obra), orientando parte deles para atividades não agrícolas, classificáveis como construção e indústria de transformação, sem falar em certos “serviços”. Ao tornar-se mais autárcica, a economia nacional como um todo tornava mais autossuficiente, menos dependente do comércio exterior. Consequentemente, pôde crescer em descompasso com o comércio exterior, como o estavam fazendo numerosos países, tanto desenvolvidos como subdesenvolvidos.

A fazenda de escravos, portanto, comportou-se muito bem na fase B do ciclo longo, mas suas contradições internas – precisamente em função do crescimento das forças produtivas que viabilizou – entrariam a agudizar-se, conduzindo, afinal, ao seu fim e ao da primeira dualidade, ao se inaugurar a fase A do segundo Kondratiev. O polo interno, agora o mais velho, era aquele pelo qual devia chegar ao fim a primeira dualidade.

A conversão do escravismo em feudalismo (mudança do lado interno do polo) exige duas condições essenciais:

  1. o aparecimento, no seio da classe dos escravos e ao seu lado, de uma ponderável massa de trabalhadores incapazes de produzir a própria vida, senão pelo amanho de uma pequena porção de terra – isto é, que no seio da população escrava se tenha formado certa massa de escravos filhos e netos de escravos, sem experiência, portanto, da vida nômade que seus pais e avós levavam antes de serem escravizados;
  2. a apropriação, pela classe dos feudais, de toda a terra acessível, habitável e agricultável, não restando terras livres onde aqueles trabalhadores reduzidos à condição de agricultores sedentários se pudessem instalar – isto é, a supressão do regime pelo qual a Coroa, no intuito de habilitar-se a negociar novas vassalagens, reduzia ao mínimo as terras doadas aos fazendeiros, o que implicava deixar, ao lado das terras já apropriadas por estes, muitas terras “devolutas”, isto é, livres ou sem dono.

A lei de população típica das sociedades escravistas, que dificulta a reprodução da massa servil, tornando indispensável o afluxo de novas levas de escravos, conduz a uma crise quando esse afluxo é interrompido. No nosso caso, essa interrupção viria em consequência da repressão ao tráfico pela Inglaterra e da lei brasileira de 1850 que também o proibia, de maneira singularmente eficaz. O resultado seria o aparecimento de um crescente contingente de escravos já incapazes de produzir a própria vida nas condições pré-escravistas, e de escravos filhos e netos dos selvagens escravizados. Satisfazia-se, assim, a primeira condição para a passagem do escravismo ao feudalismo.

A segunda condição começaria também a ser satisfeita por outra legislação do mesmo ano: a lei de terras. Com efeito, à medida que a massa de selvagens recém-escravizados fosse substituída por seus filhos e netos, a abolição da escravidão poderia significar o aparecimento de uma generalizada pequena exploração agrícola, nas terras devolutas e, como é natural, contraisso a classe dos fazendeiros levantava-se como um só homem. Ora, a absorção de todas as terras devolutas de interesse agrícola pelos fazendeiros, criando a condição nulle terre sans seigneur, abria outra solução, a saber, a conversão do escravo em servo de gleba, permitindo a dispensa parcial da violência direta, na medida em que o servo está interessado no resultado do próprio trabalho e, em consequência, é um trabalhador capaz de uma produtividade muito maior que a do escravo – a ponto de compensar o maior custo de produção da mão de obra, o qual, agora, deve cobrir as necessidades dos membros inativos da família trabalhadora.

A absorção, de fato ou de direito, das terras devolutas reduz a letra morta a nua propriedade da terra criada em Tordesilhas. Pari passu, muda o status do fazendeiro, em suas relações com o resto do mundo, vale dizer, da “porteira para fora” da fazenda. As velhas relações feudais (suserania-vassalagem) caducam e a comercialização de sua própria produção, antes uma atividade secundária de uma entidade essencialmente natural, como a velha fazenda de escravos, passa para o primeiro plano. A fazenda tende a tornar-se internamente feudal e externamente uma empresa comercial. Politicamente, a classe dos vassalos-senhores de escravos tende a converter-se na classe dos barões-comerciantes – os latifundiários do período republicano.

Preparava-se o advento da:

A Segunda Dualidade Brasileira

A passagem da primeira para a segunda dualidade não foi instantânea, mas um processo demorado, resultante do trabalho das contradições que minavam o polo interno da primeira. O polo externo desta, como já ficou assinalado, passaria intacto e muito amadurecido e fortalecido à segunda, visto que o estágio de desenvolvimento das forças produtivas do sistema já alcançado ainda não entrara em conflito com as relações de produção que o enquadravam. Importa, pois, dedicar maior atenção para o que se passava no polo em processo de renovação e regeneração.

