MIA > Biblioteca > George Novack > Novidades
O processo de ser e vir a ser em nosso mundo é um todo interminável e materialmente unificado. Este processo evolutivo pode ser dividido em duas partes, conforme sua ordem de emergência e seu nível de desenvolvimento. O primeiro período compreende o desenvolvimento do universo físico, desde seu início observável até o advento dos primeiros humanos. De acordo com os cálculos hipotéticos mais recentes, essa evolução cósmica levou ao menos vinte bilhões de anos.
O segundo período cobre as origens e o crescimento de nossa espécie desde o momento em que nossos ancestrais primatas passaram do estado animal até o presente. Este processo de humanização durou aproximadamente dois milhões de anos.
As Ciências Naturais, da Astrofísica e Geologia à Biologia e Zoologia, lidam com um ou outro campo da evolução do mundo material em separado da existência social da humanidade. As Ciências Sociais, da Arqueologia e Antropologia à Economia Política e História, têm como seu objeto de investigação uma ou outra das dimensões da vida social decorrentes das atividades dos seres humanos.
A Sociologia(2) é uma das Ciências Sociais. Quais são suas características especiais e suas relações com outros ramos de pesquisa?
Outras ciências sociais, tais como Arqueologia, Economia, Demografia, Direito, Linguística, Psicologia e Lógica, estudam campos especiais e áreas restritas da atividade e conquista humanas. A Linguística, por exemplo, lida apenas com os fenômenos da fala humana e seus elementos estruturais. Essas ciências que procuram descobrir as leis de um domínio delimitado da vida social têm necessariamente um caráter estreito e unilateral.
Mas, verdadeiramente, a sociedade não é dividida em domínios completamente separados uns dos outros, nem seu desenvolvimento é dividido em estágios absolutamente desarticulados. A vida humana se desenvolveu continuamente desde suas origens até o presente. Cada estágio da história humana e de sua organização social teve uma constituição integrada que dependia de seu modo de produção e de seu lugar apropriado no encadeamento do processo histórico.
A Sociologia é o ramo do conhecimento científico que investiga a evolução da sociedade em sua totalidade e o conteúdo da vida social em sua plenitude. Ela procura descobrir as leis que governam o progresso da vida social, desde a mais simples e primitiva forma de organização social até suas estruturas mais complexas e maduras.
Tanto as leis da natureza quanto as leis da sociedade têm caráter histórico, uma vez que são extraídas de fenômenos vinculados a mudanças constantes. Os fenômenos sociais, porém, são qualitativamente diferentes dos eventos puramente naturais, a partir dos quais eles cresceram e nos quais permanecem enraizados. Os fatos sociais são produzidos por nossa espécie, que obtém seus meios de existência de maneira única por meio de trabalho cooperativo. As atividades de produção do homem e seus resultados envolvem as leis do desenvolvimento social com características bem diferentes daquelas que governam outros seres vivos.
As leis da evolução social mantiveram certos traços em comum com as leis da evolução orgânica, pois até agora elas operaram sem direção ou controle coletivo consciente. É por isso que Marx considerou "a evolução da formação econômica da sociedade como um processo de história natural", como escreveu no prefácio da primeira edição do Volume 1 d’O Capital. Mas as características dominantes do processo histórico-social são fundamentalmente diferentes daquelas prevalecentes no resto da realidade.
O amplo escopo e os vastos objetivos da Sociologia a tornam a mais abrangente dentre as ciências sociais. Ela procura sintetizar as descobertas do restante das ciências sociais em uma concepção abrangente da dinâmica do processo histórico.
A Sociologia desempenha um papel em relação às ciências sociais comparável à Cosmologia Científica, que explica de maneira abrangente a evolução do universo físico, ou da Biologia Sintética, que visa fornecer uma imagem coerente de todo o domínio da matéria viva.
Na medida em que a Sociologia consegue compreender as leis do desenvolvimento humano, ela fornece às outras ciências sociais um método geral de investigação que pode servir como um guia para seus estudos mais especializados. Existe uma interdependência inquebrável e uma interação constante entre a Sociologia e os mais especializados ramos das ciências sociais, cada um dos quais com a sua relativa autonomia. Os dados fornecidos por estes, por sua vez, enriquecem e ampliam as ideias e o método da Sociologia à medida que ela cresce.
