A inspiradora de Luiz Carlos Prestes

Figueiredo Pimentel


XV. Sonho de mulher


capa

Como uma sonâmbula, Taciana passeava, nas noites de insônia pela casa silenciosa. Seus braços nus pareciam nadar vagarosamente no ar.

Venâncio procurava na rua, nas rodas boêmias, o prazer que não encontrava no lar. Queria embriagar sua alma no turbilhão dos cabarets entre mulheres que disputavam o seu beijo e a sua bolsa.

Muitas vezes, ao chegar de madrugada, dirigia-se ao quarto da esposa e sentia que as outras mulheres não conseguiam fazer com que ele se esquecesse de Taciana.

Naquela manhã de sol frio a praia de Icaraí estava deserta como uma nave de convento. O mar silencioso parecia um grande lago adormecido. Venâncio pintava e Taciana, sem o saber, servia de modelo, recostada num monte de areia com o busto suspenso e a cabeça apoiada nos braços cansados. O mailot apertado fazia sobressair as formas elegantes do corpo quase nu. Contemplava, absorta, o mar sereno, com o olhar perdido no infinito azul do céu. Já ele pintara varias poses de Taciana mas não lhe saía da mente a alucinação de pintá-la nua.

A vida ao ar livre tinha para Taciana a magia do descanso; sentia-se mais perto do seu ideal, da verdade e mais ao alcance da felicidade. A natureza atuava em todos os seus sentidos, enchia-lhe o pensamento de lindas imagens; dava-lhe mais vigor e coragem de suportar a vida sofredora que passava. O majestoso silêncio da natureza enlevava sua alma romântica, despertava-lhe fundos e vivos pensamentos, varria de sua fronte os vínculos da dúvida e da tristeza. Despertava-lhe o sentimento da harmonia, a beleza da vida exterior. Seu principal prazer era a contemplação da natureza.

Seu olhar se espraiava horas e horas no gigantesco quadro da terra e do mar.

Seu pensamento era como o crepúsculo; formado da combinação do dia e da noite. Duvida e esperança.

Taciana vivia eternamente apaixonada, por um sonho, talvez. Ela sentia, na alma, a mesma ação da febre, no corpo.

O Pão de Açúcar, com a imponência de marco da cidade, ostentava-se ao longe.

Da varanda de sua casa, Taciana contemplava a agonia da tarde; lembrava-se das palavras do jornalista sobre a vida miserável que levava Luiz Carlos Prestes. La Gaiba era o inferno verde. Ela fora ao encontro do enviado do “O Jornal para saber como poderia mandar um emissário ao general Prestes. O jornalista lhe dera as informações mais desesperançadas. Contara como conseguira chegar à região longínqua do oriente boliviano completamente selvagem A odisseia de uma viajem acidentada, perigosa, numa lancha sem conforto, durante quase três dias para chegar a La Gaiba onde se refugiara o maior guerreiro da revolução brasileira.

O jornalista descrevera o que observara em torno de Prestes. O que publicara no “O Jornal” fora uma simples ideia do que se passava em La Gaiba. A falta de alimentação, a insalubridade do local, a ausência absoluta de recursos de qualquer natureza, estavam matando os bravos soldados brasileiros. Heróis que preferiam morrer ao lado do homem que admiravam sobre todas as coisas da terra, a abandonar o seu general depois das maiores bravuras no solo da pátria. Prestes era o que mais sofria porque sofria também moralmente vendo os seus soldados morrer aos poucos, sem que os pudesse socorrer.

Eram indescritíveis as cenas de sofrimento totalmente imprevistas. Os cruciantes padecimentos daqueles infelizes, cerca de seiscentos homens, que juraram morrer aos olhares do bravo general, eram a maior dor de Luiz Carlos Prestes. Os que estavam menos fracos procuravam trabalho cortando lenha.

Taciana ouviu calmamente toda a narrativa do jornalista. Disse-lhe para evitar possível complicação aos seus planos e também por uma questão de egoismo, que desejava as informações porque fizera uma promessa de enviar, por um portador seu, remédios e agasalhos aos soldados da Coluna Prestes.

Se os jornais soubessem que ela era a inspiradora de Luiz Carlos Prestes!... Se soubessem que ele se fizera o grande herói pelo seu amor!

Disse ao jornalista que lera as reportagens do “O Jornal” e por isso fora ao encontro do redator que entrevistara o general Prestes.

Enquanto a tarde caia como um véu cinzento sobre seus olhos cansados, Taciana recordava-se das palavras do jornalista;

— “Prestes é o que mais sofre”.