A exemplo do que, no Baixo Império romano e em sua periferia bárbara, se passou, nos primeiros séculos de nossa era, a fazenda de escravos brasileira, nas condições da fase ascendente do segundo Kondratiev, entrou a acumular tensões que, afinal, deveriam converter a massa de escravos (filhos e netos de escravos, por força das mudanças decorrentes da interrupção do tráfico) e de “libertos” e trabalhadores livres e semilivres, cujo número vinha crescendo dentro e em torno das fazendas, em servos de gleba – ou, como aqui dizíamos, “colonos” e “agregados”.

Por outro lado, a interiorização do aparelho de intermediação mercantil, que fundara a primeira dualidade, conforme já vimos, colocava esse aparelho, isto é, a classe dos comerciantes, em parte já voltada para o mercado interno, em posição propícia ao progressivo esvaziamento das relações de suseraniavassalagem que presidiam, na origem, às relações entre o oikos escravista e o resto do mundo, vale dizer, o mercado capitalista. Ao mesmo tempo que o senhor de escravos se convertia (nas relações de produção internas da fazenda) em senhor feudal, o vassalo, que ele também era (nas relações externas da mesma), convertia-se em comerciante. O capitalismo chegava, pois, não mais indireta, mas agora diretamente, à fazenda, por onde, no advento da primeira dualidade, havia chegado à economia nacional, isto é, pelo lado externo. E era o mesmo capitalismo mercantil, primeiro estágio do desenvolvimento do capitalismo.

Surgia, assim, um elemento comum aos dois polos da dualidade. No polo externo, o capitalismo mercantil estava presente no lado interno; no polo interno, no lado externo. Apenas, no primeiro caso, o capitalismo mercantil unia-se dialeticamente ao capitalismo industrial do centro dinâmico e introduzia na economia nacional produtos oriundos de uma economia capitalista, isto é, mercadorias, desde sua origem, ao passo que, no segundo, servia para converter em mercadorias produtos oriundos de uma economia natural, representando, em grande parte, sobreproduto retirado, como tributo feudal, aos produtores diretos. Nada mais equivocado do que definir o regime sob o qual tais bens eram produzidos como salariato. Este, mesmo no quadro urbano, era excepcional e por muito tempo seria um falso salariato.

Isto posto, tínhamos na segunda dualidade brasileira:

segunda dualidade brasileira

Sobre essa base econômica assentava a estrutura política do Estado, a saber: sócio maior, a burguesia comerciante, representativa do polo externo; sócio menor, os fazendeiros, latifundiários feudais, por um lado, e comerciantes, por outro, representando o polo interno.

A classe dos comerciantes (em unidade com a burguesia industrial do centro dinâmico) nascida da Abertura dos Portos-Independência, era agora uma formação madura, politicamente capaz de conduzir os negócios do Estado, de modo a dar margem a que seu sócio menor, politicamente imaturo, fizesse prova de todo o dinamismo de que era capaz, como a formação social nascente que era.

Havendo a segunda dualidade nascido nas condições da fase recessiva do ciclo longo (de fato, os decênios 1880 e 1890 estiveram nitidamente abaixo do trend, no tocante ao giro dos negócios e, tecnicamente, a fase B do segundo Kondratiev começou em princípio dos anos 1870; ver quadro I)(Referência 1), tinha, como a primeira, que fazer prova de capacidade de promover uma forma qualquer de substituição de importações. Ora, ao se converter em latifúndio feudal, a antiga fazenda de escravos perdia muito da centralização do comando e não poderia repetir o brilhante desempenho nos quadros da primeira dualidade. Uma substituição natural de importações não podia ser senão um elemento auxiliar. Quanto ao esforço principal, caberia ao capital mercantil promovê-lo, basicamente incentivando a diversificação da produção interna, por processos artesanais e manufatureiros. Os empreendimentos industriais tiveram papel menos relevante e, quando estiveram presentes, foi através de unidades produtivas que somente se apoiavam no mercado interno de fatores, para a mão de obra não qualificada e para as matérias-primas, isto é, não eram eficazes como meios de substituir importações.