A Sociologia procura responder a perguntas como: o que é sociedade e em quais aspectos ela difere da natureza? Como a vida social se originou? Como e por que ela muda? Quais são as forças motrizes mais poderosas em seu desenvolvimento? Por quais estágios a evolução social passou? Quais formas de organização a sociedade adquiriu? Quais são os padrões do progresso social? Que relações as várias esferas da estrutura social têm entre si? Quais leis regulam a substituição de um grau de desenvolvimento social pelo próximo e a transformação de um tipo de organização social em outro?
Os aspectos gerais que distinguem a Sociologia como uma ciência se destacam mais claramente em contraste com a História. Esses dois ramos do conhecimento estão tão intimamente interligados que, em certos pontos de sua fronteira, são quase indistinguíveis.
A História narra o que os homens fizeram em um determinado momento e local e sob certas circunstâncias específicas, por mais extenso que seja o período e o teatro de operações. A Sociologia assume de onde a História parou. Partindo dos resultados da pesquisa histórica, ela busca encontrar neles e por meio deles as conexões internas e leis causais do processo histórico real. Dados históricos consideráveis tiveram de ser acumulados antes que a Sociologia se tornasse possível.
A Sociologia e a História têm o escopo mais amplo dentre todas as ciências sociais. Ambas costumavam se fundir na linha fronteiriça conhecida por "Filosofia da História". Este termo, inventado por Voltaire, refere-se à interpretação teórica sistemática do processo histórico como um todo, o que Hegel chamou de História Universal.
Esse lado do estudo da história foi fortemente perseguido por aqueles pensadores da Europa Ocidental dos séculos XVII e XVIII que procuravam estender aos fenômenos sociais os métodos que estavam revolucionando a pesquisa no mundo físico. Eles avançavam com a premissa de que o mundo do homem, não menos que o mundo da natureza, era um sistema racional cujos princípios de desenvolvimento poderiam ser descobertos e deveriam ser conhecidos. Então eles se propuseram a averiguar as leis causais que determinavam a história humana.
Embora algumas de suas especulações tenham ido além do objetivo, esses exploradores da lógica do processo histórico reuniram materiais e abriram caminho para aqueles eminentes teóricos do século XIX, de Saint-Simon a Marx, que colocaram o estudo da sociedade em bases científicas sólidas.
Essas investigações teóricas sobre as forças motrizes da história foram motivadas e promovidas por objetivos práticos. Os filósofos do Iluminismo, que anunciaram a Revolução Francesa, e seus sucessores dos períodos Napoleônico e da Restauração, posteriores à Revolução, procuravam os agentes eficientes da história com o objetivo de transformar a sociedade de acordo com suas luzes. Assim como os cientistas naturais haviam adquirido controle sobre a Natureza por meio de um domínio mais profundo de seu modo de funcionamento, esses pensadores desejavam dirigir a reconstrução da sociedade, compreendendo e gerenciando os principais fatores que moldavam o curso da história.
Os autores das hipóteses associadas à Filosofia da História foram os precursores ideológicos e antecessores da Sociologia. O que era válido em suas contribuições e conclusões sobre toda a história humana se tornou parte da ciência da sociedade.
A Filosofia da História como tal, no entanto, pertence ao estágio pré-científico do conhecimento sociológico. Ela tem a mesma relação com a Sociologia Científica que a Alquimia tem com a Química e a Astrologia com a Astronomia. Suas hipóteses eram estimulantes e indispensáveis, uma vez que as forças impulsionadoras elementares do desenvolvimento social eram desconhecidas e estavam sob procura. Mas uma vez que o materialismo histórico revelou as verdadeiras leis da evolução social e a pesquisa progressiva orientada por princípios científicos pôde substituir as adivinhações, a velha abordagem filosófica puramente especulativa à sociologia tornou-se obsoleta e retrógrada.
