Á Commissão eleitoral do Partido Socialista do circulo n.º 98 (Lisboa)
Meus caros correligionarios:
Acceitando a candidatura, que novamente me offerece a Commissão do Partido Socialista no Circulo 98, folgo de poder dar mais uma vez aos socialistas portuguezes um testemunho da minha inalteravel adhesão á causa que representam, testemunho publico e revestido da solemnidade que é propria dos actos civicos.
As candidaturas socialistas têem a meus olhos — o que não têem nenhumas outras, monarchicas ou republicanas — uma alta significação politica.
Têem-na, em primeiro logar, como prova de que no espirito da classe trabalhadora, ainda ha pouco tão facilmente accessivel ás seducções dos velhos partidos e ás suas perigosas 1llusões, penetrou finalmente uma nova e mais profunda concepção da ordem social, e que a essa luz sabe ella agora vêr quanto são vasios e insignificantes os programmas d'uma política puramente formalista, rotineira e superficial, ainda quando se pretende revolucionaria, quanto são estereis evoluções politicas que apenas se traduzem em mudanças de nomes e de fórmas, quanto finalmente carece de base toda a agitação politica que não implica uma reforma da economia nacional e uma melhor organisação do mecanismo que produz e distribue a riqueza.
N'uma palavra, a classe trabalhadora comprehendeu que sem socialismo toda a politica é vã e superficial; fez do socialismo a pedra de toque dos programmas e dos partidos, e achou-os a todos egualmente sem valor.
Creando no seu seio, sob a inspiração d'esta idéa, um partido novo, e apresentando candidaturas suas, a classe trabalhadora declarou praticamente aos velhos partidos formalistas que os considerava a todos por egual impotentes para contribuirem para o progresso social, por egual vasios de verdadeira substancia politica, por egual caducos e anachronicos.
Representantes d'um movimento hoje esgotado, o movimento individualista, liberal e burguez do primeiro quartel d'este seculo, os partidos conservador, progressista e republicano, tiveram já a sua razão de ser, correspondendo aos aspectos da revolução que consumaram e da sociedade que fundaram.
Mas, á medida que essa sociedade burgueza, transformando-se surdamente, entrou em decomposição, os partidos sahidos d'ella e que a representavam perderam tambem gradualmente a sua actualidade social: de partidos, transformaram-se em bandos, em quanto os seus programmas, a principio lemmas jurídicos, se foram reduzindo ao estado de phrases de convenção d'uma rhetorica tradicional.
No ambiente sutil e esterilisador d'essa conspiração permanente, que é a essencia mesma do parlamentarismo, perderam a noção da realidade; e, emquanto o mundo se transforma, vão repetindo machinalmente as costumadas theses d'uma philosophia política caduca e que nem já comprehendem.
Taes partidos, cuja permanencia só se explica pelo estado de torpor e inercia a que a incubação d'um mundo novo condemna momentaneamente a sociedade, são o caput mortuum da politica burgueza e nada mais.
Á política burgueza, que agonisa, e de cuja agonia são patentes symptomas as luctas no vazio e a esteril agitação dos partidos parlamentares e formalistas, oppõe a classe trabalhadora uma politica sahida da realidade social, uma politica não de fórmas mas de substancia, cujo objectivo é a alteração visceral da actual ordem economica e a reorganisação do Estado segundo a norma do direito economico.
Haverá, entre os partidos burguezes, ainda os que se reputam mais radicaes, um só que ouse subscrever a um tal programma?
Não ha, porque elle implica precisamente a destruição da sociedade burgueza, de que elles são os naturaes representantes. Radicaes abstractos, os jacobinos recuam diante d'esta tremenda realidade com tanto horror como os conservadores. Um jacobino é um conservador incoherente, com phrases de demagogo.
Ter comprehendido isto, tal é o grande progresso realisado durante os ultimos dez annos pela classe trabalhadora, e é esse progresso o que traduzem com energia as candidaturas socialistas.
Se sois por nós, demagogos do radicalismo abstracto (tal é a interpretação d'esse symbolo do sentimento popular), se sois por nós, porque não vos enfileiraes ao nosso lado, porque não caminhaes atraz da nossa bandeira, a unica popular, a unica hasteada por mãos populares, a unica onde se lê claro e positivo o lemma do direito popular?
Se como pretendeis, vos é cara a reivindicação do direito do Povo, porque é que nos vossos programmas se não menciona, nem sequer por allusão, a idéa em que se resumem todas as aspirações populares, a destruição do privilegio proprietario e capitalista, o fim do reinado da usura, a soberania do trabalho organisado, a igualdade economica?
Porque não apontam elles, esses programmas redundantes, ao menos como termo longinquo e criterio do progresso social, este ideal da Justiça economica? e desde já, como meio pratico, a abrir um caminho evolutivo a esse futuro distante, porque não reclamam a organisação do Credito como funcção collectiva e a sua consequente gratuidade? porque não reclamam a reivindicação pelo Estado dos mil elementos da propriedade social, hoje usurpados, e a consequente substituição da renda d'essa propriedade social ao imposto, por natureza anti-democratico e depauperisador? porque não reclamam a reforma politica do Estado, sob a base da representação nacional por classes e funcções sociaes, unica maneira de tornar legitima e sincera a representação e effectivos os direitos politicos do povo trabalhador?