As formas como se modificara a velha fazenda de escravos, antes de ceder o passo ao latifúndio feudal-mercantil, facilitavam o encaminhamento, sob a orientação do capital mercantil urbano, do novo esforço de substituição de importações. Com efeito, havendo aumentado, na fase ascendente do segundo Kondratiev, a receita monetária dos fazendeiros, muitos deles mudaram-se para as cidades, levando consigo uma numerosa criadagem escrava, remanescente da superdimensionada casa-grande que, na fase B do primeiro ciclo longo, fora a sede do esforço principal de substituição de importações. Ora, quando, sob a influência do refluxo do ciclo longo, a renda monetária das famílias nobres declinou, seria impensável refazer a casa-grande, fazendo refluir para as fazendas uma população já urbanizada havia anos, por vezes por uma geração inteira. Essa população escrava foi sendo paulatinamente libertada e lançada ao mercado urbano de trabalho – não raro antes mesmo da liberdade, como “negros de ganho”, por seus próprios senhores arruinados.

Por este lado, pois, havia condições propícias para a diversificação da produção nacional – implicando, pois, substituição de importações – através do desenvolvimento de atividades artesanais de transformação e construção civil. Essas atividades, estruturadas sob o acicate da crise do comércio exterior, resistiriam, por serem urbanas, à desestruturação, quando a conjuntura externa nos designasse outro campo primordial de ação, a saber, a produção de exportações, por força do jogo periódico de fluxo e refluxo, que o centro dinâmico mundial nos impõe. Essas atividades exportadoras teriam que ser basicamente agroprimárias, isto é, seriam predominantemente rurais e não urbanas. Entrementes, sob outra forma, nossa economia periférica mostrava-se capaz de expansão, não somente nas fases ascendentes, mas também nas fases recessivas dos ciclos longos.

A “pequena produção de mercadorias” que, sob a orientação e comando do capitalismo mercantil, empreendíamos foi, por mais de um ponto de vista, uma preparação para a industrialização substitutiva de importações, que, mais tarde, na fase recessiva do terceiro Kondratiev, empreenderíamos. Em primeiro lugar, expandia-se o mercado, porque tínhamos uma produção de mercadorias e não uma produção natural ou de autoconsumo. Sobre essa base, a moeda brasileira estruturava-se, e isso era também uma importantíssima precondição para a industrialização.

A República foi a homologação das mudanças ocorridas na dualidade e, em boa parte, identifica-se com a segunda dualidade. O personagem típico desta, representante do sócio hegemônico, foi a Casa Comissária empenhada no comércio de exportação-importação, apoiada nas comunidades de comerciantes que representavam a cúspide do edifício social em cada uma das “ilhas” que então compunham o “arquipélago econômico brasileiro”, quase sem intercâmbio entre si, quase inteiramente orientadas para os mercados exteriores e, na base do mesmo edifício, encontravam-se os latifundiários-comerciantes, isto é, os “coronéis” representantes do polo interno ou “sócio menor”.

O advento da fase A do terceiro ciclo longo (convencionalmente datado de 1896) associa-se ao surto cafeeiro, a máxima manifestação do dinamismo do latifúndio encarnado no polo interno do sistema. A segunda dualidade foi marcada também pela Primeira Guerra Mundial, que refletiu sobre a nossa economia sob a forma de uma aguda crise comercial, que teve o efeito de induzir um enérgico, posto que temporário, esforço artesanal de substituição de importações, antecipando o longo recesso, isto é, a Grande Depressão Mundial, já na fase B do terceiro Kondratiev, que nos traria a terceira dualidade, a Segunda República e a passagem a formas industriais de substituição de importações.

A Terceira Dualidade Brasileira

Vimos que, na segunda dualidade, o “sócio maior” (e mais antigo) foi o representante do polo externo – a classe dos comerciantes, em unidade com o capitalismo industrial do centro dinâmico. Consequentemente, por este polo deveria chegar ao fim a segunda dualidade e sua mudança deveria ocorrer através da passagem, para o lado interno, do modo de produção antes presente no lado externo do mesmo. Consequentemente, o capitalismo mercantil deveria ser substituído, no lado interno do polo, pelo capitalismo industrial.