A Sociologia tem uma longa pré-história que remonta aos Gregos. Ibn Khaldun, o eminente intelectual berbere e estadista do século XIV, foi muito provavelmente o primeiro pensador a formular uma clara concepção de Sociologia. Ele fez isso sob o nome de estudo de cultura.
Ele escreveu:
“A História é o registro da sociedade humana, ou civilização mundial; das mudanças que ocorrem na natureza dessa sociedade, como a selvageria, a sociabilidade e a solidariedade de grupo; das revoluções e levantes de um conjunto de pessoas contra outro, com os reinos e estados resultantes e suas diversas categorias; das diferentes atividades e ocupações humanas, seja para sobreviver ou nas várias ciências e ofícios; e, em geral, de todas as transformações pelas quais a sociedade passa por sua própria natureza”.(3)
A Sociologia, porém, é um campo relativamente recente das Ciências Sociais. Ciências como a Economia e a História se desenvolveram de maneira independente muito mais cedo e mais rápido. A Sociologia se constituiu como um ramo distinto do conhecimento somente após a Revolução Francesa. Ela recebeu seu nome há mais de 150 anos de Augusto Comte.
Desde então a Sociologia se desenvolveu em diferentes direções e deu origem a uma série heterogênea de abordagens teóricas. As diversas escolas podem ser classificadas grosseiramente em três grupos principais: as correntes materialista, idealista e eclética ou dualista.
Os idealistas baseiam-se em fatores mentais, superestruturais ou puramente subjetivos para a explicação primeira dos fenômenos sócio-históricos. Assim, o escritor suíço Bachofen, que primeiro chamou a atenção para o sistema de parentesco através das mães, disse na introdução de seu livro Das Mutterrecht: “A religião é a única alavanca eficiente de toda a civilização. Cada elevação e depressão da vida humana tem sua origem em um movimento que começa nesta esfera suprema”.
O antropólogo americano Alexander Goldenweiser declarou em seu trabalho Early Civilization: "Assim, toda a civilização, se seguida passo a passo até o início, seria finalmente resolvida, sem sobras, em pedaços de ideias nas mentes dos indivíduos".
O biólogo britânico Julian Huxley abrange toda a extensão do desenvolvimento social com uma explicação semelhante: "A evolução humana ocorre primariamente no reino das ideias e seus resultados - no que os antropólogos chamam de cultura" (Issues in Evolution, p. 45).
O idealismo histórico prevalece não apenas nas ciências, mas em todas as áreas da cultura. Assim, o crítico literário Alfred Kazin, resenhando The Life of the Mind in America: from the Revolution to the Civil War, de Perry Miller, afirma: “No final, o espíritonacional é a força nacional”. Isso é Hegelianismo diluído.
Os materialistas, por outro lado, ensinam que tudo na vida social provém de causas materiais objetivas e observáveis de caráter físico ou de produção humana. Assim, em Sobre a Natureza das Coisas, o poeta-filósofo romano Lucrécio atribuiu a descoberta do uso dos metais à percepção humana de seu derretimento a partir de incêndios florestais e de sua moldagem nos leitos de onde pedaços de prata e ouro, cobre ou chumbo, eram retirados. Ele estava alcançando uma explicação materialista para a revolução metalúrgica que dera imenso ímpeto ao progresso humano milhares de anos antes dele.
No século XIV, Ibn Khaldun procurou explicar o surgimento do Estado a partir da comunidade tribal primitiva conforme as seguintes assertivas essencialmente materialistas: para satisfazer as necessidades físicas por alimento, procriação e proteção, as quais eles compartilhavam com plantas e animais, os homens eram impelidos a cooperar, aprender a fabricar ferramentas e armas e estabelecer comunidades pequenas e simples. O desenvolvimento da cooperação e a divisão do trabalho levaram a produzir mais do que era necessário para a pura sobrevivência. Os ferozes conflitos subsequentes sobre a posse deste excedente de riqueza ameaçavam a existência dos homens. Para coibir seus apetites animais e criar ordem civil, eles estabeleceram um governante poderoso e capaz que forçou o conjunto a obedecer suas diretrizes. Assim, a Realeza e o Estado surgiram como o resultado necessário da opulência econômica.
