Escritos sobre a Guerra Civil Americana
Artigos do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865)

Karl Marx e Friedrich Engels


Seção V. Tensões diplomáticas
Os encontros de Garibaldi. A emergência dos trabalhadores do mercado algodoeiro
(Marx. Die Presse, 4 de outubro de 1862)


capa

Londres, 30 de setembro de 1862

Após o encontro de Garibaldi(1) em Newcastle que descrevi em uma carta anterior,(2) outros encontros parecidos ocorreram em Sunderland, Dundee, Birmingham, Londres e demais localidades. O tom deles foi o mesmo em toda a parte, e suas palavras finais foram sempre: “pela remoção dos franceses de Roma”. Neste momento, há uma intenção de escolher delegatários em todos os distritos de Londres e enviá-los em massa para o Lorde John Russell, de forma que seja coagido a tomar os passos necessários contra a ocupação em curso de Roma pelas tropas francesas. “Pressão de fora” é a ultima ratio [recurso último] dos ingleses contra seu governo.

Nesse meio-tempo, o gabinete das Tulherias nem se sente confortável nem indiferente perante as demonstrações populares britânicas, como o seguinte trecho do Newcastle Journal insinua:

“O imperador dos franceses chamou a atenção do governo inglês para o linguajar dominante no último encontro de Garibaldi em Newcastle. Enfatizou-se que dois dos que discursaram, incluindo o presidente da assembleia, o vereador Newton, aludiram a conspirações para assassinar o imperador e, do modo mais inequívoco, ameaçaram-no de morte por causa de suas medidas políticas na Itália. O governo, portanto, sentiu-se obrigado a tomar medidas a respeito do assunto e declarar que as leis da Inglaterra devem ser aplicadas rigorosamente para que se previna e puna qualquer conspiração do tipo, como aquelas de Orsini, Dr. Bernard e outros, sobretudo porque o atentado de Orsini foi anunciado reiteradamente e de forma tão declarada no encontro. Esse alerta pelo governo se baseia no fato de que, recentemente, nos círculos de Mazzini, foram feitas declarações, ameaças foram veiculadas e maquinações foram mencionadas de forma obscura — tudo de modo sombrio, semelhante ao da conspiração de Orsini. Por fim, somos capazes de informar ao público que as primeiras medidas legais concernentes ao encontro de Newcastle já foram tomadas”.

É até onde foi o Newcastle Journal. Qualquer um que tiver a menor consciência da situação inglesa e da atitude que prevalece aqui sabe, ademais, que qualquer mistura do atual gabinete com protestos públicos só pode terminar na queda do governo, como foi o caso na época do atentado de Orsini.

Em face do inverno que se aproxima, as condições dos distritos fabris se tornam diariamente mais ameaçadoras. O Morning Star alertou hoje que, se o método atual de “caridade oficial” persistir, no próximo inverno veremos as cenas violentas de 1842-43 em versão bem amplificada.(3) A ocasião seguinte para seu grito de Cassandra é uma declaração presente em todos os jornais ingleses de um trabalhador de Manchester previamente empregado em uma máquina de tecelagem (de algodão), mas que agora está desempregado. A fim de compreender o conteúdo da declaração, a qual resumirei brevemente em seguida, é necessário que saibamos o que é o “labour test”. A Lei dos Pobres inglesa de 1834,(4) que visa eliminar o pauperismo punindo-o como crime desonroso, requer que aqueles em busca de ajuda provem “disposição para trabalhar” antes de sua inscrição ser efetivada, seja quebrando pedras ou separando fios de estopa — operações inúteis, com as quais os criminosos condenados a trabalhos pesados são punidos em prisões inglesas. Após esse tal “labour test”, o requerente recebe um xelim por semana para cada membro de sua família — ou melhor, meio xelim em dinheiro e meio xelim em pão por cabeça.

Chegamos agora à declaração do tecelão inglês. Sua família consiste em seis pessoas. Anteriormente ele gozava de um bom salário. Há 18 semanas, porém, deparou-se com uma jornada de trabalho reduzida à metade, então a um quarto. Durante esse período, o soldo semanal da família mal chegava a 8 xelins. Na última semana, a fábrica onde trabalhava foi definitivamente fechada. Seu aluguel é de 2 xelins e 3 pence por semana. Ele penhorou tudo o que não estava fixado em algum canto; não tinha mais nada para vender, e nem um centavo em seu bolso; a fome encarava a ele e a sua família. Assim, acabou se vendo forçado a procurar ajuda junto às autoridades de assistência aos pobres. Na última segunda cedo, foi ter com os “guardiões”.

Após uma “investigação afiada”, eles lhe concederam um atestado de encaminhamento ao assistente social. Levou uma hora para que o oficial lhe permitisse estar em sua ilustre presença. Então foi submetido mais uma vez a um interrogatório — e negou-se-lhe o auxílio sob pretexto de que ganhara 3 xelins na semana precedente, embora “o paciente” houvesse dado um relato detalhado sobre o modo como sua “fortuna” foi gasta. Ele e a família tiveram que passar fome até a quarta-feira seguinte. Ele voltou ao escritório dos “guardiões”. Ali descobriu que teria de se submeter ao tal “labour test” antes que qualquer auxílio lhe pudesse ser conferido. E lá foi ele marchando até o workshop (a Bastilha dos pobres). Ali, de estômago vazio, teve de separar fios de estopa até depois das cinco e meia, trancafiado com 300 outros trabalhadores em uma sala apertada de cerca de 30 jardas. Nela, esmagado no banco, sob o calor opressivo do verão, sufocando com fumaça e poeira, os “pacientes do labour test”, trabalhadores treinados, os pilares da riqueza nacional da Inglaterra, tiveram que executar as mais baixas operações às quais um ser humano pode ser submetido. Poder-se-ia muito bem chamar um relojoeiro para martelar ferraduras, ou um organista para soprar seus próprios foles. Ao fim da tal operação, ele recebeu exatamente 5 xelins — a metade disso em pão, a metade em dinheiro. Após pagar o aluguel, mal sobrou 2 pence (cerca de 2 Groschen de prata prussianos) para consumo diário de 6 pessoas. E na quarta-feira seguinte, ele teria que passar novamente pela “provação divina”, uma vez que ela se repete toda semana. O tecelão então declarou publicamente que preferiria morrer de fome com a família a ver tal humilhação se repetir.


Notas:

(1) Na época, Giuseppe Garibaldi foi o general que lutou pela unificação do Reino da Itália. (retornar ao texto)

(2) Ver matéria “Um encontro em prol de Garibaldi”, de 9/9/1862, publicada no Die Presse, no. 256, em 17/09 do mesmo ano. (retornar ao texto)

(3) Referência à atuação do movimento cartista no verão e outono de 1842 em face da crise econômica da época. Trabalhadores em Stalybridge iniciaram uma guerra que se espalhou pelas zonas industriais do país. A classe dominante só mitigou os protestos com o uso do exército. Friedrich Engels tratou do evento detidamente em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra segundo as observações do autor e fontes autênticas (tradução brasileira por B. A. Schumann. São Paulo, Boitempo, 2014, ver capítulo “A concorrência”). (retornar ao texto)

(4) Marx se refere à An Act for the amendment and better administration of the laws relating to the poor in England and Wales. (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022