E foi isso efetivamente o que ocorreu. Com a Grande Depressão Mundial, fato que, com a Segunda Guerra Mundial, assinala a passagem da fase B do terceiro ciclo longo, o velho arranjo (pelo qual, pela intermediação do capitalismo mercantil interno, o capitalismo industrial do centro dinâmico fazia sentir sua presença, como mercado para nossos produtos de exportação e fonte dos nossos produtos de importação) revelou-se inteiramente privado de perspectivas. Mais uma vez a economia, nas condições do prolongado estancamento do comércio exterior, com uma contração sem precedentes de nossa capacidade para importar (ver quadro I)(Referência 2), era chamada a um esforço em profundidade de substituição de importações. Ora, seria impensável repetir o desempenho do polo interno, que caracterizou a primeira dualidade (diversificando a produção das fazendas de escravos). Quanto à repetição da experiência da segunda dualidade, organizando-se a diversificação da produção interna por via artesanal, sob a liderança do capitalismo mercantil, seria possível e foi tentada, não apenas regionalmente (nas regiões menos desenvolvidas do país), como também setorialmente (nos setores que de início não fosse possível modernizar ou industrializar). Mas o fato de que, em certas atividades, especialmente da indústria de transformação, tivesse sido possível empreender uma peculiar substituição industrial de importações viria introduzir no sistema um elemento novo, de extraordinário dinamismo. Entrementes, isso queria dizer que, no esquema da dualidade brasileira, introduzia-se uma mudança de estratégica importância, a saber: no polo externo da dualidade, o capitalismo industrial – antes presente do lado externo – aparecia agora do lado interno, substituindo aí o capitalismo mercantil. Era a terceira dualidade que nascia.

Esse capitalismo industrial nascente teria que abrir caminho em luta porfiada contra o seu homônimo – o capitalismo industrial do centro – exatamente como, um século e pouco antes, o capitalismo mercantil nascente o fizera. Com efeito, cada passo da novel indústria levava-a a chocar-se com a indústria metropolitana, que devia ceder um fatia do mercado brasileiro. Segue-se que, como eletricidades do mesmo nome, que se repelem, o aparecimento do capitalismo industrial no lado interno do polo implicava sua exclusão do lado externo e, para recompor a dualidade, seria mister sua substituição por uma outra formação (superior). Assim, o lugar antes ocupado pelo capitalismo industrial cêntrico foi ocupado paulatinamente pelo capitalismo financeiro.

Para compreendermos essa transição, é indispensável que nos apercebamos de que, precisamente na época do advento da terceira dualidade, o capitalismo financeiro estava passando por uma mudança profunda, pouco visível então, mas muito evidente, hoje em dia. Com efeito, surgido da união do capital industrial com o capital bancário (isto é, com o capital financeiro stricto sensu), o capital financeiro (no sentido lato ou de Hilferding) era, em si mesmo, uma formação dual, cujas partes constitutivas se uniam dialeticamente, isto é, conflitantemente. No início, o predomínio indiscutível cabia ao capitalismo industrial, que se servia do capital financeiro (o banco e todo o aparelho de intermediação financeira) como de um aparelho ancilar, para a promoção dos seus próprios interesses. No essencial, tratava-se de organizar o suprimento de produtos primários e matérias-primas para o parque industrial metropolitano e de mercados para os produtos do mesmo. O capital financeiro, no sentido estrito, não tinha, a rigor, política própria. Foi esse o capitalismo financeiro estudado por Hilferding e a Inglaterra imperial era sua manifestação mais acabada.

Com o correr do tempo, os papéis tendiam a inverter-se, isto é, os interesses do aparelho de intermediação financeira tendiam a emergir como dominantes, e esses interesses tanto poderiam, como no passado, coincidir com os do capitalismo industrial metropolitano, ou de origem, em conjunção com o qual havia nascido, como não, podendo, inclusive, suscitar o aparecimento de outros capitalismos industriais, dentro da metrópole, ou fora dela, potencialmente competitivos com o capitalismo industrial original. As empresas supra ou multinacionais são a manifestação mais em vista do capitalismo financeiro chegado a esta segunda fase do seu desenvolvimento, mas não a única.

Com efeito, o capitalismo industrial nacional – por oposição ao supra ou multinacional implantado nos países periféricos – tem também essa história. Sem certa medida de tolerância – quando não de cumplicidade – do capital financeiro cêntrico, nosso capitalismo industrial teria tido que vencer muito maiores dificuldades para desenvolver-se e talvez não tivesse mesmo podido fazê-lo.