A interação de fatores naturais e humanos na formação do curso da história foi enfatizada pelo pensador francês do século XVIII Montesquieu, que escolheu Geografia e Governo como os principais determinantes dos fenômenos sociais. A influência do primeiro fator prevaleceu nos estágios iniciais do desenvolvimento humano; o segundo avançou à medida que a civilização progredia. Mas ambos continuam trabalhando juntos sobre a vida mental do homem e geram suas características predominantes. Assim, o calor e o despotismo tornaram certos povos asiáticos plácidos e dóceis, enquanto o frio e a democracia tornaram alguns europeus mental e fisicamente ativos.
Além de tais esforços para aplicar procedimentos idealistas ou materialistas de maneira mais ou menos consistente e clara, encontramos uma série de pensadores que se alternam entre esses modos opostos de raciocínio e chegam às mais incongruentes conclusões em seus trabalhos. A literatura das Ciências Sociais está saturada de tal ecletismo em teoria e método; é o ponto de vista habitual e normativo da erudição ocidental contemporânea.
Uma típica expressão desse dualismo foi fornecida por Charles Beard, o historiador liberal americano. Sua última palavra sobre filosofia da história foi que ideias e interesses eram as forças gêmeas impulsionadoras da civilização. Se lhe fosse perguntado qual é em regra predominante, bem como a longo prazo, ele responderia que isso não pode ser determinado com antecedência. Tudo depende das circunstâncias concretas do caso em questão. A porta estava portanto aberta para considerações ideológicas prevalecerem sobre condições materiais, tanto no particular quanto no geral.
Embora a abordagem idealista da história seja falsa por princípio, nem tudo está errado. Ela leva em consideração certas características do desenvolvimento da sociedade. Ideias, opiniões, religiões, ação individual, são todas partes da História e contribuem para a sua criação. A questão é que elas não são os fatores decisivos na vida social e, portanto, não podem servir para explicar o resto. Elas são elementos secundários e derivados que, eles próprios, precisam de explicação. A concepção idealista é enganosa porque é superficial; não chega ao âmago, às causas essenciais, dos fenômenos sociais.
Cada escola materialista de explicação histórica teve noções errôneas e inadequadas, mas seu procedimento era essencialmente válido porque orientava a investigação social na direção correta. Os materialistas procuravam as forças motrizes e as causas profundas da evolução social na influência e nas mudanças das condições materiais da existência humana e assim continuaram cada vez mais fundo nelas. Com Marx e Engels, eles conseguiram alcançar a base: eles localizaram os fundamentos da sociedade no modo de produção, que surge da condição inelutável do embate do homem com a natureza pelos meios de sobrevivência e seu subsequente desenvolvimento.
O materialismo histórico é um tipo particular de teoria sociológica. É o método sociológico do marxismo. Ele investiga os mesmos fenômenos que as escolas de sociologia rivais, mas de uma maneira mais aprofundada, multifacetada e rigorosamente científica que fornece maior compreensão sobre a vida completa da sociedade e maior perspectiva sobre suas tendências de desenvolvimento.
O materialismo histórico não esgota a totalidade da teoria marxista. Ela forma um ramo especial decorrente da aplicação de seus princípios dialéticos e materialistas à evolução da sociedade. Isso é contestado por certos intérpretes revisionistas do marxismo, como Sidney Hook e Jean-Paul Sartre, que afirmam que o domínio marxista está restrito aos fenômenos sociais, à vida do homem somente, e não pode ser estendido à natureza. O marxista russo Plekhanov afirmou, mais corretamente, que o materialismo histórico possuía uma vasta jurisdição universal.