Porque emudeceis, jacobinos declamadores, perante a unica questão que importa verdadeiramente ao Povo, ou equivocaes deploravelmente, oppondo a realidades concretas, vivas, palpaveis, phrases ôcas e abstrações d'um direito político incompleto, chimerico, porque sem base?
Burguezes radicaes, se a vossa republica não é mais do que a republica do capital, assim como a monarquia dos conservadores não é mais do que a monarquia do capital, que temos nós, Proletariado, que vêr com essa esteril questão de fórma? É uma questão de familia entre os membros da Burguezia, nada mais.
Tal é o alto sentido politico das candidaturas socialistas.
Ellas exprimem que a classe trabalhadora, senhora do seu pensamento e comprehendendo a final quanto esse pensamento é por natureza antipathico a todos os partidos burguezes, está firmemente resolvida a não abandonar mais a representação do seu direito, que é o da sua emancipação economica e politica, aos filhos prodigos da Burguezia, filhos prodigos, mas solidarios fatalmente com ella em interesses, intuitos e preconceitos, e com ella unanimes na exploração e sugeição do Proletariado.
Para exprimir o pensamento do Proletariado só o Proletariado é competente. Só elle é competente para reivindicar o seu direito.
Na arena politica, quem não é pelo Socialismo é contra o Socialismo; e quem é contra o Socialismo declara-se por esse facto inimigo do Povo trabalhador, para o qual a reforma social representa a emancipação pratica e effectiva, isto é, a redempção da miseria e a unica segurança positiva da sua liberdade, até aqui illusoria, como é sempre a do pobre e dependente.
As candidaturas socialistas, como um symbolo do pensamento popular, significam isto, e isto é um facto de primeira ordem na historia da consciencia politica do povo portuguez.
Por outro lado, pelo lado moral, não é menos expressivo o sentido das candidaturas socialistas.
Os habeis, dos partidos burguezes, espiritos materialisados pelo egoismo, para quem só tem valor o que pesa e faz vulto, sorriram-se desdenhosos quando viram, ha um anno, que a bandeira socialista apenas conseguira agremiar em volta dos seus candidatos pouco mais de um cento de votos. Cegos! que não comprehendem que as coisas da consciencia não se pesam na grosseira balança das coisas materiaes, que é a qualidade aqui e não o numero que faz o valor, e que uma só consciencia recta e sã vale incomparavelmente mais do que mi lhares, ou milhões que fossem, de consciencias turvas, cobardes e envilecidas.
Continuae a sorrir, dignos representantes do materialismo burguez; o vosso sorriso é a formula exacta da vossa ignavia.
Mas o Proletariado, o nucleo são e resistente do Proletariado, onde se propaga a ideia socialista, tem plena intelligencia do valor dos seus votos e é indifferente ás vossas apreciações de myopes.
Esses cento e tantos votos dados ás candidaturas socialistas representam outras tantas consciencias leaes, a quem uma convicção se impõe com a soberania do dever. E representam-no em condições d'uma integridade moral quasi heroica, porque esses votos, votos do pobre e dependente para affirmarem uma convicção, tiveram de resistir a seducções e pressões, ante que à propria riqueza verga tantas vezes miseravelmente, tiveram de resistir ao dinheiro, ás promessas e ás ameaças, aos mil meios, ora vis ora tyrannicos, que emprega habitualmente a insolencia do poder e da influencia.
Eram cento e tantos votos apenas — sim, mas nem um só vendido, nem um só extorquido pelo temor, nem um só se traduz em vileza, em cobardia, em abdicação da dignidade e do pudor. Candidatos dos partidos burguezes, ousareis dizer outro tanto?
Estes cem votos do pobre não só foram leaes, foram incorruptiveis — grande exemplo de moralidade dado pelo povo trabalhador, alumiado por uma idéa, á Burguezia, que, por falta d'uma idéa, se dissolve caduca na corrupção.
No meio da triste comedia politica das eleições do anno passado, foi este das candidaturas socialistas o unico episodio grave e digno, o unico em que a attenção do philosopho e do moralista se fixa com complacencia, para poder ainda acreditar na realidade d'alguma virtude civica n'esta terra.
Se os habeis e desdenhosos dos partidos burguezes não comprehendem isto, peior para elles. Pela minha parte, pondo, como ponho, as idéas acima dos factos e o valor moral acima de todos os valores, recebi commovido a parte exigua que d'aquelles honrados cem votos me coube, e julgar-me-hia singularmente decahido no dia em que preferisse trocal-os pelos milhares de votos que escoltaram ao parlamento, como uma commitiva de ebrios, os candidatos triumphantes da Burguezia.
Recebei, meus caros correligionarios, as minhas saudações fraternaes.
Anthero de Quental.