Na época do advento da terceira dualidade brasileira, o capitalismo financeiro europeu – particularmente o inglês, para o qual nos orientávamos, desde antes da Abertura dos Portos – não havia ainda alcançado esse estágio superior de desenvolvimento. Sua política continuava a ser organizar o suprimento de matérias-primas e produtos agroprimários para a metrópole e preservar nosso mercado para os produtos industriais metropolitanos. Outra, porém, seria a atitude do capital financeiro norte-americano, que não era supridor tradicional de produtos industriais ao Brasil e contava com uma vasta e diversificada produção primária metropolitana, condição que o desenvolvimento da técnica só tendia a consolidar, industrializando a agricultura e a produção de matérias-primas. Consequentemente, esse novo capital financeiro pouco tinha a perder com o desenvolvimento de alguma indústria no Brasil e, ao contrário, muito tinha a ganhar. Segue-se, pois, que a terceira dualidade nos traria não somente uma mudança de hegemonia no plano interno, mas também a troca de hegemonia (a inglesa pela norte-americana) no plano externo. Tínhamos, pois, na terceira dualidade brasileira:

Sobre essa base econômica levanta-se o edifício político do Estado, a saber: sócio maior, os fazendeiros-comerciantes representantes do polo interno; sócio menor, a burguesia industrial nascente, representante do polo externo.

polo interno e polo externo

Tal como das outras vezes, a origem desse sócio menor foi uma dissidência da classe hegemônica da anterior dualidade. Esses industriais, na origem, não se julgavam tais, mas comerciantes, como os outros, agrupados nas Associações Comerciais, que, em vez de comprarem e venderem, simplesmente, compravam insumos e vendiam produtos. Isso abria a possibilidade de que uma parcela crescente dos insumos, com que se sintetizavam os produtos, viesse a ser comprada dentro do país, para juntar-se aos insumos importados. Consequentemente, uma parcela cada vez mais importante do valor incorporado no produto seria pagamento de fatores nacionais e, a esse título, renda nacional. Estava montado o esquema de substituição de importações da terceira dualidade.

A consciência de que os “novos comerciantes” não eram tais, mas outra formação social – a saber, a burguesia industrial –, começaria a definir-se gradualmente, por força da própria crise que dera nascimento à terceira dualidade. Com efeito, ao fechar os mercados externos a nossas exportações – não apenas em termos de quantum, mas, talvez principalmente, de valor – estabelecia-se uma distinção clara entre os dois grupos de “comerciantes”. Os primeiros não tinham vocação para substituição (industrial) de importações e os segundos, sim. Politicamente, a crise debilitava os primeiros e fortalecia os segundos, na medida em que conferia a estes uma incumbência de estratégica importância para a economia nacional como um todo. Os novos industriais passavam a fazer jus ao apoio e simpatia de todas as forças vivas do país – inclusive as forças populares e as massas trabalhadoras. A própria crise, com efeito, no ato mesmo de comprimir a capacidade para importar do país, estabelecia uma reserva de mercado para uso dos substituidores de importações.

A eficácia da substituição de importações media-se, naturalmente, em termos da parcela de insumos que pudessem ser supridos pela economia nacional, isto é, na medida em que as novas indústrias se pudessem apoiar na preexistente economia nacional, onde a produção industrial era ainda uma exceção, muito particularmente no que diz respeito aos bens de produção. Ora, a produção industrial de equipamentos e outros bens de produção estava ainda num futuro imprevisível. Segue-se, portanto, que a formação de capital implicava um apelo em escala considerável a formas pré-industriais de produção – desde a agricultura exportadora e supridora de matérias-primas às oficinas artesanais de manutenção dos serviços de utilidade pública e das poucas fábricas e usinas existentes. Em suma, não obstante a função de produção poupadora de mão de obra, no processo de instalar-se, a nova indústria engendrava uma demanda de fatores altamente “insumidora” de mão de obra, isto é, a mão de obra que deveria ser poupada no futuro era intensamente empregada no presente.

Por um lado, tudo – a começar por um direito do trabalho corporativo, que criava uma espécie de “servidão industrial de gleba”, acoplando duradouramente o trabalhador a sua máquina, e que encarecia o fator trabalho, cobrando-se institucionalmente um segundo salário – conspirava para impor funções de produção avançadas ou intensivamente industriais. Por outro, à vista das limitações incontornáveis da capacidade para importar, tornava-se inevitável o apelo intensivo ao uso de mão de obra. Os recursos que o Estado auferia de sua participação no segundo salário, isto é, nos encargos salariais, eram a contrapartida dos subsídios concedidos por diversas vias ao empresário, para o resultado final de baratear-lhe o fator capital. Com um fator trabalho caro e um fator capital barato, a opção por uma função de produção intensiva quanto ao capital estava, em boa parte, predeterminada.