Plekhanov dividiu a estrutura unificada e sistemática do pensamento marxista em três partes: a) materialismo dialético, a abordagem mais geral da realidade, que abrange a natureza, a sociedade e o pensamento e que visa descobrir as leis gerais que governam os modos de movimento nas três esferas da existência, as quais interagem entre si; b) materialismo histórico, a aplicação dessas leis ao desenvolvimento da humanidade e a descoberta das leis específicas relacionadas à existência social; c) socialismo científico, a aplicação das leis do materialismo histórico àquele estágio particular da evolução social em que o capitalismo toma forma, realiza e esgota o seu potencial, e passa para a formação superior do socialismo. Portanto, o materialismo dialético é uma escola de Filosofia, Lógica e Teoria do Conhecimento; o materialismo histórico, de Sociologia; e o socialismo científico, de Economia Política e de prática revolucionária.
Materialismo histórico é um nome apropriado. Não adquiriu nenhum elemento de sua designação por acaso. Seu título formula as características essenciais que demarcam esse método de outras maneiras de interpretar os fenômenos sociais: por um lado, sua [tese da] derivação de todas as manifestações mais elevadas de cultura a partir de seus fundamentos econômicos a opõe aos idealismos históricos que têm sido o principal adversário do pensamento materialista na História e na Sociologia. Por outro lado, houve correntes que analisaram processos e estruturas sociais materialmente, mas desconsideraram ou minimizaram seus aspectos evolutivos.(4) Esses materialismos a-históricos atribuíram os elementos básicos das formações sociais tanto a uma natureza imutável como a alguns traços fixos da natureza humana.
O caráter distintivo da Sociologia marxista vem da fusão da abordagem materialista da sociedade com uma perspectiva evolutiva completa. Ela ensina que tudo na vida social está sujeito a modificação e transformação de acordo com causas de caráter físico ou histórico.
Uma filosofia da história idealista também pode ser evolutiva, como em Hegel, mas ela confere a fatores não materiais tais como espírito, mente ou Deus os fundamentos últimos do agir. De fato, o marxismo se originou ao separar a perspectiva evolutiva projetada por Hegel em sua lógica dialética de seu contexto idealista e ao remover os elementos não históricos das teorias materialistas precedentes. Muitos críticos insistem que esse casamento do método dialético com princípios materialistas é impossível. No entanto, sua combinação indivisível constitui o cerne do modo de pensamento marxista na sociologia, assim como em todos os outros campos.
A Sociologia não poderia ter surgido ou prosperado em um meio social homogêneo, harmonioso, equilibrado e imutável. As mudanças econômicas aceleradas, a instabilidade social e os antagonismos de classe característicos da civilização comercial foram necessários para impulsionar os homens a procurar as forças que moviam e transformavam a sociedade.
As primeiras observações sistemáticas e reflexões críticas sobre o curso e as causas das transformações sociais foram feitas por pensadores gregos naquelas Cidades-Estado despedaçadas por conflitos de classe, onde revoluções e contrarrevoluções periodicamente perturbavam e substituíam regimes. Platão estabeleceu as condições para sua República ideal na busca por estabilidade em oposição aos instáveis regimes da sociedade escravista comercial ao seu redor. Aristóteles analisou cuidadosamente as causas das revoluções com o objetivo de preveni-las e não de promovê-las.
Ibn Khaldun produziu sua nova ciência da cultura,(5) o primeiro grande trabalho em Sociologia, em resposta ao declínio e desintegração dos Estados islâmicos do Norte da África e Espanha durante o século XIV. Vivendo em tempos de angústia e desolação, quando incursões nômades e a Peste Negra haviam arruinado o Magreb, ele sentiu fortemente a necessidade de uma compreensão mais profunda da História. “Quando o universo está sendo virado de cabeça para baixo, devemos nos perguntar se está mudando sua natureza, se deve haver uma nova criação e uma nova ordem no mundo. Portanto, hoje precisamos de um historiador que possa declarar o estado do mundo, de seus países e pessoas, e mostrar as mudanças que ocorreram nos costumes e crenças”, escreveu ele.
Desde sua época, a investigação sobre as causas do progresso e regressão sociais foi acelerada quando e onde a ordem social foi desestabilizada, virada de cabeça para baixo e o destino histórico dos povos foi radicalmente alterado. As agitações nas relações sociais e nas instituições políticas resultantes do desenvolvimento das revoluções democrático-burguesas na Inglaterra, França e América do Norte deram os incentivos e os dados para a pesquisa e reflexões que se consolidaram na criação da Sociologia como uma ciência autônoma no século XIX.