Ela imaginava a sua próxima viagem a La Gaiba. Como ele a receberia? Pensava no bem que ia fazer a seu amado. Imaginava o serviço que prestaria àquele glorioso militar que se fizera o herói do Brasil pelo amor que tinha por ela. Luiz, seu amado, precisava dela mais do que ninguém. E as duvidas vinham perturbar o doce embalo dos seus pensamentos. Deveria ela dizer que se casara? Como iria se apresentar agora ao seu noivo eterno? Como a receberia ele? Jurara, ao som de beijos ardentes, que seria somente dele, que o esperaria toda a vida. Acreditaria ele que ela se casara com Venâncio para poder encontrá-lo, a ele Luiz, a ele, o seu único amor na vida?

Sua ida a La Gaiba não seria a prova mais positiva do seu amor?

Taciana dissipava todas as duvidas que povoavam o seu cérebro, com a certeza de que Luiz Carlos Prestes não poderia duvidar do seu grande amor. Ele a amava e saberia perdoá-la. Vinham-lhe as recordações mais doces do seu tempo de felicidade no Rio Grande do Sul. As juras de amor. as promessas de uma felicidade eterna.

Ela, ao piano, tocando as suas musicas prediletas e ele ouvindo embevecido e vendo as mãos da sua amada deslizando no teclado, como lírios desabrochando à luz do sol.

Durante o jantar, Taciana teve vontade de dizer a Venâncio a sua resolução de o abandonar. Chegara a hora de seguir o seu destino. Ela o prevenira antes de casar-se e também depois do casamento dissera ao marido que estava emprestada a ele.

Venâncio não acreditava na possibilidade de Taciana o abandonar para juntar-se a Luiz Carlos Prestes. Aquele amor não passava de fantasia do espírito romântico de sua esposa. Ele considerava Luiz Carlos Prestes um homem liquidado. Morreria, fatalmente, no exílio já que se salvara durante os trinta meses de luta nos Estados do Brasil.

Venâncio não ocultava seu ódio pelo valente militar, por saber que ele era a maior preocupação da Taciana.

★ ★ ★

Durante o jantar, Venâncio convidou a Taciana para um passeio. Ela alegou indisposição. Não queria sair naquela noite. Precisava escrever a seu irmão Tasso e mandar-lhe uns retratos dela. Para disfarçar falou no irmão que terminava o curso naquele ano.

Através da fumaça azulada do charuto, Venâncio observava a esposa em êxtase olhos de estátua, fisionomia parada.

Taciana sentia profunda simpatia por Venâncio e admirava-lhe o cavalheirismo, a elegância, a fidalguia, o caráter de homem. Ele era um ótimo companheiro, um bom amigo. Inteligente e culto, simpático e amável, era uma bela figura nas reuniões, nos bailes, entre as mulheres que o admiravam. Ela sentia grande amizade por ele. Se Venâncio tivesse sabido captar o seu amor, si não fora a sua brutalidade de macho, a sua paixão bestial, ela seria feliz e talvez tivesse esquecido daquele amor-martírio.

Era uma mulher predestinada a viver amargurada. Nem ao menos a ventura de ser mãe! Os três anos de casada tinham passado como um sonho.

A sua formação de mulher, na neve da Suíça, órfã de mãe e pai, de todo carinho, fora feita na mais profunda tristeza.

No colégio, em Berna, sempre fora uma moça tímida, sempre estudando, sem entrar em convívio com as alegrias de suas colegas. Sua candura tocante e ridícula aos olhos das companheiras a impediam de tomar parte nas conversas íntimas das moças que falavam em namorados passados e vindouros. Naqueles cinco anos de reclusão espiritual ela não pensara nunca em homem algum. Tendo entrado criança para o colégio interno e regressado à casa já mulher feita, não tivera nunca um namorado. O primeiro e único homem que despertara o seu amor fora Luiz Carlos Prestes. Durante o tempo que se namoravam nunca sentira a mácula do despudor. Ele sempre fora um fidalgo, um caráter acendrado, um homem digno. Sabia que a alma de sua amada era como uma camélia cujo contato áspero mancha para sempre.

Criada num ambiente de pureza, com o espírito educado para as imagens sublimes da terra e do céu, tivera imensa desilusão e grande revolta intima com a brutalidade do homem com quem se casara; desse homem cuja sexualidade a enojara.

Era a mulher — alma.


Inclusão: 30/03/2024