Possibilitava-se, assim, uma industrialização setorialmente escalonada, isto é, a terceira dualidade engendrava um fato novo, numa economia periférica, isto é, produzia seu próprio ciclo, coisa antes prerrogativa dos países industrializados integrados no centro dinâmico. Não se tratava, por certo, do ciclo longo, que é inerente ao centro dinâmico mundial, como reflexo que é dos processos de gestação e propagação de tecnologia nova, mas de ciclos médios, aparentemente da família dos ciclos de Juglar, aparentemente inerentes à fase de construção do capitalismo industrial.

Nossa experiência, nos quadros da terceira dualidade, nos ensina que, periodicamente – por períodos aproximadamente decenais, como os dos ciclos de Juglar –, a economia, após uma fase ascendente (de aproximadamente um lustro), entra em crise, a qual acaba por induzir certas mudanças institucionais (no fisco, no câmbio, no direito do trabalho, nos meios de acesso à nova tecnologia e, em especial, no aparelho de intermediação financeira), as quais sensibilizam novos grupos de atividades econômicas ainda não modernizadas, pondo em marcha uma vaga de investimentos, cujos efeitos se propagam a todas as partes do sistema econômico, o qual é impelido, afinal, para nova fase ascendente. Esta é a etiologia dos nossos “milagres”. Entrementes, esgotado o impulso – quando os pontos de estrangulamento cedem o passo a atividades carregadas de capacidade ociosa –, sobrevém outra crise, que confronta a economia com as posições polares de ociosidade e de antiociosidade (isto é, um complexo de pontos de estrangulamento), promoverá tensões sociopolíticas e, afinal, provocará novas mudanças institucionais, viabilizadoras de nova onda de investimentos, ou seja, de novo “milagre”.

Outra singularidade da terceira dualidade está no fato de que, embora havendo começado nas condições da fase recessiva do ciclo longo, a industrialização substitutiva de importações (ou, mais propriamente, a substituição industrial de importações) não se interrompeu com a passagem à fase ascendente do quarto Kondratiev. O dinamismo do processo de industrialização, engendrando demandas de importações sempre novas, fez com que o impulso se mantivesse, não obstante a considerável expansão da capacidade para importar dos últimos tempos. Isso não poderia ter acontecido num processo artesanal de substituição de importações, mas, entende-se, num processo industrial. Não é uma proposição privada de sentido a de que o Brasil prossiga em seu esforço de industrialização para além da substituição de importações, tanto mais quanto o centro dinâmico mundial (porque há muito que temos nosso próprio centro dinâmico nacional) parece haver encerrado a fase ascendente (1948-1953, aproximadamente) e passado à fase recessiva do quarto ciclo longo. Voltaremos a este assunto, ao tratarmos da quarta dualidade.

Entrementes, limitemo-nos a registrar que a industrialização, começada como substituição de importações das atividades supridoras de bens não duráveis de consumo, passou à produção industrial de peças, de bens duráveis de consumo (que, afinal, são máquinas), de bens de investimento e de insumos básicos. Por outras palavras, temos hoje um parque razoavelmente completo, pouco importando que tenhamos começado por onde, numa visão simplificada do problema, deveriamos haver acabado. Sem esquecer uma industrialização já muito avançada da própria agricultura, o que torna agudas as contradições internas do setor e do sistema como um todo.

Conclusão: A Quarta Dualidade

A quarta dualidade está, obviamente, no futuro. Não obstante, de certo ponto de vista, ela é tão atual como se já tivesse acontecido. Está presente na crise que atravessa a sociedade brasileira, que é, pelo que tem de próprio, de endógeno, a crise da terceira dualidade, a qual tem toda probabilidade de desembocar na quarta. E, pelo que tem de exógeno, o que há de mais caracteristico é a já muito plausível entrada na fase B do quarto ciclo de Kondratiev. Se for mister datar essa transição e assinalá-la por um fato marcante, indicariamos o ano de 1973 e a crise do petróleo. Basta comparar as taxas de variação da produção industrial nos principais paises integrantes do centro dinâmico, nos septênios 1967-1974 e 1973-1980 (ver quadro II).(Referência 3)

A crise do nosso comércio exterior manifesta-se, desta vez, por um endividamento externo de tal monta que teria sido impossivel sem que algo de muito estrutural houvesse acontecido, dentro e fora do Brasil. O fato de que o período transcorrido desde então se tenha assinalado por um intercâmbio externo notável, e não por um colapso como o que se seguiu a 1929, talvez se explique e não deve nos servir de consolo. Também as décadas de 1820 e 1870, bem como a de 1920 (ver quadro I),(Referência 4) foram, tecnicamente, parte das fases B dos respectivos ciclos longos, mas, para nós, medidos pelo gabarito do intercâmbio externo, foram decênios de excepcional desempenho. Anos de crise, por certo, como podemos convencer-nos examinando as vicissitudes politicas, mas, do mero ponto de vista do desempenho do comércio exterior, anos prósperos.