Concebidas, nutridas e funcionando em um cenário de interesses sociais conflitantes, as Ciências Sociais não podiam deixar de ter um caráter de classe. A fim de servir como ferramentas e armas na batalha de forças sociais, elas se curvaram a objetivos de classe.
Esse viés pode ser observado desde tempos antigos. Isso se mostra óbvio na Política de Aristóteles. Como outros aristocratas gregos, ele via o Estado como fundado em famílias onde o homem é dono de esposas, filhos, escravos e de toda a propriedade; o conceito de igualdade sexual, cívica ou universal está claramente ausente no pensamento social de Aristóteles.
Chegando ao nosso tempo, aqueles sociólogos anglo-americanos que ignoram a evolução da sociedade, desconsideram transformações revolucionárias na organização social e se concentram exclusivamente nas correlações funcionais de estruturas estáticas de pequena escala são igualmente condicionados à dinâmica de classe em suas perspectivas. Eles apresentam o ponto de vista do intelectual ou progressista liberal de classe média.
Como então o notório caráter de classe das Ciências Sociais e de seus estudiosos deve ser conciliado com as verificações da objetividade científica? Este é um dos problemas mais incômodos na sociologia do conhecimento. Se a visão do pesquisador está inevitavelmente borrada e distorcida por motivações de classe, como quaisquer verdades válidas podem ser alcançadas nas Ciências Sociais?
Karl Mannheim ofereceu uma solução engenhosa. Ele sustentou que os ideólogos da burguesia e do proletariado não podem ser agudos e imparciais porque precisam defender interesses materiais esmagadores. Suas visões são obscurecidas por uma "falsa consciência" enganosa e um utopismo, que, apesar de seu irrealismo, é na prática o gerador de ação política e progresso social. Felizmente para a Ciência, o relativismo e o subjetivismo dos representantes das elites podem ser compensados pela capacidade de intelectuais socialmente desapegados e politicamente descomprometidos de compreender e avaliar fenômenos sociais sem viés ideológico. Assim, Mannheim tentou resolver a contradição entre porta-vozes enviesados a serviço de forças sociais em luta e as demandas da ciência conferindo as virtudes da objetividade a uma elite intelectual desenraizada e imparcial com a qual ele próprio se identificou.
O marxismo resolve esse problema de maneira mais correta e consistente. Ele reconhece que os pensadores de todos os regimes e camadas sociais, sem exceção, são animados por considerações de classe, por mais que estejam muito ou pouco conscientes de sua influência sobre eles. Esta perspectiva de classe pode dificultar seu trabalho e distorcer suas conclusões. Porém, não é uma barreira insuperável para a aquisição de conhecimento genuíno e, de fato, sob certas circunstâncias, pode incitar e acelerar seu desenvolvimento.
Toda classe dominante sucessiva - e a classe ascendente que desafia a sua supremacia – criou uma concepção geral do mundo e da sociedade em conformidade com suas necessidades. Essas ideologias misturam descrições precisas e explicações corretas dos fenômenos com vieses derivados da situação especial e da perspectiva da classe pela qual elas falam. Esse duplo caráter permeia a Política de Aristóteles, que, por seu ângulo de visão aristocrático, transmite informações valiosas e generalizações válidas sobre as características econômicas, sociológicas e políticas das cidades-estados gregas.
As demandas que uma determinada ordem ou classe social impõem a seus ideólogos têm efeitos distintos sobre sua capacidade de ampliar o conhecimento em momentos distintos de sua evolução histórica. Quando os interesses básicos de uma classe aceleram o desenvolvimento econômico e promovem o progresso político e cultural, a influência benéfica de suas predisposições e preocupações irradia-se pelas ciências e estimula o avanço do conhecimento.