Como resposta ao espantoso endividamento externo (se o comparamos com as forças prováveis do comércio exterior, como deve ser), um vigoroso esforço de substituição de importações terá que ser instrumentado. E, como o deficit coberto pelas entradas extraordinárias de capitais reflete essencialmente a importação de bens de equipamento e outros bens de produção, o esforço de substituição de importações deverá recair sobre muitos produtos integrantes desse grupo. Por outras palavras, o esforço principal de substituição de importações deverá orientar-se para o Departamento I da economia.

Grande parte desse esforço não visará à simples substituição de importações (do tipo petróleo nacional contra petróleo importado), nem a troca de um produto por outro suscetível de ser integrado na mesma função de produção (do tipo petróleo por álcool), mas implicar radicais mudanças dessa função (como quando queremos substituir o carro de passeio pelo metropolitano, como meio de produzir passageiros/km, nas grandes cidades). Segue-se que o esforço de formação de capital implícito nessas substituições de importações pode implicar vultosíssimas imobilizações, por cada dólar/ano de importação que desejemos poupar.

Isso nos leva ao ponto fraco do nosso atual dispositivo econômico, a saber: a falta de um aparelho de intermediação financeira que permitisse viabilizar essa formidável formação de capital, vista pelos nossos presentes gabaritos. Com efeito, sem um adequado aparelho de intermediação financeira e sem uma revisão do enquadramento jurídico das unidades produtivas investidoras, não será possível assegurar plena (ou apenas razoável) utilização para o potencial produtivo já criado, no citado Departamento I, com o resultado de que deveremos continuar a importar numerosas coisas que já estamos em condições de produzir, simplesmente pela incapacidade de substituir o financiamento externo pelo financiamento interno.

Supondo-se resolvido esse problema – o problema-síntese –, o que não deve tardar muito, porque importa em mudanças institucionais plausíveis, à vista do desenvolvimento já registrado no aparelho de intermediação financeira e no direito que rege os serviços de utilidade pública (os principais investidores, desde já), restariam ainda outros problemas.

O primeiro e mais grave desses problemas é a questão agrária – a questão titular, por assim dizer, porque sua solução importará em mudança do polo interno da dualidade, o polo em crise. Com efeito, estivemos industrializando o país com uma estrutura agrária por reformar, e isso somente foi possível pelo motivo indicado quando discutimos a terceira dualidade, de que a execução de projetos industriais (de elevada razão capital/produto), num país de capacidade para importar inelástica e não dispondo ainda de um parque moderno produtor de meios de produção, implicava a produção desses meios por processos pré-industriais, com emprego intensivo de mão de obra (métodos artesanais nas atividades de transformação, construção civil rotineira e agricultura muito primitiva, para ganhar alguma receita cambial adicional). Ora, precisamente a negação dessa condição foi o que conduziu afinal, setor após setor, ciclo após ciclo, o esforço de industrialização substitutiva de importações, que criou uma indústria de bens de produção gravemente subutilizada, uma razoavelmente equipada indústria da construção, também subutilizada, e uma agricultura, não apenas mecanizada, mas que na década de 1970 esteve expandindo seu consumo de adubos químicos ao ritmo de 14% ao ano. Todas essas atividades são agora poupadoras de mão de obra, demonstrando que o multiplicador de emprego dos investimentos é mínimo, o que significa que, mesmo em períodos de intenso crescimento econômico, a tendência do sistema é produzir um superdimensionado “exército industrial de reserva”, visto que a agricultura já expeliu do quadro rural o grosso da mão de obra que antes retinha e que se tornou desnecessário, à vista da modernização do setor.

Seria, por certo, possível restabelecer temporariamente – e para isso não devemos buscar senão soluções temporárias, porque, afinal, o grosso da população deve ser usado nos setores secundário e terciário, no quadro urbano – o complexo rural desfeito: seja no quadro rural, suscitando uma produção de autoconsumo (de bens agrícolas e não agrícolas) que absorvesse a mão de obra temporária ou estruturalmente inativa da família camponesa; seja no quadro urbano, possibilitando a construção suburbana de casa própria, pelo emprego da mão de obra ociosa da família trabalhadora urbana.

Nos dois casos, o fato inibidor é o preço proibitivo da terra – seja da terra agrícola, seja do solo urbano. Ora, esse preço não é inerente à terra como tal – para cultura ou construção –, mas resultado do fato de haver a terra emergido como reserva de valor, o que quer dizer que o preço da terra converteu-se num fenômeno financeiro, sensível, portanto, às mudanças que se observem no campo financeiro.

A certa altura, é inevitável uma reversão das expectativas, trazendo consigo a possibilidade de um colapso do preço da terra, desatando todo o nó de contradições em que se move o sistema atualmente. Não apenas boa parte do desemprego urbano – causa eficiente dos elevados níveis da criminalidade urbana – será reabsorvida, como as diferenças entre as duas partes de que se compõe o latifúndio, vale dizer, a classe hegemônica da terceira dualidade, se tornarão evidentes. Uma dissidência do velho latifúndio feudal – proprietários capitalistas, por motivos especulativos, de vastas glebas ociosas – procurará desfazer-se de suas terras excedentes, precipitando com isso a queda do preço do fator, o qual, tornando-se acessível a pequenos adquirentes, destruirá o monopólio latifundiário da terra, sem o qual nenhum feudalismo será possível.

Terá chegado ao fim a terceira dualidade, constituindo-se a quarta dualidade brasileira, a saber:

4ª dualidade brasileira

Sobre essa base econômica levantar-se-á o novo edifício do Estado: sócio maior, a burguesia industrial, representando o polo externo; sócio menor: a nova burguesia rural, representando o polo interno.

Note-se a aproximação dos dois polos, no tocante aos respectivos modos dominantes de produção. A economia e a sociedade se homogeneizam, prenunciando o fim do próprio fenômeno da dualidade.

[ANEXOS]
Quadro 1 – Centro dinâmico mundial (libras-ouro)
Decênios Export. + import.
Média anual
Pop. 1000 hab.
(a)
Ano médio
(b)
Libras/hab.
(c)
Trend
c/1925
c/1825
(d)
Conjuntura
c/d
(e)
Ciclo longo
(f)
1821-1830 8.160,1 4.173 1,95 1,95 1,0 1º K (B)
1831-1840 9.949,6 5.421 1,84 2,12 0,87 idem
1841-1850 11.567,9 7.042 1,64 2,30 0,71 idem
1851-1860 21.728,7 8.444 2,57 2,50 1,03 2º K (A)
1861-1870 28.129,9 9.394 2,99 2,72 1,10 idem
1871-1880 36.461,4 10.718 3,40 2,96 1,15 2º K (B)
1881-1890 41.308,6 13.014 3,17 3,21 1,0 idem
1891-1900 54.283,4 15.754 3,44 3,49 1,0 idem
1901-1910 79.506,5 19.965 3,98 3,79 1,0 3º K (A)
1911-1920 123.494,4 26.514 4,66 4,12 1,0 idem
1921-1930 148.032,7 33.068 4,48 4,48 1,0 3º K (B)
1931-1940 67.737,3 38.512 1,76   1,0 idem
Fonte: Caio Prado Jr, História econômica do Brasil – Apêndice.
(retornar à Referência 1) (retornar à Referência 2) (retornar à Referência 4)

 

Quadro 2 – Centro dinâmico mundial / Produção industrial
[País] 1967 a 1974
1967 = 100
% a.a. 1973 a 1980
1973 = 100
% a.a.
Bélgica 141 5,0 109 1,3
Canadá 147 5,6 112 1,6
França 152 6,1 110 1,4
Rep. Fed. Alemanha 147 5,6 110 1,4
Israel 221 12,0 140 4,9*
Itália 141 5,0 125 3,2
Japão 188 9,4 122 2,8
Holanda 166 7,5 113 1,8
Noruega 137 4,5 146 5,6
Espanha 210 11,1 122 2,9*
Suécia 142 5,1 103 0,4
Suíça 137 4,6 101 0,1
Inglaterra 115 2,0 99 –0,1
Estados Unidos 124 3,1 114 1,8
* Extrapolação do sexênio 1973 a 1979.
Fonte: ONU, Monthly Bull of Statistics.
(retornar à Referência 3)