A Mineralogia recebeu seu maior impulso a partir do interesse econômico direto dos proprietários de minas da Europa Ocidental no estudo de rochas. O pai da Mineralogia, o médico alemão Georg Bauer (1490-1555), mais conhecido por seu nome latinizado Agricola, que viveu e trabalhou em um dos centros de mineração do continente, escreveu sobre a distribuição geográfica de vários metais economicamente úteis, o crescimento da metalurgia e suas máquinas na Alemanha e na Áustria e a classificação dos minerais conhecidos em sua época. Depois dele, mais e mais atenção foi direcionada ao estudo de rochas por seu potencial valor econômico e muitas instituições de ensino passaram a ministrar Mineralogia. O crescimento desta ciência levou ao aumento do conhecimento da história da Terra e posteriormente à necessidade de determinar uma escala de tempo para a pré-história. Assim, o progresso alcançado no conhecimento positivo e os benefícios acumulados para a humanidade transcenderam e superaram a busca pelo lucro privado que deu origem à Mineralogia.
As mesmas considerações são válidas nas Ciências Sociais. Os empresários, financiadores e estadistas do início da era burguesa precisavam de estatísticas mais extensas e exatas para fins comerciais, atuariais, bancários, tributários e administrativos. Seus interesses permitiram o surgimento da Estatística no século XVII. Mesmo assim, este ramo do conhecimento tem uma base objetiva e uma validade científica que vão além dos especiais motivos de classe inseparáveis de suas origens e desenvolvimento.
Para conduzir uma luta bem-sucedida contra ideias e instituições pré-capitalistas, a burguesia ascendente teve de examinar mais profundamente a estrutura da sociedade e as forças impulsionadoras da história. Seus economistas estudaram o comércio exterior, o papel do dinheiro e as formas de capital e trabalho, acumulando materiais e elaborando teorias para colocar a economia em bases científicas sólidas. Seus pensadores políticos desenvolveram teorias de soberania popular e de governo representativo em oposição a visões monárquicas e teocráticas. Seu pensamento crítico e criativo introduziu luz duradoura nesses campos das Ciências Sociais.
Como um tipo de regime social substituiu outro na marcha progressiva da civilização, houve um crescimento acumulado de conhecimento sobre a sociedade. A compreensão das relações sociais e seus modos de transformação obtida pelos teóricos mais contundentes de um estágio do desenvolvimento social e científico e de sua classe dominante foi reavaliada, peneirada e corrigida pelos principais ideólogos da formação social superior seguinte. Assim, a economia política da classe trabalhadora partiu de um retrabalho crítico das doutrinas dos economistas burgueses clássicos, assim como sua filosofia combinou os princípios de materialistas anteriores com o método lógico dos filósofos alemães, de Kant a Hegel. Dessa maneira, as deficiências e limitações inerentes ao estágio ultrapassado foram reduzidas e removidas, enquanto a reserva de conhecimento genuíno foi ampliada e aprimorada pelas novas descobertas dos representantes das forças sociais mais progressistas.
Os incentivos para pesquisa e julgamento objetivos em Sociologia são reduzidos e o avanço da ciência é diminuído quando os principais esforços de uma classe passam a ser preservar um sistema obsoleto de produção e uma estrutura política reacionária. Os estadistas e economistas da escravidão sulista acrescentaram muito pouco à soma de conhecimento, mesmo em relação às leis que regulavam seu próprio regime social peculiar. Essa cegueira às forças reais que se agitam na sociedade e sua tendência de desenvolvimento afligiu todas as classes dominantes decadentes e ultrapassadas. Por terem atuado como o poder dominante na política nacional por décadas, os representantes do sistema escravocrata acreditavam que poderiam continuar a manter o domínio após o equilíbrio de forças econômicas, sociais e políticas no país ter mudado decisivamente contra eles. O teste da Guerra Civil acabou com tal ilusão.
Atualmente os estadistas e ideólogos da maior potência capitalista esperam que os Estados Unidos exerçam a mesma supremacia prolongada sobre assuntos mundiais que a Inglaterra exerceu há 100 anos, independentemente do peso crescente dos Estados e forças anticapitalistas neste século. Sua visão e capacidade preditiva da história mundial são prejudicadas, e não aguçadas, por sua posição e viés de classe.
A melhor compreensão da sociedade à disposição da classe trabalhadora mundial está contida e codificada nos princípios do materialismo histórico. Este é o sistema mais abrangente e integrado de leis sociológicas e a interpretação mais profunda do desenvolvimento histórico. Ele incorpora o conhecimento comprovado sobre história e sociedade legado do passado com as contribuições feitas pelos mestres do marxismo.
As necessidades da classe trabalhadora em sua luta por emancipação impõem exigências rigorosas e uma objetividade severa aos seus teóricos. Como duas guerras mundiais e o fascismo demonstraram, a classe trabalhadora tem de pagar caro por cada falha de conhecimento sobre a dinâmica da sociedade contemporânea. Ela sofre por cada exemplo de ignorância, subjetividade e miopia nas análises socioeconômicas de seus líderes e acadêmicos.
Isso valoriza a descoberta da realidade das condições sociais e políticas e a determinação dos movimentos precisos das diversas forças sociais. Falsas ideias devem ser constantemente corrigidas pelos resultados da experiência real na arena de luta em escala mundial; uma imagem mais objetiva e definida da situação concreta em todos os seus aspectos interacionais deve ser elaborada para que os objetivos históricos do movimento socialista sejam cumpridos.
Esses estímulos vitais que emanam dos movimentos de libertação das amarras da sociedade de classes são a alma do progresso do materialismo histórico. Este método ensina que teoria e prática, ciência e experiência, andam de mãos dadas ao longo da história. Mas os dois não evoluem simetricamente: o progresso deles é extremamente desigual. A compreensão dos povos e das classes sobre sua condição e suas tarefas geralmente ficou muito atrás de suas relações reais e das possibilidades de transformá-las.
Esta lacuna nunca foi tão grande como na Era Atômica. Embora o mundo esteja pronto para receber o socialismo, uma parte considerável da classe trabalhadora no Ocidente não está pronta para alcançá-lo. No entanto, a própria salvação da humanidade depende de sua capacidade de intervir como força dominante e decisiva na mudança do curso da história de nosso tempo. A clareza e a orientação promovidas pelo materialismo histórico podem fazer muito para alterar o bruto desequilíbrio entre o imenso potencial revolucionário inexplorado dos trabalhadores e seu atual nível inadequado de consciência.
Entre os anos 1840 e 1960, as vitórias e derrotas, avanços e recuos das massas em seus esforços para mudar o curso da história e reconstruir a sociedade em novas fundações ampliaram o método e enriqueceram o conteúdo do materialismo histórico. O maior valor de toda ciência vem de sua utilidade na prática. A ciência do processo social formulada no materialismo histórico também deve atender e passar neste teste supremo.
A história do século passado deu muitas provas de sua elevada capacidade de decifrar o passado, analisar os eventos atuais e prever as variantes do desenvolvimento social e político. Sua verdade e potência serão reinvidicadas irrefutavelmente, uma vez que a aplicação de suas ideias permite às forças revolucionárias construir uma política que pode trazer, com a maior rapidez e eficiência, a abolição da velha ordem e a construção de um mundo melhor.
Notas de rodapé:
(1) Originalmente publicado na International Socialist Review, Vol.30, n.05, Setembro-Outubro de 1969, o caderno teórico do SWP. O presente artigo foi incluído pela Resistance Books por ocasião da publicação de Understanding History em 2002 e não consta na edição original de 1972 (Pathfinder). (retornar ao texto)
(2) A concepção de Sociologia em Novack inclui a Economia como seu objeto de estudo. (NT) (retornar ao texto)
(3) (An Arab Philosophy of History, de Charles Issawi, Londres, 1950). Citação do autor. (retornar ao texto)
(4) Novack refere-se aqui a autores como Ludwig Feuerbach, por exemplo (NT). (retornar ao texto)
(5) Referência à extensa e fundamental obra O Livro de Exemplos (tradução francesa de Abdesselam Cheddadi) ou História Universal, escrita na segunda metade do século XIV, cujo importante e quase autônomo primeiro livro são os Prolegômenos (Al-Muqaddimah) (NT). (retornar ao texto)